sexta-feira, março 09, 2007

NÚMERO V

CINCO CINCO CINCO CINCO CINCO CINCO CINCO CINCO CINCO CINCO

Editorial

O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem.


Escrevo isto tarde e a más horas. talvez não de forma extemporânea, certamente não atemporal, e por certo de maneira alguma intemporal. neste tempo, como naquele, nada é atempado, em nenhum dos sentidos que seria possível atribuir. se alguma vez o quiséssemos. é tempo do tempo que temos, é temporal, com vento forte ou tempo forte ou nem por isso, temperado, bastante impreciso.

voltemos atrás. ao isto. voltemos ao isto que não é o isto que referimos em primeiro lugar, nem em segundo, nem agora porque agora já não é agora, o agora já foi, e voltará a ter sido.

Isto. estou certo do que aponto. não preciso de um nome, de nenhum, próprio ou impróprio, plebeu ou comum, unívoco ou equívoco. estar na vez de é não só estar no lugar de, mas no tempo de. é uma invasão. aponto, sei de mim, sei do que falo, de onde e quando, e no entanto é porque o falo que já o não nomeio, que já o perdi, que o firo de morte quando o digo, o escrevo, o leio, o penso. inscrever, e escrever, é perder o nome. o nome que nunca se teve, e que por não se ter dá espaço e dá vez à nomeação, ou pronomeação. o nome que diz e aponta já algo outro e vário e nomeadamente aponta para si. por isso não se pode ter, não se pode nomear, não se pode. naquele tempo como neste, não.

Se escrevo isto é porque o isto já não existe. Já passou a sua vez. É extemporâneo. era uma vez.

O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. o tempo respondeu que o tempo tem o tempo que o tempo tem.

não há contemporâneos, não há temporários, não há temporais.
escrevo tarde e a más horas. nem o tempo temos. nem isto. um pouco, um bocadinho, um texto.
nisto perdemos tempo, o tempo que não temos. não há tempo para isto. não tenho tempo para isto [eu?]. isto não é deste tempo. nem deste, nem daquele. há não haver tempo, temos não ter tempo e isto é mais um isto que já não é isto, nem isto, nem aquilo, nem coisa nenhuma porque é algo.
peço desculpa, como seria de esperar. por anacronismos e pela perda de tempo. por isto tudo. por perder tempo que não se pode perder. por variados motivos. é uma vez, foi uma vez.
Eu.
Isto.

Aponto e o que aponto não existo. Ser tarde e a más horas é o que explica tudo isto. Insisto nisto. E persisto.


deus ajuda quem cedo madruga, e a orgânica.

ed isto r - Ruy

Poesia

Na escuridão, os obstáculos não se vêem

1 – A Verdade está lá em cima, na prateleira, ao pé das bolachas

E afinal a Poesia não existe
A Poesia foi Satanás
Que se disfarçou de musa
E apareceu vestido de Havaiana
A Petrarca e a Camões

Mas o grande problema
De Satanás-poesia
Foi que ele se esqueceu
De rapar as pernas
Antes de aparecer a Oscar Wilde

Já Milton e Homero
Ficaram à espera da Luz
Que nunca chegou
Ou se chegou não a viram
Porque Satanás lhes apagou as velas
(Enganou-se – pensava que faziam anos
Mas não! Ficaram cegos…)

Pois é, a Poesia não existe
É o Rei das Diabruras que decide fazer mossa
E lá vem ele todo lampeiro
Convencer este ou aquele incauto
Que está a ter Inspiração
(Bons tempos em que o Santo Ofício
Sabia a Verdade – a Esquizofrenia é como os impostos:
É tudo psicológico!)

E no meio disto tudo onde ficam os Realistas?
A que pincel se agarram os Neo-classicistas?
Em que galho se pendura o Paradigma Aristotélico?
Não ficam. Escorregam. Cai podre.
É tudo treta – no contrato está bem claro
Que podem dizer o que quiserem:
Mas no fim todos sabem bem
Que é o Chifrudo quem redige os seus Delírios
(ou julgam que Platão estava a brincar
Quando disse que o Poeta-Aedo
Mais não é que uma arrastadeira espiritual?
Pois, pois, uma entidade divina…
Vocês são tão crentes…)





2 – Deslarga-me!

Deslarga-me do braço!
Não me prendas
Com as tuas asneiras!

Destroca-me dinheiro!
Não me obrigues a andar
Com moedas estrangeiras!

Destroce essa manobra!
Aprende a virar a regueifa
Com boas maneiras!

Desmata as saudades!
Elas são um perigo
Se forem verdadeiras!

Descome porcarias!
Doce é o fruto
Das deliciosas palmeiras!

Despaga o bilhete!
Não tens de ir
Recolher mangueiras!

Destira a mão!
Não te metas
Com meninas Tripeiras!

Desfunga o nariz!
Essas coisas
São tão foleiras!

Desmete o passe!
Tu queres é ir
Para o interior das Beiras!

Desvai-te embora!
Não peças informações
Às simpáticas rameiras!

Destem juízo!
Não é na cabeça
Que se metem as perneiras!

Desacaba com isto!
Alista-te duma vez
E foge das fileiras!



3 – Neo-Velharias Último Modelo no Passado Recente da Antiguidade Moderna

No outro dia, aí por volta das mais ou menos, quando olhei para o mostrador do relógio avariado que tinha ficado em cima do frigorífico na casa-de-banho do terceiro andar térreo, passou por mim o Retro-modernismo. Então eu perguntei, “Eh, ó Retro-modernismo, que tal vai isso, pá? Tudo bem?”, mas o desgraçado só me respondeu “Mete-te mas é na tua vida, ó palhaço!”. E eu assim fiz, tirei a minha vida do bolso e meti-te dentro dela. Foi então que uma luz me atingiu a cabeça, quando me levantei e acertei em cheio no candeeiro da rua. Mas lembrei-me que o Retro-modernismo me tinha dito também que eu era palhaço. Raios, pela primeira vez em mais de quarenta e sete segundos senti todo o sentido da vida esvair-se-me por entre os dedos da mão esquerda como se fosse farinha de trigo acabada de levedar com vinagre para fazer uma sobremesa chilena daquelas que os aventureiros de extrema-esquerda – ou extremo-centro, que isto dá para tudo – gostam tanto de deglutir imaginativamente, em especial quando estão há mais de trinta dias perdidos no cimo dum monte coberto de neve nos Andes (ou talvez não seja nos Andes e sim nos Pares, que senão eles saíam dali) e já estão fartos de bracinho rechonchudinho de co-piloto fricassé mas tipo sushi, que é para não perturbar as aves migratórias com os confusos focos de fogo aqui e ali. Ah, senti uma angústia tão perene, tão daquelas que parece que foram lá parar e tinham fita adesiva das fortes! Ah, como era possível que eu não tivesse ali à mão nenhum narizinho vermelho de borracha, nem uma peruca encaracolada com metro e meio de diâmetro, nem um lápis de cor para sarapintar a minha face palhacescamente? Porquê? Que mal não fiz eu às térmitas que me devoraram o serrim das bolachas? Porque me chama o Retro-modernismo de palhaço sabendo que eu não tenho qualquer tipo de adereço que me permita sê-lo? Andar na rua é tão injusto… E foi por isso que resolvi ir para casa e escrever uma carta ao Retro-modernismo. Mas acho que ele não a vai ler, até porque ele não existe.


João Tavares

Poesia

Porto d’Abrigo (e um distante ermo de Saudade)


Soam clarins e tubas de doer
O adeus sem o choro da abalada,
O sem-aceno, o gesto de não crer
Na lembrança sombria e apagada.

Alados rodopios, amiúde,
Sopram a aura nas velas d’ adejar.
Roça a vaga rubra do alaúde
Que aos impérios d’ontem fui tocar.

Veleiro de promessa, d’oiro mar,
Pesa o coração desancorado,
Aportam ao cais urnas de cismar.

Cidade branca, cidade oriental,
Estrangeiro e exangue de saudade,
Sangue do meu sangue luz em espiral.


Leonel Ferreira




O Livro de Judite

Não adianta, filha!
Os alvos linhos já não me atêm,
As nossas ficções não me entretêm,
Agora só cachimbos e raros vinhos.

O que queres que te diga?
Hoje e amanhã não são o mesmo dia
E até a Última Ceia cai aos pedaços.
Já não me afagam os regaços,
Não mais promessas, não mais desvarios.

Não me comovem achaques
Todo eu sou fumo e carambola
Sou a algazarra rústica dos taberneiros
E adeus, Judite, nunca mais!
O que queres que te faça?
Não fui eu quem plantou sempiternas,
Quem jurou e desfez os votos.
Agora, quando me quiseres falar,
Aparece lá para o meio da tarde,
A ver se és mais do que aguardente,
A ver se não me agoniam teus olores de Paris.

Chora
Que as lamentações só lembram gaita-de-foles
E o rufar do tambor dos Zés Pereiras.
Hoje vou sorver o mundo,
Pregar doutrinas dissolutas,
Cantar melopeias pelo amor.
Hoje só os cálices amornam.
Hoje só absintos e talvez ardor.

Antes a campaniça, antes a braguesa,
Antes os caretos, as folias e os festins.
Mais-quero meretrizes e claros sins,
Bater violento as cartas sobre a mesa.

Lembras os versos que te dediquei?
…«Manhãs d’oiro», «luas d’ alabastro»?..
Actos de contrição…
Singelezas desfeitas pelas auras da lucidez,
Hálitos que pressinto desprezos,
Rusgas nos teus meneios abonados
Que antigamente me embalavam quixotescos.


Leonel Ferreira

Poesia

SAUDADE!

Raios de sol rasgam o céu
Como rupturas de saudade
Em meu coração teu!

Todas as nuvens de cinza pinceladas
São estripadas
Em ravinas de ar puro
Pela chuva que se sente!

Rasga-se o céu!

Rasga-se meu peito de ti... de saudade!

Rasga-se a terra em deslocações sem entendimento!

Oh saudade!
Perfuras a obediência cega
De quem não quer ser teu seguidor!
Cega!!!

Por que rasgas em mim
Um não deturpado sentimento
Que é meu Amor
Pela minha Estrela!?

Não rasgues!
Faz antes como o céu,
Que se abre em flechas de neblinas
E sorri após a tempestade
De perigos - (quando esta passou por mim)!
Por mim, que quase transparente fico
De tanta...
SAUDADE!

Martins Ferreira



O rio

O fascínio dos olhos
De uma criança
Em deleitar suas fantasias
Num pobre rio sujo,
Fazem-me sentir saudades
Do ludismo à beira-rio!

(Debruça-se loucamente
Sobre a ponte,
Atira pedras à água
E
Acha-se feliz!)

Se eu pudesse correr
De margem a margem,
Olhar para o rio
E sentir seu fluir
Sem preocupações de tempo!

Correm, correm e não param
As águas de meu rio...
(Não param!)!

Mas a vida também se estagna!!!

Se eu fosse criança,
Acredita,
Não me martirizava
A pensar em tudo isto!

Martins Ferreira



Felicidade Destinada!

As lembranças penetram
Meu pensar...

Meus olhos
Mostram o que tenho e o que não tenho...
Pareço um cadáver ambulante,
Que passando por pessoas normais (?),
Estas fogem com as mãos nos ouvidos...

Não falo...
Gemo e uivo...

A dor e a tristeza que me invadiram
Trazem-me memórias tão...
Lindas...

Sinto tua falta...
Sinto sede de teu beijo...
Sinto fome de tuas palavras...

Não me sinto!!!

O que me mantém andante e pensante
É tua palavra esculpida e cravada
Em meus ouvidos e alma:
«Amo-te!».

Choro... Choro... Choro...
Deixo um rasto de sofrimento,
Mas quase ninguém nota!

O Destino,
Com suas águas
Em movimentos seculares,
Fez-nos deitar sobre seu manto de menino,
E a nós reservou algo...
Puro,
Doce,
E ternamente eterno...
... A Felicidade!

Martins Ferreira

Poesia

A Bullet to the Brain


Between the tiny drops of rain
Hides a sweety face
And a treausery smile
Longing for my eyes.

There’s pain and solitude
Plunged on her lips,
Emptiness and discomfort
On my naked soul.


Reis Neutel

Poesia

Ah, um soneto, passo e lembro
e devagar. um soneto nesta montra
em que passamos e nos queimamos
mesmo do jogo a esconder as cartas
numa batota à emoção.

]Ai, o dia não deu em nada
o dia não deu em ninguém
e passo por este dia errado
como um passo morto nascido além[

e graças a deus que as memórias
como conterrâneas da carne,
de umas e outras apodrecem no bucho.
graças a deus que não há deus
- um copo de água por favor-
que de suas cãs comande
o coreto do lembrar.

e meu deus, a barriga, meu deus
é um dia que passa,
- uma nata quente, um enjoo-
e só não passa esta que não sei
[tristeza não será...]
com um gosto de cinza e sobras
esse fim tão claro de um cigarro
em mais um dia a desfilar.

e um dia acaba-se,
e um dia só se morre,
e um dia não dá em mais nada,
nem se levante o tapete da alma
em busca duma chave por recriar.

E eu, para que quero eu isso?
eu mesmo ter que me levantar,
e viver só amanhã
e depois sempre e depois
e um café curto p’ra despertar.

Não sei, não sei de nada,
Talvez só não me lembre,
E depois? E então?
Recusei o jornal com enfado,
puxei dos bolsos trocos do coração.

]levo nos meus passos a ideia vaga de um querer
chuva e de um soneto e do mar
a que limpo os pés sem chão.[

Et tu, a quem a memória é curta,
mas a vergonha não,
não te ocorra olvidar-se-te o talão.


Ruy





lembro-me de por vezes da imortalidade
e de deus em pequenino,
e de como de unguento um feixe
de nervo fluindo-se marcheta-me indestino.

e queria que este instante para sempre acabasse
da minha vida em cada momento

e queria que este de sempre ficasse
de mim constante onde acabar movimento


Ruy




noto que me engano. será normal.
porventura algo que o não seja
será isso também natural. que ponto
sem nós nos quilómetros, o meu porto é uma onda
- espuma antecipando-se invisível -
ao furor da excitação.
luz e não há sol.


Implausível fortaleza
- sinto-me eu mas não parte de mim,
não estou.
talvez fechado demais tempo
o meu cérebro exercita-se,
excita-se - impensável solidão de espuma,
o tempo foi parado [ferido em ser eu]


o que se há-de fazer?
e é assim que sigo, confuso, fluindo,
na aparente interestelar solidão do asfalto,
sísifo embalado na condição de objecto,
abjecta vastidão do circular. – Talvez

seja este o meu início
(e que é que há que se possa?)
já nem sei se ouço ou digo
ou consigo dizer o que sei ouvir,
talvez eu, num eu final. ponto.
É o abrir do pano mas a peça foi lembrada.


ponto afinal venho-me impoluto impensável
da orgânica do impossível.
Levanto-me pela gola,, pronto, talvez agora um cigarro,
- apesar de nunca nem um sequer -
agora que se foi o interesse no fatal,
no desfecho inconclusivo e vulgar.

e podia tudo começar agora
sem que houvesse esta importência
- e sem espuma uma vénus inclemente
começasse do início,
e inicio um começo
ponto


Ruy



O nosso amar, amor,
tem do lúcido das estrelas o estertor
e o marulhar límpido de um rio de chão


Ruy




Hoje não me apetece
não me apeteceu
sei lá,
porque sei que se
me apetecer
então já não há.

Hoje não, não, não.
Não me apetece, já o sei
porque o sei hoje,
e se me apetece
amanhã não há haver


Ruy




Requerimento prescrito de um coronel antigo à melhor amiga da neta querida


tu que és boa, bonita e boa
e eu que sou bêbado só e bêbado
e que já me tenho encontrado
na posição de dar pela falta de alguns dentes
(embora ainda de pêlo sedoso
e basculagem engrenada);

eu, que me parece que me sai uma
borboleta do peito se te vejo como aqui
sem tu reparares,
eu, que já vi muito mais do que verei
e eu que nunca vi nada assim,
quando tu, bonita e boa me pontapeias o coração,
ergo o pálio e segue a procissão;
por mim acima um cravo sem abril na solidão

que ele há-as muitas por aí
mas eu só te quero a ti,
uma companhia, um encosto só,
alguém a quem esfregar as costas,
alguém p’ra me sacudir o pó;
quando, de repente, se me esquece
a idade e a dor e te pergunto,
por entre os óculos e as barbas
e as rumas e demais trabalhos,
se não queres, por favor, ponderar em fazer amor.

Transmitido por Ruy

Poesia

A Sentença


O homem em cima da duna
Olha em silêncio o mar
Aguarda uma resposta
Que sabe nunca chegar

O homem de rosto ao vento
Escuta o marulhar da maré
Vê as ondas a recuar
E a levarem-lhe a fé

O homem ali parado
Não tem lágrimas para chorar
Choram por ele as nuvens
Que se desfazem no ar

O homem ali quieto
Tem o rosto molhado
É do crivo impiedoso
Do chuvisco salgado

O homem de esperança desnudo
Sente os cabelos voar
Parece que não têm medo
Da tempestade a chegar

O homem que já foi menino
Costumava brincar na areia
Agora vê tudo cinzento
Duma tonalidade feia

O homem que já foi rapaz
Recorda uma velha canção
Dissera-lhe o Pai – Essa moça
Vai ser a tua perdição!

O homem que já foi marido
Costumava sorrir e gostar
Quando a esposa lhe dizia
Que sempre o iria amar

O homem que acordou ontem
Toda a vida o abandonou
Quando leu a carta breve
Da mulher que o deixou

O homem ali na praia
Ouvia muito o avô falar
Um dia o avô disse-lhe
- Ao morrermos vamos para o mar.

O homem que de despede
Mais que nunca acredita
Que o seu velho avô
Tinha ciência infinita

O homem que agora se afoga
Admite com perfeita indiferença
- Vamos para o mar ao morrermos...
E cumpre-se a sua sentença.


João Tavares





As palavras


As palavras são segredos

São sons mágicos que alguém se lembrou de inventar
São poder para quem as souber usar

São ilusões de sentidos nunca tidos
São vontades de acabados significados
São rumores de conspirações comunicadas
São queixas em mil doses replicadas
São dogmas do saber e da razão
São bálsamos para o enamorado coração

As palavras são tudo e mais alguma coisa

Elas são pronúncia e entoação
Elas são mentira e traição
Elas são ataque e investida
Elas são vergonha incontida
Elas são medo e terror
Elas são arrepios de calor

Mas afinal o que são as palavras?

As peças funcionais de um sistema
As partes constituintes do lexema
As somas deste e daquele fonema
As vitórias em cadeia do morfema

O cheiro que não cheira da alfazema

O registo em pormenor do impossível
O pôr-do-sol que nunca se viu
A neve contada aos nativos da Nigéria
A dor de parto que nenhum homem sentiu

As palavras são o fogo do Olimpo
E o tesouro perdido dos Templários
E a arma secreta dos Atlantes
E a estratégia preferida dos salafrários

As palavras são o doce sabor do mel
E o amor que se jura e se promete
E os nomes que se dão a quem se quer
E as desculpas quando se apanha um frete

Em resumo
As palavras são...

...não tenho palavras.


João Tavares

Citação

“A medida do amor é amar sem medida.”

Santo Agostinho

Prosa

A fé da ausência


Durante anos fui como um livro ausente na estante, junto aos outros livros. Pensava que teria de reescrever as linhas em branco com tons suaves da imaginação. Mas deparei por mim sem saber sonhando que não mais sonhava. Entre o esquecimento e um copo de tinto tudo se esvazia, até mesmo uma vida e talvez a própria morada das palavras.


um pouco de tudo e muito de nada
Quando a angústia estiver reduzida a apenas uma ponte estanque entre cidades e vales que se espraiem nas declinações dos olhares vagabundos. Aí sim, teremos as dunas para viajar pelo horizonte das nossas certezas e um falso sopro no corpo fendendo as ondas geradas numa melodia fraterna. Segui a noite como um traço da sua descendência. Os nossos olhos não tinham fronteiras. Todas as visões foram já percorridas além das horas de sono e de um amor sem antecedentes que não conheço e trago preso às correias do espírito.

*

O compasso do relógio bate sempre certo. Mas às vezes no termino do sono, há um bater de asas adormecendo no crepúsculo dos sonhos e aí relembro a alteridade de mim. Na dispersão do labirinto encontro-me a sós com a vertigem do teu olhar e permito à alma abraçar a tua sombra. A sede que perturba os lábios de não cessar de amar. Misturo as cores do desejo. Beijas-me num longo suspiro. A tua boca suspende o pulsar da minha. Segregas-me ao ouvido, como era bom não teres morrido.

*

Ainda repousas, é claro!
Que despedidas dilatam as lágrimas que escolhemos para assassinar o coração?
Desprendem-se os sulcos das fecundas avenidas. Tudo não passa da razão que marcha ao sabor dos dias, ocultando o silêncio matiz, descrição daqueles que riem sem demora. Pobres que habitam o objecto do seu esquecimento. Já não sei sonhar! Já não sei matar! Já não sei morrer se não num palco agraciado por um candelabro, um quadro, intersecção de um outro movimento incompreendido, de uma chávena estilhaçada (já não me serve de nada), de um relógio que apenas dita as horas em consonância com a luz ao fim do cárcere. O mundo escondido num sótão, em qualquer página onde possa reclamar para mim os instantes em que enveredo em meu próprio nome na loucura de todos os outros. O sótão, sempre o sótão, perdido na minha indiscreta presença ausência. O sótão onde posso divagar as chamas a confluírem nos ângulos da comédia humana. Se fosse um corredor trespassado por múltiplos sorrisos, lágrimas, tristezas agitando os passos dos transeuntes, a realidade debruçando-se no prisma da minha consciência, um novo rosto para expressar todos os sentimentos sem gesto, a negação das margens sem carimbo das histórias da infância. Talvez pudesse representar os semblantes dos retratados no vão do pensamento, mas não sei o que representam. Talvez projectem a sua própria alienação de existir. Não penso! Deixo isso para a inconsequente sombra da vida. Sou tão vazio, que me limito a pedir à Noite um percalço rápido ou um desembarque nos subúrbios suplícios abandonados da ferida do coração ao som do desespero que o caminho aperta contra mim. Como se tudo bastasse, até o deslizar de uma porta rente ao acaso de uma paisagem desfigurada.


Clarão
No sótão das memórias lá estava ele rasgando a vertigem dos dias, ou o desfolhar das horas sobre a mesma avenida de cetim.
Teclando no mais macio das tempestades. Falhaste o assalto de ti mesmo. Contas as feridas às nuvens de ácido, somente, elas te escutam no intervalo da ausência, talvez, te respondam — Sim. Só estás à espera que o mundo acabe, bem depressa para poderes voltar para o nó dos teus sentidos e daí abarcar o ocidente conserto dos nossos receios. Não é nenhum segredo apelares para te ouvirem dizer que o horário da meditação termina onde o mar começa, onde a noite frígida interrompe com estalidos a ceia de todos os prazeres. Sim, eu sei que ele foge do atrito inadiável dos ?’s que correm ao amanhecer da primavera sobre os lábios atordoados da emoção. Roçam a eternidade, negam a realidade
A cura, morte, a dor que vai gemendo ao acaso nos degraus de quartzo.

Tu só vives dentro de mim na fachada de meus sonhos.
Os teus lábios são poesia,
São consolo na dormência dos sentidos,
São silêncio vertigem, quando as palavras se calam, Setembros adiados não pronunciados.
Talvez,
(Eu vivo em ti e somente tu podes viver assim).


Reis Neutel

Prosa

A Lírica dos Caminhos-de-Ferro


Ouves este som arrastado e violento? Ouves os interstícios entre as casas, aquelas vedações gradeadas respirando o ar quente dos motores; as amplas clareiras que se estendem até aquele amontoado de juncos na base do monte? Ali. Olha. Ouves as águas do rio fluindo ante a velocidade orquestrada e metálica sobre os carris? Ouço um túnel. Sim, ouve-lo porque o túnel ganha vida assim que por ele irrompemos aos assobios e arranhões de ferro. É um arrastar pesado que sorve tudo em sua volta. E este abrandamento? Há-de levar-nos ao apeadeiro de Nossa Senhora das Dores. E depois? E depois até à volta. Não mais a colisão serpenteante do som e da matéria entre a ondulação dos pinheirais. Só eu e os meus passos inofensivos, sem o desvendamento dos prédios, dos seus estendais, das suas cortinas rendilhadas, das nódoas escuras nas fachadas. Só eu e uns míseros sapatos que hei-de deitá-los ao lixo não sei se tarda muito, assim que receber uns trocados para gastar noutra coisa que não no som da locomotiva a rasgar, a alancear, a refender, a decepar a paisagem e a levar-me ao apeadeiro de Nossa Senhora das Dores e, por uma vez ou outra, a Travagem – a voz vítrea destilando o destino «Próxima paragem: Travagem» - o que me levou em tempos a rir e hoje a sorrir, mas já muito frouxamente, desta paragem: Travagem. Ouves? Sim. Ouves esta voz feminina, nunca obrigada a gritar para que parem o comboio, para que esperem, para que se demorem e meneiem, assim, de um momento para o outro, o destino de não sei quantos passageiros.
Então nem só de som vive a máquina? Não, evidentemente que não. Vês aquele velho com uma mão agarrada ao arrimo da entrada do comboio e outra pousada na anca? Há-de sentar-se ao nosso lado, há-de roçar a manga do seu casaco nos nossos. E então? E então sacode os braços, inspira o ar todo duma vez – um buraco negro a sugar a matéria, a sugar os passageiros, a sugar o comboio, a sugar as linhas, a sugar as vedações gradeadas e aquele armazém de blocos de cimento – para depois deixar escapar tudo isto contra os nossos narizes. E nós sustemos a respiração… sim… Sustemos como se a nossa vida disso dependesse; como se estivéssemos debaixo de água, no tanque do Sr. Américo, nos dias de verão, a mostrar às cachopas o fôlego dos pulmões, a ver se as convencíamos a mostrarem-nos o seu debaixo dos lençóis – mas não adianta, que o velho há-de expirar o ar estaremos nós ainda a inspirar sofregamente, diante da impotência pulmonar. Mau presságio. Mas é só? É o começo. Depois, o cheiro a formol a entranhar-se-nos na pele, o perfume – frascos gigantescos, banheiras e saunas de perfume importado dum país onde só crescem ciprestes – um cheiro a círios a enfaixar-se nos sobretudos, polvilhos de laca ressequida a esvoaçarem por sobre as nossas cabeças, germes e micróbios ricocheteando nos vidros já turvos da respiração monstruosa daqueles pulmões que não acabam nunca. Bom… não era tão mau como me dizia, mas é realmente mau. Mudemos então de assunto. Esqueci-me do guarda-chuva e está-me a parecer que hoje vai chover.

Leonel Ferreira

Prosa

Pequenos Porquês

O que é isto?... O que é isto que não sei porque nem como é?... Porque não diz nada?... Porque não diz nada... Porquê?... Que coisa é essa que não sabe que é, que sabe sem conhecer porque procuro saber dela meu ser? Porque sabe ela o que tão-pouco julga conhecer, de mim, deste sofrer e da alegria desalegre de morrer?... Quem a pariu?... De que canto do mundo emerge essa vida que tudo de todas sabe, no antes e no acto, no futuro que a cauda do passado toca sem que lhe mesmo toque como eu queria? Queria? Assim o podia ter feito naquele acto que foi futuro antes de passado passar a ser, queria?... Que vida és, tu que todas as coisas perpassas sem ferires o que é por natureza ferido, na razão de não sentir que o libertam do jugo de ser livre, de em ninguém nunca poder delegar a razão do que se é? Que liberdade me dás se toda a que tenho é a leviandade de julgar que decido de mim quando afinal me decidem essas coisas que delas nada decidem, que, delas, nada decidem, que, por sua vez, delas nada decidem, que, por fim (ou início?) elas mesmas, são uma decisão? Cais-me aos pés húmida e provocadoramente ao ritmo do meu questionar-te. Respondes-me com véus, dás-me um estranho ser com a máscara das subjugadas coisas do mundo, não me dás o que não posso nomear pela razão de não mo teres dado. Porque agora me é dado tão pouco, se tanto antes recebi e se menos me faria mais não ter querido, por mais que este menos não ter conhecido?... Porquê?... Porque o digo desejando não o poder fazer? Porque olho e movo uma energia que não quero mover, mesmo que só do meu querer, do meu escrever dependa? Porquê?...

André Faia

Prosa

Revés

Amanhã adormeci e levantei-me. Despi o pijama e fui para o quarto, após o que puxei o autoclismo, sorri de satisfação e reavi os meus detritos liquefeitos. Fechei a torneira do lavatório e devolvi toda a pasta de dentes ao tubo, imediatamente antes de ter fechado a tampa o tempo suficiente para a espuma se começar a deformar na minha boca. Foi então que acabei de jantar, o que não demorou muito tempo, pois nem quinze minutos antes já tinha começado. É claro que fui logo a correr tirar a lasanha do microondas, porque pouco tempo antes tive de a meter lá dentro para cozer. Ah, e pensar que mal tive tempo para tirar o casaco, fechar a porta e chegar a casa... é que lá no trabalho as coisas estavam a acabar tão bem antes de ter voltado para cima, para o escritório, e ter-me despedido de toda a gente... depois, o costume: inspirei de novo todo o fumo dos meus mais de vinte cigarros do dia e vi como cada um deles se refazia na minha boca, lentamente, à medida que o fumo etéreo se materializava e condensava para se agarrar e reconstruir o cilindro branco incandescente, até começar – sim, eu bem sei, cada vez que chego ao princípio de mais um cigarro estou um bocadinho mais saudável... fazer o quê? Por este andar, há dez anos atrás comecei a fumar. Mas aonde irei eu? Ah, pois, o escritório... aí por volta das 16h37 – lembro-me tão bem a que horas isto vai acontecer – chateei-me com o gerente da loja. E não é que antes disso o tipo vai e faz asneira? É verdade, nem dava para ele deixar de a fazer, já que eu estava chateado e estava... bom, mas do mal menos, uma vez que imediatamente antes ele não percebeu o que lhe tinha pedido porque se enganou a fazê-lo, pelo que eu lhe pedi para ele fazer uma coisa lá na loja. Enfim, vá a gente esperar que elas apareçam feitas e antes disso querer as coisas bem feitas... não foi sem algum alívio que me senti frustrado e dei por terminado o almoço, o que até nem foi mau, pois haviam de ver a vontade com que eu devolvi todo aquele frango semi-cru para o prato, bem lentamente. Dei graças aos Céus quando comecei, é claro. Já devem estar a adivinhar como foi a manhã... uma pasmaceira do fim até ao princípio, que nem sequer me livrou chegar quase cinco minutos atrasado, pelo que tive de sair do carro a correr para ir para casa pela via-rápida que, como é mais que óbvio, estava congestionadíssima. Mas lá consegui sair de casa, desfazer todas aquelas coisas que os comuns dos mortais desfazem antes de começar o dia e lá acordei, meio sobressaltado, antes de voltar para o sono profundo no qual havia caído inapelavelmente logo à noite. Bom, agora espero sinceramente que o dia de ontem me tenha corrido melhor. A ver fui...

João Tavares