sexta-feira, março 09, 2007

Poesia

Porto d’Abrigo (e um distante ermo de Saudade)


Soam clarins e tubas de doer
O adeus sem o choro da abalada,
O sem-aceno, o gesto de não crer
Na lembrança sombria e apagada.

Alados rodopios, amiúde,
Sopram a aura nas velas d’ adejar.
Roça a vaga rubra do alaúde
Que aos impérios d’ontem fui tocar.

Veleiro de promessa, d’oiro mar,
Pesa o coração desancorado,
Aportam ao cais urnas de cismar.

Cidade branca, cidade oriental,
Estrangeiro e exangue de saudade,
Sangue do meu sangue luz em espiral.


Leonel Ferreira




O Livro de Judite

Não adianta, filha!
Os alvos linhos já não me atêm,
As nossas ficções não me entretêm,
Agora só cachimbos e raros vinhos.

O que queres que te diga?
Hoje e amanhã não são o mesmo dia
E até a Última Ceia cai aos pedaços.
Já não me afagam os regaços,
Não mais promessas, não mais desvarios.

Não me comovem achaques
Todo eu sou fumo e carambola
Sou a algazarra rústica dos taberneiros
E adeus, Judite, nunca mais!
O que queres que te faça?
Não fui eu quem plantou sempiternas,
Quem jurou e desfez os votos.
Agora, quando me quiseres falar,
Aparece lá para o meio da tarde,
A ver se és mais do que aguardente,
A ver se não me agoniam teus olores de Paris.

Chora
Que as lamentações só lembram gaita-de-foles
E o rufar do tambor dos Zés Pereiras.
Hoje vou sorver o mundo,
Pregar doutrinas dissolutas,
Cantar melopeias pelo amor.
Hoje só os cálices amornam.
Hoje só absintos e talvez ardor.

Antes a campaniça, antes a braguesa,
Antes os caretos, as folias e os festins.
Mais-quero meretrizes e claros sins,
Bater violento as cartas sobre a mesa.

Lembras os versos que te dediquei?
…«Manhãs d’oiro», «luas d’ alabastro»?..
Actos de contrição…
Singelezas desfeitas pelas auras da lucidez,
Hálitos que pressinto desprezos,
Rusgas nos teus meneios abonados
Que antigamente me embalavam quixotescos.


Leonel Ferreira