quinta-feira, dezembro 07, 2006

Número Dois

Editorial

Vida e Obra

Eis o caminho tomado ainda que não principiado. Não chegaremos nunca ao meio. Quando muito, ficar-nos-emos pela metade.
O que é criado fica inscrito na Ordem.
O que é a Ordem? É tudo e nada – é desordem.
Na Ordem, os factos têm muito pouca importância porque materiais, transitórios. Basta-lhes a imaterialidade e desvanecem-se entre poeira. Aquilo que permanece é o que não está documentado. Uma ideia, ainda que transcorrida no papel, há-de transbordar-se a si própria. É, contudo, imperioso que a ideia seja essencial no seu Ser e não no que lhe é extrínseco, que é precisamente o factual.
Um dos dramas da Criação – e ainda bem que assim o é – está na sua capacidade para nomear o inimaginável. Quando Homero descreve Helena de Tróia como a mulher mais bela do mundo, não pode contar com a ilimitada fantasia da limitada – ainda que serpenteante – mente humana. Dante não creu que no momento da sua morte iria encontrar o Céu, o Inferno ou o Purgatório tais os que descreve na Divina Comédia. Nada tem uma interpretação unívoca, mas a abertura de um texto é-nos dada pela sua capacidade para suscitar o máximo de interpretações possíveis. O criador, ainda que não esteja preso a intenções congregando o leitor, deve abster-se de apontar caminhos que fragilizem a criatividade de quem lê.
Não idear, não perfilhar dos términos, suspeitar do passo astucioso dos «ismos», não significa tudo isto condescender com qualquer tipo de cepticismo ou solipsismo. A transmutação das ideias é como o vendaval que leva e traz o que quer. É um acumular por forças, uma vitalidade feroz que devasta ao âmago de si. Estamos, portanto, convencidos – com toda a fragilidade dos convencimentos – de estados diversos de presença. A ideia comparece e há-de comparecer num lugar. Resta desobrigar-nos a colocarmos-lhe amarras. Recorrendo a Agostinho da Silva, o caminho não será nem o ortodoxo nem o heterodoxo; a única saída que volta a entrar nas coisas sem tocar-lhes é o movimento espiralado do paradoxo.
O velho Borges, por oposição ao jovem Borges, afirmou, num encontro entre ambos, que «o poema ganha se adivinhamos que é manifestação de um anseio, não a história de uma acção». A arte trava uma guerra contra a matéria, mas é imperioso que se negue a ser o que quer que seja, jogando, portanto, um jogo sujo contra si própria e em seu gravoso dano, sendo embusteira, desacreditando-se perante os que dela fruem, para logo reclamar a sinceridade das suas afecções.
O Logos de Heraclito unia o Céu e a Terra; era uma união do Homem com os Deuses e a Natureza. A História da Filosofia tratou de converter este Logos na frieza da Razão e do Logocentrismo.
Heidegger louva os tempos áureos da filosofia grega em que se não pensava em títulos para nomear o Pensamento. Ética, Lógica, Física.., foram denominações entretanto surgidas que, aparentemente, fortificaram os limites dum modo de pensar. É este um modo de pensar puramente entendido como technê, como formulação prática dum resultado que se quer delimitativo; que se quer, acima de tudo, proficiente e gerador de um algo que é o puramente representável – ainda e mais do que nunca, hoje, se olha a Universidade como o movimento progressista criador de um produto que se há-de impor no mercado.
O que a História da Filosofia se encarregou de fazer foi esquecer, não somente o Ser, não apenas edificar um pensamento como technê, - como resultado prático aprisionado a um tipo específico e exclusivista de linguagem - mas, de modo essencial, anular o elemento criador e primário da sabedoria: o Amor.
Não se pense, pois, que o labirinto entanto criado rejeita um saber de experiência feito. Numa contemporaneidade que desordena a precedência do abstracto e a subalternidade da experiência, o apelo ao experimentar deve ser encarado como um passo sério e matricial para o franquear de todos os limites intelectuais. O filosofar não deve ser visto como um espelho do si e do outro. Esse modo de pensar seria anti-filosófico porque recluso duma prova factual – criadora dum paradigma finito e extenso, bem diferente da Jerusalém Celeste, que a têm experimentado negligentemente. Deve, portanto, ser tomada a sério a necessidade de nos cumprirmos – e para nos cumprirmos devemos olhar para nós próprios – Conhece-te a ti mesmo? Talvez e para além do talvez - mas também para os arquétipos, que os há em toda a parte, para o bem e para o mal, para além do Bem e do Mal, para aquém do consciente e além da vontade, para tudo e para nada. Nada obedece a tudo? Tudo obedece ao nada.


Editor Dois – Leonel Ferreira

Poesia

Divãs de Um Sonho Pródigo (II)

Encho páginas em branco
Só para poder imaginar
O canto das marés.
Resumo as horas
Que restam à silhueta
Do mundo
No sono matiz da lua.
Num murmúrio inexacto de mim
Delineio nas nuvens das ruas
Memórias de rostos
De todos aqueles
Que se perderam
Há muito nas colinas
De meus sonhos.
E durmo pensando
Que a noite não me encontrará
No divã de um sonho pródigo.
Reis Neutel




Retorno

Na penumbra desta margem
Usei pernoitar, em tempos
E as minhas mãos traçaram
O contorno da solidão
Ainda ancorada
No mesmo porto de saudade.
Lá fora as crianças
Marcavam a distância dos dias
E as folhas imaginárias
As horas encurtadas
Nos versos
Que não escrevo.
Reis Neutel

Poesia

o Ocidente de um Sentimental

Procuro neste espaço talvez algo de essencial
não o que é, nem o que há-de ser só se e tal
se para tal não ocorrer o eventual

e a esta busca é um destroço de mar sem que o inventar


esqueço talvez por conivente que já não somos iguais
e estas artérias desfio avenidas de inventar
Terna mente esquinas por sem lugar

e a saudade é uma guitarra que cessasse em recomeçar


trato-te por tu, cidade maldita e ratos eventuais
e desembrulho-me sedas que são nas que só
descobrem apenas o que descoberto já está

pois da morte acho uma surpresa de estranhos,
haja ainda que conveniências a respeitar
e a guitarra só não exprime a vontade de se esperar.



despeço-me de ti
chamo-te e acuso de me acusares


Rui Gonçalves Miranda

Poesia

Criação Poética

Não há criação sem criador
Não há agência sem agente
Não há nada que seja só
Fruto da passividade da gente

Não há ideia sem pensador
Não há ímpeto sem vontade
O mundo é só o que vemos
Uma mentira na verdade

A obra do pedreiro
Não depende do arquitecto?
A pessoa que é hoje
Não nasceu de um afecto?

O poema não é só ele
É fruto de quem o sonhou
Existiria sozinho sem a pena
Que ao papel o colou?

Triste de quem assim pensa
Acredita no destino restrito
De que em cada santo dia
Só se faz o que está escrito

O objecto só o é
Na relação com o sujeito
Sem matéria de sonho alto
Nada se faz, nada é desfeito

Eu não me calo
(pois que me calem!)
Eu não desisto
(pois que me amarrem!)

Não há obra que seja
Que a um plano não obedeça
Todo o corpo – sem excepção
É comandado por uma cabeça

João Tavares



Sugestão

Sou duma raça de Heróis do Mar
Imortais na sua valentia e nobreza
Sou patrício dos que deram novos mundos ao mundo
Dos que uniram continentes e difundiram Portugal
Sou herdeiro duma tradição de Império secular
Duma cultura inclusiva e globalizante
Ensinaram-me a ter orgulho na Pátria
Que é os restos do que já foi
Enfiaram-me pelos ouvidos dentro
O fado que se canta
E enfiaram-me pelos valores dentro
O fado de cada dia que se chora
Por já não sermos o que fomos
Se é que alguma vez o fomos
Se é que o povo alguma vez
Foi o grande fazedor de grandes coisas
De grandes feitos (ou defeitos?)
Se sou o herdeiro duma tradição de Império secular
Então onde estão a coragem e a iniciativa
Que fizeram desta praia sossegada e periférica
O maior porto de comércio e movimento de Outrora?
Onde se esconde o espírito aventureiro
E empreendedor dos Maiores do nosso orgulho?
Porque é que preferimos ficar pr’aqui a chorar
O que já nem temos lágrimas para chorar?
Sim, sou herdeiro
Mas não sou herdeiro de nada que eu próprio não construa para mim
Não sou herdeiro de nada que eu mesmo não queira herdar
Se me querem pobre e coitadinho a chorar por D. Sebastião
Então façam-me uma lobotomia e prendam-me pelos pulsos
A uma qualquer casa de fados
Cheia de carpideiras profissionais
Das Artes e da História
Mas se me querem herdeiro a sério e a valer do que é Ser Português
Então sejam-no comigo
Arregacem as mangas
E partamos todos juntos para a conquista de um novo esplendor
Radioso e glorioso
Fruto de suor e vontade
Queiram fazê-lo e fá-lo-emos
Soltem as amarras, icem as velas, encham o peito
Vamos a isso
Sejamos patriotas no ser sérios e ter vontade
No ser pontuais e ter brio no trabalho
No dar o exemplo e cumprir objectivos
No ousar ser melhor e ir mais além
Sejamos merecedores do nosso passado
Sendo melhores no nosso futuro – agora!

João Tavares

Poesia

Criação dum Mundo

É por mim, afinal, que o medo seduz
Plácido, Tardio,
Diante da Sacrossanta porta
Aliás, nem os Silfos cantam nas florestas
Ao ecoar dos passos sobre as folhas
D’Outono perdidas
D’Outono achadas
Não vá o mundo cuidar de si.

E tenho cismado que me afagam
Leves impressões
Anjos da guarda repousando
Sobre o lasso nó de não haver tragédia
Asas esfaceladas que nimbassem
D’oiro o passar da vida.

Um gesto não é movimento
Mas aquém-aceno d’ entremeios
Que sempre giram e revolvem
Como a folha perdida
Que o Elfo traz ao peito

A Aurora imana
Ficções de um novo dia
O Arcanjo Uriel estende a mão
Ao rústico sepulcro
Que o mundo oculta
E não há reflexos d’água
Apenas o ídolo e a sua desmaiada nudez

Eis rebelando-se hediondo engenho
Inflamando as margens
Dos rios correndo estáticos
Das cinzas crendo o mundo
O Gnomo colhendo um cipreste

Leonel Ferreira




Eis o quarto…
Assearam-no ontem
Sinto olores d’ ontem.
Lá fora, os corredores estreitam outros quartos
Não os deixam respirar
Ponham-me a soro
E deixem entrar o Sol que me não amanhece
Não desperta
Não chama
Não vive
Deixem-me dormir.
O temor da vida
É eu fartar-me de dormir.
Repousasse o meu corpo na eternidade
Bem quentinho e aconchegado
E tudo lá fora seria o que é hoje
Mas não mais me convindo
Não mais o cidadão das coisas
E dos tratos
Apenas sono
Sono e soro.
Não sentir o eflúvio do caldo
Não sentir o gosto do pão
Apenas a narcótica agulha crivada no braço

Projectem o filme antigo
Sobre a vida de Cristo e o Império Romano
As suas luzes doiradas em bailados d’antemanhãs
Que sinto serpentearem
Por entre metais ecoando nas almofadas.
E os automóveis ressoando na rua
Ao longe…
Que a enfermeira me acaricie a mão
Que eu sinta os seus dedos níveos e delicados
Dizendo-me, pelas dobras dos lençóis,
O adeus do mundo.
O adeus do adeus de não estar.

Falta-me a ciência do astrolábio,
A coragem e o instinto do marinheiro.
Não adianta
Nada adianta coisa alguma
Nada adianta neste mundo
Mas como eu gostaria de não adiantar com estilo
Com a elegância de um Deus esteta
Ter névoa nos olhos
Nuvens e ondulações na razão dos sítios
As células multicolores contorcendo
Funâmbulos da anatomia
Lâmpadas estalando silêncios
E o frio-gládio no braço
Soro que me sustém
Uma revista pousada sobre a cómoda branca
Que me hão-de ler alegremente
…«crustáceos»…
…«sedimentos»…
…«hipostenia»…
…«litocromia»…
…«tudo»…
E a paz aparente
Aparente e concreta
Horrendamente concreta
Que o jarro sobre a mesa-de-cabeceira não ilustra fielmente
O médico passando
O seu metódico respirar
Sopro de cálamo
Hálito dum éter que não existe
E o diagnóstico final:
…«Eterna convalescença»…


Leonel Ferreira


Prosa

Encontro

Turva-se-lhe a visão, cheira-lhe ao passado, tão distante, tão claro. Lembra-se de tudo, de ditos e feitos e feitos pelos ditos não cumpridos. A sabedoria que hoje tem, tão sua, sabe-a por ser de outrem, mas que outrem? De si a ele não sente uma fenda que seja. Não há outrem no desejo que agora sente, na força que o supera e maldosamente não lhe mostra que existe, que age, interfere, retira, ai se a visse… O portão! Tantas portas lhe abriu, tantas vezes através dele queria sair. Conhece-lhe cada milímetro, por instantes o olhar fica baço, o concreto que foca está longe, tão longe que as pernas andam sozinhas. Metros à frente pergunta como chegou ali, não se lembra. Inexplicavelmente sente vontade de lembrar-se de coisas que esqueceu por parecer não valer a pena serem lembradas. Ouve um piano, sons graves, é lenta a cadência, demasiado lenta. Agressiva. Pára, pára!...

“Ai, o meu diz logo!”,”Ai, o meu não!”, “O meu é mais calmo…”, “Ai o meu não!”. Como um bom debate chama sempre mais gente, Ilda também entra, “ó filha, mas olha que o meu ainda é pior!... O teu quê? E o meu?”, “O meu é que não entra nessas coisas”, diz outra, “oh, e o meu também é só porque…, enfim!”, “É como o meu então!”, responde Odete, a mais calada, numa surpreendente admissão de similitude do “seu” com outro qualquer! Quando por momentos se fez silêncio, Paula, de forma a não deixar escapar o holístico sentido do diálogo, não resiste a um último “olha, eu sei é que o meu dizia logo…”.
À entrada era isto que Luís ouvia, em segundos percebeu porque raras vezes lá ia. Do pai tinha saudades, da mãe…do resto nem por isso, percebe-se porquê… Maior é o espelho paterno em si mesmo a cada dia que passa. O filho de Luís olha para o pai com a mesma sensação. O que estranhava é no que se transforma, não sabe porquê. Luís é hoje mais o pai que o filho, é hoje com orgulho o que não queria ser. O novo tem dois caminhos, o caminho do velho e um outro caminho qualquer. Do velho foge, para o outro vai porque é ilusório. Ao velho quando e quanto mais velho vai dar por admiração. O corpo fracassa, o espírito cresce. Parece condição necessária, a contradição de um espírito aglutinar tanta mais força quanta mais força perde o corpo. O eterno jogo das escolhas, das percentagens do inquantificável.
Na sala mantinha-se a conversa, em crescimento exponencial no que toca a respeito pelo outro, falam todos, tanto e tão alto que ninguém ouve o que é dito a não ser o que sai da sua boca. Meritória, porém, a tentativa de Paula continuar a do falar do “seu” mesmo quando os únicos ouvidos atentos são os seus…
No seu tempo, o pai de Luís diria “Ardeanho! Estafermos das cachopas”. Luís, estridente, no alto da sua impaciência pensa alto outras coisas, mais secas e suas contemporâneas: “Ah grande puta que as pariu!”

O quarto parece tão escuro e diferente do resto, Deus pinta-o de tons lúgubres, obriga toda a gente a vê-los, estão já fixos, ainda que encavalitados na luz que abraça o quarto por inteiro. Os lindos olhos da mãe de Luís são-no cada vez mais num tempo que não este, repousam enfraquecidos num corpo prostrado. A seu lado está o motivo da pouco habitual reunião de tanta gente num sítio onde não costuma estar gente nenhuma, à excepção da necessária claro. Da pele ao osso não há nada, Luís nunca julgou ser possível ver o seu primário conselheiro… assim, completamente subjugado à lei dos anos, no momento em que o milagre de um simples e minúsculo músculo de sangue não o deixa ainda ser um cadáver. No meio de sorrisos e gargalhadas forçadas surpreende a lucidez do velho homem. Não fala, não emite qualquer onomatopeia, não consegue, apesar do esforço. O seu veículo de comunicação, a mão, emociona pela demonstração de entendimento de tudo o que se diz, pela nitidez do que pretende dizer. À entrada a mesma secretária, relembra-se Luís, o mesmo relógio, a mesma violência com que os segundos cavalgam para sabe-se lá onde. Batem no tempo como martelos.

“Porquê? Para quê? Por quem? Até quando? Pela mão de quem? Porque razão começou? Porque não pára? Porquê?”

“Está visto! Vamos lá embora senão o homem vê tanta gente junta ainda pensa que está a morrer, ele ainda está fino caralho!”. Qual a lógica de um palavrão senão para esconder o que já todos vêem? O passo apressado denuncia a transformação que sentiu dentro de si. Não é mais o mesmo, nunca mais. Ao passar na sala a mesma conversa, “Com o meu também foi assim, mas o meu é coisa ruim!”,”Se ouvisse o meu então…”, desta vez nem ouve, só vê o chão passar-lhe para trás das pernas num caminho sem retorno. Tic-tac-tic-tac… O coração emudeceu, o piano reapareceu e corre contra ele, passou por ele, vai para de onde veio! O relógio acelera, tic-tac-tic-tac-tic-tac…

André Faia

Conto

A Árvore Gigante

Era um tronco que se encurvava, levando o nariz quase rente ao balcão. Por detrás desenhava-se um manto negro, uma sombra, como um estandarte que, arrastado pelo vento, se fixasse no alto de uma montanha. Por entre o manto, cingia-se uma réstia de luz alimentada por um candeeiro pendurado ao tecto através duma corrente de vários tons enferrujados que outorgavam uma soturnidade desusada àquele lugar. Este manto escuro e este rastro de faúlha, recostavam sobre um conjunto de estantes cobertas por milhares de cartas, documentos, folhas, listas, pergaminhos soltos, livros estraçalhados, cordéis esquecidos. Todos estes manuscritos estavam húmidos e arrojavam um cheiro de água solidificada no antigo. A sombra, a subtileza da luz e a humidade dos volumes, davam a sensação de se estar entre nevoeiro, junto a um rio.
- Boa noite – começou timidamente.
Atrás do balcão ouviu-se um ciciar aflitivo de impaciência, o que lhe pareceu um mau presságio. Lembrou-se então dos conselhos da mãe e respirou fundo, esfregando os polegares. O outro continuava a escrever sobre o balcão, em sussurros de uma língua ignota ainda que a tivesse ouvido.
- Senhor… Venho por parte do senhor meu pai, o senhor… - e disse um nome que demorou mais tempo do que um “estava a velha no seu lugar veio a mosca chatear a mosca na velha a velha a fiar estava a mosca no seu lugar veio a aranha chatear a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar estava a aranha no seu lugar veio o rato chatear o rato na aranha a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar estava o rato no seu lugar veio o gato chatear o gato no rato o rato na aranha a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar estava o gato no seu lugar veio o cão chatear o cão no gato o gato no rato o rato na aranha a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar estava o cão no seu lugar veio o homem chatear o homem no cão o cão no gato o gato no rato o rato na aranha a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar estava o homem no seu lugar veio a morte chatear a morte no homem o homem no cão o cão no gato o gato no rato o rato na aranha a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar”. Ao calar-se, fez um esforço para abrandar o ritmo da sua respiração e escutou. Continuava o sibilar serpenteante, e o ouvinte nem sequer tinha ainda levantado a cabeça para olhar o rosto do visitante. A figura da mãe já não assomava indiferente às forças outras, rompendo os medos da escuridão. Aquele corpo curvado, a cabeça calva, enrugada e aureolada por um cabelo branco que se encrespava à luz do candeeiro, a pele tingida de mil cores que o fazia encontrar-se com as história do avô sobre as pestes da Era Alva, tudo isto era, para ele, o medo que a noite traz só por ser escura – porque é na penumbra que tudo se esconde, porque é a treva quem oculta o que é necessário que se não saiba senão por espreitadelas. Lembrou um pesadelo que o afligia frequentemente – enquanto sobe uma escadaria sabe que não pode olhar para baixo, porque se o fizer verá um vulto surgir de modo quase imperceptível, lá no fundo. Mas porque sabe que é um sonho, sabe também que não pode escapar a que olhe para baixo. E porque sabe que é um sonho, sabe que, não importando a distância que o separa do vulto, há-de ser alcançado.
- Meu menino – começou o corpo curvado com uma voz rouca e arrastada, sem erguer a cabeça embora se já pudesse ver a dupla ponta da sua língua enrolada por fora da boca conferindo às palavras um enrolamento que as tornava quase inarticuladas e cujo sentido a muito custo se descortinava –, o que o senhor seu pai me fez é o que se não faz nem aos piores Adamastores do outro lado do mundo, se acaso alguém conseguisse contra eles exercer qualquer tipo de poder.
Ergueu depois a cabeça e ele pôde ver por fim o seu rosto enrugado, os lábios grossos gretados, as pestanas brancas e hirsutas unidas num «V» que doava aos olhos uma feição verdadeiramente austera e até agressiva. Voltou a atenção para o pergaminho e recomeçou a escrever. As unhas enormes dos seus dedos roçavam no balcão, tacteando os interstícios das palavras. O rapaz não sabia o que fazer; se falar, se esperar por outra observação, por um sinal para que pudesse finalmente expor os propósitos que ali o tinham levado. Sabia que estaria bem melhor debaixo do seu cobertor, junto à lareira, a ouvir a chuva estalar no vidro das janelas e a voz nostálgica da mãe a contar as histórias das batalhas que ouvira do avô e que repercutiam pelas paredes das casas de quase todas as famílias, que tinham sempre algum velho conhecido testemunhando a Guerra das Sete Alianças. Mas esta era uma noite diferente; sentia as mãos frias e o seu entendimento distendia-se um pouco entre a frieza dos dedos e as dúvidas suscitadas pela necessidade de confrontar o estranho escrevinhador. Notou então que os seus próprios dedos estavam escoriados de tanto esfregarem uns nos outros. Olhou em volta, aspirou amplamente o ar das folhas húmidas e arriscou:
- Pois bem meu senhor, o meu pai manda dizer-lhe que lamenta o mal-entendido com a Árvore Gigante e manda também fazê-lo saber que está disponível para compensá-lo de todos os danos que possam ter sido causados.
- Se está disponível, então porque não veio ele ao invés de me mandar um fedelho assustadiço? – Retorquiu o velho num olhar esguio penetrando entre a hesitação do rapaz, como se estivesse a colocar-lhe os nervos à prova. O rapaz, por sua vez, só conseguiu balbuciar parvamente:
- Eu não sou fedelho…
O silêncio instalou-se entre a respiração ofegante do rapaz, o sibilar aflitivo do escrevinhador e o ondear caprichoso das folhas sobre as estantes. A lua jorrava a sua luz por entre uma abertura gradeada quase junto ao tecto. Debalde esperou que aquele estranho ser o interpelasse sobre os supostos prejuízos causados pela Árvore Gigante. Apenas o vento, bramando em sibilos aflautados pela escadaria dando acesso à sala, o acalmou de um modo estranho ainda que breve. Olhou a sua mão tisnada e fria e fez um esforço desmedido para estancar as lágrimas. Mas a vã força dos seus nervos soçobrou perante a lembrança da voz terna da sua mãe e começou a fungar.
- Meu rapaz – interrompeu então o escrevinhador cessando enfim a sua escrita –, em nome dos Espíritos da Floresta, não me faça uma coisa dessas que me fere o coração ver os vindouros desta terra perderem-se entre choradeiras.
Estendeu um lenço amarfanhado e imundo, e como não obtivesse resposta ao seu gesto, recolheu-o ao bolso e continuou:
- Ora vamos lá, ora vamos lá. Com que então o seu pai quer redimir-se do erro… Mas como? – levantou-se e começou a andar dum lado para o outro, com as mãos enlaçadas atrás das costas. Dir-se-ia que todos os seus movimentos tinham o intuito de dissimular o choro do rapaz, como se aquela situação representasse, para ele, um incómodo impossível de suportar. – Porque isto de plantar Árvores Gigantes tem muito que se lhe diga. E olhe que eu não faço parte daquele grupo de idiotas que plantam árvores dessas pelo quintal. Uma Árvore Gigante precisa de espaço, ainda que o seu caminho seja sempre o alto dos altos. Mas isto que me aconteceu tem deixado muita gente boquiaberta, pois nunca tal coisa havia ainda acontecido. Lembro-me que um indivíduo d’Além dos Bosques Prateados plantou uma Árvore Gigante perto dum rio que ao décimo terceiro dia secou - o rio, pois claro. Como quisesse o homem restituir-lhe a vida, pegou num machado e, resoluto, caminhou em direcção à Árvore. Quando começou a dar os primeiros golpes, uma chuva torrencial jorrou desde a árvore até à sua casa, aumentando o círculo de tempestade ao ritmo das machadadas, que pouco estrago conseguiam provocar no tronco robusto da malvada. O homem era conhecido pela sua obstinação, mas de nada lhe valeu a insistência, bem pelo contrário, que a água lhe chegava aos joelhos já o seu ânimo começava a esmorecer. Deve adivinhar que o homem desistiu quando começou a sentir a água a estorvar-lhe o movimento dos braços. Assim que parou de ferir o casqueiro da árvore, logo a chuva cessou, logo as nuvens se dissiparam para dar lugar ao céu ordinariamente limpo. Apercebeu-se então do perigo que corriam os da sua aldeia, pois se árvore estava plantada no ponto mais alto do pequeno espaço d’Além dos Bosques Prateados, ele começava já a indagar os estragos que teriam sido provocados nos pontos mais baixos e habitados. Dirigiu-se apressadamente ao mais próximo aglomerado de casas, e qual não foi o seu espanto quando não encontrou vestígios de enxurrada, mas tudo ordenado como habitualmente, que aquilo é gente de grande esmero nos asseios das ruas e das casas. Ao perguntarem-lhe a razão pelo seu respirar ofegante, respondeu que andava atrás dos habituais ladrões de laranjas que assaltavam amiúdas vezes o seu rico pomar, pois logo viu espelhada no rosto das gentes a razão pela qual se não deve tentar derrubar árvores gigantes.
De novo irrompeu o silêncio. A voz do velho não ficara menos gorgolejante com o avançar da narrativa, mas o rapaz já não sentia o vacilo dos joelhos. Havia naquela história o pormenor – pensava-o assim – daqueles que, estimando as histórias e os insólitos, partilhavam do tipo de afectividade da sua mãe. Aproveitaria então o momento para intentar, sem embargo, a abordagem pedida pelo pai? Retornaria às cautelas aconselhadas pela mãe? Pensava agora que, afinal, talvez não fosse tão difícil como pareceria à primeira vista, abordar o estranho habitando aquela torre onde confluíam todos os sussurros nocturnos e cujo nome ninguém proferia por receio de um ensejo qualquer e misterioso que nunca aparecia mas cuja sombra sempre ameaçava. O relator do incidente da árvore voltou a curvar-se sobre o balcão, pegou na pena e continuou a escrever. O vento de novo uivou e a chuva estalou mais fortemente sobre o telhado. O rapaz esfregou os dedos das mãos, retesou os dos pés e arriscou:
- Meu senhor… o meu pai manda dizer-lhe que lamenta o sucedido e que é verdade que nunca antes se ouviu falar de tal coisa. Por isso pediu-lhe que me mostrasse o que se comenta por aí mas que ainda ninguém viu com olhos de ver, que são, afinal, a única testemunha credível para quem lida com estes tratos. O meu pai fará dos meus olhos os seus e corrigirá, na medida do possível, todos os danos que lhe possam ter sido causados.
Calou-se e pôs-se a escutar o eco das suas palavras. Custou-lhe acreditar ter proferido tais sentenças, todo cheio de si, não mais o menino assustadiço. Agora era o rapaz desembaraçado que os fregueses do seu pai tanto estimavam por sempre se ter em tão boa conta os rapazinhos “d’olho vivo”.
O escrivão ergueu lentamente o olhar e, num repente, desprendeu um esgar de riso que lhe repuxou as linhas do rosto, desvendando os dentes enormes enterrados nas gengivas descoradas. O rapaz estremeceu e recuou sobressaltado, com as mãos atrás das costas, tacteando o ar à procura de um apoio. Mas logo susteve o ímpeto ao ouvir de novo o arrastar daquela voz inumana:
- Não te assustes. Não há nada como uma boa gargalhada para resolver os problemas. Eu sei que é um lugar-comum dizer e fazer isto, talvez até mesmo uma embustice. Mas faço-o na melhor das intenções. Esqueci-me entanto que o meu aspecto divertido não é menos assustador que o introspectivo.
O rapaz não sabia se sorrir ou afligir-se diante do aparente à-vontade alongado naquele infausto rir. Ele, pelo menos, julgara impossível não tremer sob o desalinhar das rugas no rosto indefinível que o fitava em aparente mansidão. De súbito, ouviu passos de alguém que subia as escadas, numa cadência que se tornava tanto mais clara quanto mais desordenadamente se uniam as circunstâncias do lugar no espírito do rapaz. Era o medo que fragmentava, num duelo atroz, de si para si, a percepção das coisas no rapaz lúcido que pressentia a chegada de algum mistério nunca antes visto e no rapaz inapto para razoar sobre tudo quanto lhe estava a acontecer. A porta rangeu, a sala foi devastada pelo som do arrasto de correntes, e um rosto espreitou timidamente:
- Posso entrar, patrãozinho?


*

- Então e depois?
- Era, claro, um dos seus criados. Eu pouco sabia do governo daquela torre. Na minha infância sempre vira aquele castelo de telhados pontiagudos ao longe, mas nada mais. Apenas o vago rumor de um vulto que vagueava pelos vastos salões que todos adivinhavam, algumas histórias estranhas sobre outros estranhos seres que visitavam o castelo; seres do outro lado do mundo, chegando à vila em carroças barulhentas de gonzos reboando pelos montes e desassossegando o descanso dos animais. De modo que, enquanto convivi com o estranho escrevinhador, sempre o espectro da novidade pairou no meu entendimento. Deve fazer uma ideia de como a singeleza de espírito dum rapaz é temerosa diante das brumas do desconhecido. Pois bem, aquele mistério da minha infância veio a transformar-se num enigma assaz curioso. A meninice gosta dos enigmas e não dos mistérios aos quais hoje nós, pobres sábios, nos dedicamos. Olhando para trás, é sempre fácil condescender com um sorriso perante as nossas atitudes, mas eu tenho um respeito, talvez imoderado, pelo menino que fui; a ver vamos. Olhe, tomemos um chá e deixemos a historieta repousar um pouco nas nossas sensibilidades; misturemo-la com as fragrâncias das ervas e deixemo-nos levar para as margens do rio da Penedia, onde são colhidas.

*

A noite adensara-se por dentro da sala. A humidade das paredes e o cheiro das folhas enfaixadas entre o limo das estantes entorpecia o entendimento do rapaz, que entretanto sentia os joelhos vacilarem no cansaço de não haver assentos. Começara, aliás, a desviar a sua atenção para as possibilidades suscitadas pelo lugar e pela figura com quem tentava manter um diálogo. Imaginava a vida daquele estranho ser, nunca descansando, deambulando entre os salões da torre, de facho na mão, à procura de novos pergaminhos cujos segredos se manteriam insondáveis para os demais. Isto era, estava bem de ver, um privilégio. Destarte descobria ele o mundo que outrora julgara impenetrável senão nos sonhos atiçados pelo calor da lareira e por rumores que o sobressaltavam se acaso ouvisse algum ruído no manto da noite.
- Patrãozinho, está tudo pronto, como pediu.
- Muito bem. Partamos então!
O criado segurava dois archotes. Estendeu um ao seu senhor e pousou a mão sobre o ombro do rapaz. Começaram a descer as escadas pétreas espiralando no centro da torre. O rapaz sentia-se afundar no breu da terra, dispondo-se a explorar os enigmas de catacumbas nunca antes vistas. Apenas conseguia ver as costas curvadas do escriba e o seu cabelo prateado coroando a cabeça calva. Sentia a mão pesada do criado no seu ombro, guiando-o entre a longa e estreita escadaria. Para além da porta dando acesso à rua, as escadas continuavam a descer ameaçadoramente. Ao notar que o escriba ignorou a dita porta, começou a interrogar-se sobre o tempo que faltaria para que atingissem o último degrau; e a cada interrogação, um novo lanço de escadas assomava por debaixo dos seus pés cansados. A sua respiração tornara-se ofegante e ele sentia o ar cada vez mais pesado, o fundo brumoso gotejando sobre o seu cabelo. O passo cadenciado dos outros dois seguia sem a menor interrupção e ele sentia o ânimo fraquejar, disfarçando, porém, a fadiga, para evitar algo, não sabia bem o quê.
Subitamente, sentiu a mão do criado a apertar-lhe o ombro e transpôs o último degrau. Estranhou porém o facto de não ter cessado a descida, pois o seu corpo era obrigado a inclinar-se para trás e todo o seu peso flectia sobre os joelhos. Já não pisava a pedra dura das escadas mas um solo macio que parecia ser de terra molhada. Como o criado adivinhasse a interrogação do rapaz, estendeu o archote para o chão e ele conseguiu ver de facto a maciez do lugar que pisava, naquilo que lhe parecia ser terra recentemente revolvida. Intensificara-se o cheiro da terra que se lhe entranhava na roupa e na pele, e ele não compreendia como podiam os outros dois continuar sem hesitações, sem pausas entre o caminhar metódico e cadenciado.
Ainda que tivesse consciência do passar lento do tempo, sabia que, pelo menos, duas horas tinham passado desde que começara a descer. O silêncio apenas era interrompido pelo sibilo do escrivão ou pela tosse ocasional do criado, e o rapaz não se aventurava a esboçar o menor ruído, o menor sinal de cansaço; limitava-se a esperar, não sem grande sofreguidão, o desfecho daquela caminhada em direcção ao abismo. Entre a gravidade do momento impunha-se, de quando em quando, um ou outro pensamento mais trivial que o puxava para o ar livre do alto - «agora sei como se sentem as toupeiras» -, mas assim que se sentia acordar pelo cheiro mortiço da terra, logo invejava a sorte daqueles bichos que se abismavam, por sua natureza, nos berços e fundações do mundo, sem inibições que não as da natural feição do seu corpo. Passados anos, o rapaz haveria de pensar que aquela descida lhe tinha sido, de um modo essencial, absolutamente íntima e que fazia dele uma parte dum projecto superior, cumprindo, afinal e tal como a toupeira, o seu natural propósito. Mas este pensamento dar-se-ia sobre o ulterior descanso, na degustação dos seus odoríferos chás na ou inalação dos inebriantes fumos do tabaco. Durante a descida, o incitamento que as profundezas lhe provocavam nos sentidos, ensombrava toda e qualquer confiança na regeneração das suas forças.
Por fim, chegaram a uma espécie de câmara; parecia ter sido escavada pelas erosões do tempo tal a sua assimetria. As paredes de terra eram trespassadas por uma espécie de caule denso sobressaindo como uma coluna que amparasse a estrutura do espaço. Ao redor da câmara entreviam-se várias entradas dando para outros túneis, sombras esféricas que não apetecia desvendar. O escriba caminhou até ao centro da câmara, de mãos enlaçadas atrás das costas e disse:
- Caminhamos durante algum tempo; descansemos um pouco.
O rapaz suspirou aliviado, retornando depois a inquietação quando se apercebeu que não tinha saído da escuridão dos túneis mas apenas afluído a um lugar deprimente pela sua promessa vã de ponto de chegada, que era, afinal, um ponto de partida para possíveis novos problemas. O criado encostou-se a uma das paredes, apontando o archote para um outro túnel como se investigasse, desinteressadamente, as trevas daquele lugar. O escriba resfolegou por entre o ar abafado:
- Se acaso desenhássemos uma linha vertical até ao ar livre, não sei a que lugar confluiria. O que sei é que não estamos por debaixo da nossa prezada Árvore Gigante. Contudo, já deve ter reparado nos relevos das paredes destes túneis. Pois fique sabendo que são as raízes da nossa – minha – Árvore.
O rapaz não entendeu o que queria dizer o escriba. Perscrutou ironias e dissimulações mas não as encontrou. Cansado já daquilo que, para si, eram meias palavras, deixou cair os braços e num suspiro protestou:
- Não entendo o que quer dizer.
- Não entende? – inquiriu o escriba. - Pois bem, esqueça o sentido oculto e atente unicamente no sentido exacto e restrito das minhas palavras. A Árvore Gigante que o seu pai me vendeu não medra para cima mas para baixo. As suas raízes propagaram-se pela terra dentro até onde ainda não consegui abeirar-me. Creio que está em constante e, receio, infinito crescimento. Veja então com os seus próprios olhos e faça o favor de relatar o facto ao seu querido pai.
O escriba virou costas ao rapaz e esgueirou-se na escuridão de um dos túneis que partiam desde a câmara. O criado estendeu-lhe o archote e correu a seguir o mestre. E ele ali ficou, na escuridão da terra, segurando o archote e a sua trémula chama, cuja luz embatia nas paredes, desvendando mil sombras ameaçadoras. Viu-se subitamente no desespero de estar só e abandonado, tendo a impressão de uma longa e intransponível distância entre si e os seus. O grito que tinha na garganta, conteve-o não sabemos nós a quanto custo. Apertou a mão livre contra o peito, franziu o sobrolho e, com a outra mão, apontou o archote para o túnel por onde tinham descido. Ao lado, outros dois túneis davam a impressão de subir, ainda que menos acentuadamente. Todas as outras entradas apontavam para a direcção pela qual tinham seguido os outros dois. Continuava a não saber o que fazer; a dúvida assomava ainda portentosa e inabalável no seu entendimento. Queria todos e nenhum caminho simultaneamente. A sua vontade de descoberta não era tão inabalável que o obrigasse a decidir-se pela descida; no entanto, continuava a não distinguir um traço firme nas intenções e palavras do escriba, e algo lhe ordenava que não voltasse a casa sem respostas mais concretas. Baixou a cabeça, quedou os braços e o archote pendendo da mão iluminou o chão húmido e revolto.
O tempo foi passando, e a cada instante girando nos seus sentidos, lembrava que talvez um pouco mais de determinação lhe tivesse concedido o descanso do momento presente. E este circunstancialismo das coisas, este renovar permanente da vontade, tudo isto convergia no medo da escuridão.

*

- Começo a ficar intrigado, meu querido amigo. E não é nada bom para nós, velhos sábios, deixarmo-nos cair sob o despotismo das paixões. Há já demasiado tempo me vem o amigo falando de escuridão, túneis e escribas; de medos, afectos e impressões. Mas afinal de que embuste se trata? Pois se nunca em toda a minha vida ouvi falar de tais incidentes com Árvores Gigantes… No ascetério onde cresci, havia muitas dessas árvores; lembro-me das subidas intermináveis que fazia com os meus mestres e condiscípulos, de dormitar nas copas e fazer fogueiras nos seus ramos frondosos – facto este que sempre muito me espantou, o de fazer fogueiras em cima de árvores - de começar a sentir o fraquejar das forças e o asfixiamento das altitudes. Sei de alguns incidentes, tal o que descreveu na historieta do escriba sobre a estiagem do rio; essas Árvores sempre prejudicam outras forças da natureza que possamos considerar rivais na grandeza. Mas essa inversão de crescimento deixa-me assombrado. Que bruxaria é essa, meu querido amigo? Continue, mas sem delongas, por favor. Toda a minha atenção se alonga, perigosamente, em direcção ao desfecho.
- Tem razão, meu bom amigo. Temo ter alongado as minhas percepções circunstanciais. Já lá vai muito tempo, mas as impressões continuam tão vivas como se tivesse terminado agora de o viver. Talvez no final me perdoe este vagar em tudo quanto lhe asseguro que senti, que é, ainda assim, uma ínfima parte do irreal que ainda hoje é, para mim, aquele dia. Note, contudo, que eu atribuo especial atenção às origens. Peço-lhe, pois, que se embrenhe numa tal suspensão de espírito, que lhe seja alcançável o mundo que vai para além de tudo quanto lhe tenho falado. Continuemos então a narrativa, não sem antes fumar um pouco de tabaco nos nossos tão úteis e estimados cachimbos.

*

Um leve tremor ecoou pela terra. O pó caiu sobre a cabeça do rapaz e fê-lo olhar para cima, com os olhos semicerrados, à procura de razões para aquela súbita vibração. As raízes dos túneis estremeceram e começaram notoriamente a estreitar-se em direcção ao centro. O rapaz levantou o archote e apontou desconcertadamente em todas as direcções, desenhando um círculo de luz que irradiou o alvoroço da câmara. O tremor aumentava também, acompanhando o aperto cada vez mais asfixiante das raízes da Árvore Gigante. Irremediavelmente, o rapaz viu-se obrigado a escolher um dos túneis por onde escapar. Dirigiu-se à desembocadura por onde tinha vindo desde a torre, mas assim que começou a subir o íngreme e escuro carreiro subterrâneo, o seu íntimo arrancou-o à determinação impensada da fuga. Pensou no tabelião e no seu criado, e imaginou-os soterrados no breu da terra. Logo desprendeu numa correria sobressaltada por debaixo de todo o frémito irrespirável da escuridão. Assim que alcançou novamente a câmara – ou o espaço onde esta tinha estado, pois não lhe reconheceu as dimensões e confluências anteriores – viu-se obrigado a seguir por um dos outros dois carreiros que subiam exactamente na direcção oposta à qual tinham seguido os outros dois. Pensou já não poder salvá-los da queda. Aliás, teve uma certeza aterradoramente inabalável de que ele próprio estaria condenado à sepultura e ao abandono nos abismos da terra. Correu desnaturadamente, até sentir os joelhos queimarem de cansaço. O pó, o suor, a escuridão e o ar pesado faziam-no suspender o atropelo da correria. Recostava-se na terra húmida do túnel, cativo do fragor de martelos batendo ferro que era aquele estrondo medonho das entranhas da terra. Enquanto se lançava pelo aclive subterrâneo, tropeçou numa das protuberâncias e estatelou-se no chão, rebolando pela descensão abrupta em que o carreiro subitamente se revelava a cada distância que o rapaz ia encurtando, à custa do rebolar do seu corpo.
A trepidação cessou. Estava envolto na mais cerrada escuridão, pois no meio da queda tinha largado o archote. Deixou-se ficar deitado na humidade da terra, com os olhos abertos fitando a escuridão e respirando sofregamente, não só pelo ar sufocante mas mormente pelo cansaço; cansaço do corpo sujo, da longa caminhada irrompendo pelo breu, da solidão, do silêncio e tremor horrendos da terra.
Quando ergueu finalmente a cabeça, viu algo brilhar a uma relativa distância; um objecto cuja cintilação iluminava as paredes próximas, o que o fazia concluir estar numa câmara de dimensões superiores à anterior e com um objecto luminoso num dos cantos. Levantou-se e dirigiu-se, às cegas, ao encontro da estranha luz. Hesitou pegar-lhe, mas atendendo a tudo quanto já lhe tinha acontecido, achou improvável afligir-se com o que quer que ali houvesse de maléfico e pousou as mãos sobre o objecto. Um clarão jorrou em espirais sob as suas mãos e ele sentiu as vibrações voltarem, desta vez com mais violência. A terra polvilhava a sua cabeça e ele levantou-se a muito custo, com o objecto luminoso aclarando o caminho a palmilhar. Subia o declive por onde tinha caído enquanto o túnel tentava engoli-lo, cessando os caminhos que iam ficando percorridos. Por detrás de si, o chão ameaçava devorá-lo, pregando-se ao movimento dos seus pés, como ondas e afluxos de masmorras subterrâneas bosquejando a sepultura. De súbito, sentiu algo aprisionar-lhe os pés e caiu. Dir-se-ia que as raízes da Árvore Gigante tinham acabado de cumprir um estranho propósito. Adivinhar-se-iam os gestos de um destino concretizado numa raiz enleando os pés de um rapaz que, obediente aos propósitos simples do pai, cumpria os propósitos tremendos do Mistério.

*

- Pois sim… e então?
- Então, acordei no meu quarto, na minha própria cama. À cabeceira, a minha mãe afagava-me os cabelos. De pé, junto à porta, estava o meu pai em amena cavaqueira com o tabelião e o seu criado.
- E é só?
- Sabe… todas as vidas têm uma origem, sendo incerto se há ou não um princípio. No que me concerne, a minha origem soçobrou perante a inclemência do tempo; já o meu princípio está todo contido naquelas galerias e túneis. O meu pai saldou a dívida que tinha para com o tabelião. A ascendência que essa dívida cumprida teve na minha vida é um assunto para outros dias, ou noites, que com tudo isto me ausentei da noção do tempo e não me apercebi da hora que se já fez tarde. Quem sabe, talvez um dia, eu possa contar-lhe os dias que sucederam o meu princípio.
Leonel Ferreira

Ensaio

D’ “A Arte Como Processo”, de Viktor Chklovski
(Um provável aparente resumo)


1. Soyuz Sovietsky Socialisticesky Respublik (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas)

Grande Mãe Rússia, Império bi-continental, Pátria do Grande Czar Nicolau II, Nação de nobreza dura e rural, terra de Boiardes que governam as distantes quintas a milhares de quilómetros de distância nevada, lar de milhões de servos miseráveis, brutos e ignorantes, nave de súplicas clementes por pão e justiça, praça de violenta repressão imperial, beco de vodka e jogo e desespero e promessas e sonhos e vontade e…
...1917…
…Grande Mãe Rússia, União de Repúblicas Soviéticas, Pátria do Grande Líder Lenine, Nação de politburo socialista, terra de comissários do Partido que representam a vontade do Povo nos Gulagues a milhares de quilómetros de distância nevada, lar de milhões de trabalhadores e operários submetidos à reforma agrária e à colectivização do património, nave de súplicas clementes por pão e justiça, praça de violenta repressão revolucionária, beco de vodka e uniformes vermelhos e promessas de socialismo real e sonhos e foices e martelos…

2. À luz das lâmpadas alimentadas pelo gerador comunitário

Utopyograd, Região de Novgorod, URSS, 21 de Novembro de 1971, 18h41.
“Camarada Doutor, ainda temos algum vodka que sobrou das comemorações da Revolução. Vai um trago?”
“Não, obrigado, Mikhail. O dia foi longo, mas só agora é que vou jantar e só depois é que posso limpar a garganta com pomada…”
“Muito bem, o Doutor é que sabe. A propósito, será que o Doutor me pode ajudar numa coisinha que me anda a moer a cabeça? Mas tem de me prometer que não diz nada a ninguém.”
“Diz, Mikhail…”
“É que eu hoje, quando fui à Assembleia Municipal do Povo, ouvi para lá dois camaradas a falar sobre poesia. Um deles disse que a poesia era uma coisa bela, sem palavras que a pudessem sequer descrever ou classificar, que era Literatura. O outro disse que para ele a poesia não fazia qualquer sentido, dando mesmo o exemplo de um camarada que escreveu, lá para os lados de Vladivostok, um poema sobre a solidão. É claro que isso lhe valeu uma reprimenda valente – onde já se viu, sentir solidão numa Comuna de mais de 200.000 pessoas? Ah, o segundo camarada referiu ainda que não via qualquer diferença entre uma lista de componentes para alfaias agrícolas e um poema, que não percebia o que fazia com que um fosse Literatura e o outro não.”
“E então, Mikhail, qual é o teu problema exactamente?”
“Bom, é que eu não sei se um poema é mesmo igual a uma lista de componentes ou se é uma coisa diferente. O Doutor quando estudou em Moscovo não aprendeu isto?”
“Sim, Mikhail, aprendi isso e muito mais. Mas sabes uma coisa? Mais do que explicar-te seja o que for, vou contar-te uma história. Ora chega a tua cadeira para aqui, traz a garrafa de vodka e ouve com atenção…”
“...Poucos anos antes da Revolução surgiu no nosso país um grupo de intelectuais que se dedicou a estudar a Literatura; receberam o nome de formalistas russos. Uma das coisas que eles fizeram foi distinguir uma área de estudos específicos da Literatura, a que chamaram Teoria da Literatura. A Teoria da Literatura veio propor que os textos literários são diferentes dos textos não-literários, isto é, que tem de haver diferenças de linguagem entre os dois tipos de texto. Assim, havia que estudar a Literatura enquanto textos literários e não como documentos históricos, sociológicos, psicológicos ou mesmo listas de componentes para alfaias.”
“Então, Camarada Doutor, os poemas são mesmo Literatura, não é assim?”
“Já vamos ver, Mikhail, já vamos ver. Sabes que mais diziam os formalistas? Que a Literatura acabou por se diluir, por ter sido estudada tanto tempo por outros campos de estudo. Por isso um dos mais proeminentes formalistas, Roman Jakobson lançou a questão: mas afinal o que é que faz com que um texto literário seja literário?”
“E então, Camarada Doutor? Qual é a resposta para essa pergunta?”
“Bom, continua a ouvir com atenção o que eu tenho para contar e talvez me respondas tu mesmo à questão.”
“Muito bem, Doutor, pode continuar, se faz favor.”

3. Chklovski sem limão e sem gelo

“Precisamente no ano da Revolução, 1917, houve um homem, Viktor Chklovski, que escreveu um texto chamado “A Arte como Processo”.
“Processo, Camarada Doutor? A Arte foi julgada em tribunal?”
“Não, meu caro Mikhail, não foi isso. Esse é o nome do livro em que Chklovski procura responder à grande questão dos formalistas: o que faz com que um texto literário seja literário? Ele diz que há uma oposição entre a linguagem do quotidiano (prosaica) e a linguagem poética. No entanto, a diferença entre as duas não reside no uso ou não de recursos estilísticos, uma vez que na linguagem do dia-a-dia também usamos metáforas, comparações ou imagens sem que isso produza texto literário. O uso de imagens no falar quotidiano serve para simplificar, tornar evidente e ilustrar as ideias que se pretende transmitir. Por outras palavras, e como dizia o meu professor na Universidade, o uso de imagens no quotidiano serve o ideal de facilitação da comunicação, tendo como objectivos a clareza, a simplicidade e a eficácia.”
“Então e na linguagem poética, Camarada Doutor?”
“Pois, na linguagem poética diz Chklovski que o uso das imagens tem um propósito inverso ao da linguagem quotidiana, pois, por definição, a imagem torna-se um obstáculo à leitura, querendo com isto dizer que é um momento no texto que obriga o leitor a deter-se, uma vez que o que lá está escrito é muito mais complexo do que aquilo que a imagem veicula.”
“Ah, estou a ver…”
“Chklovski diz ainda que quanto mais familiares nos forem as coisas, mais longe estamos delas, porque temos delas uma percepção de certa forma automatizada e inconsciente, uma vez que não estamos habituados a prestar-lhes atenção por nos serem comuns. Isso é o que acontece com a linguagem prosaica, vês? Na Arte o leitor deve ser obrigado a prestar mais atenção às coisas e ao mundo para poder alienar-se dessa automatização. O leitor deve ser obrigado a perder a sua visão automatizada do mundo, olhando para as coisas como se fosse a primeira vez que o faz. Mas, e tinha de haver aqui uma adversativa, tal só é possível através do uso de uma linguagem necessariamente difícil, que constitua um obstáculo, que seja complexa e que resista à percepção automatizada de quem lê. A tendência para a percepção automatizada por parte do leitor deve perder-se, dando lugar a uma certa resistência.”
“Resistência? Camarada Doutor, isto não será perigoso? Não corremos o risco de ser subversivos?”
“Chiu! Cala-te, bebe o teu copo de vodka e escuta com atenção. Ora, onde é que eu ia? Ah, sim. Bom, a arte, segundo Chklovski observa, privilegia a dificuldade, ou seja, quanto mais afastada a linguagem for da automatização e do que é evidente, mais literário será o texto. A poesia, que foi o que aqui nos trouxe, é encarada como um discurso que tem de oferecer resistências a quem lê para acabar com a automatização da linguagem.”
“Então quer dizer que se eu entendo perfeitamente uma lista de componentes para alfaias agrícolas, isso não é Literatura; se eu ler um texto escrito por um qualquer doidivanas romântico do século passado em que não percebo nada, isso já é Literatura. Certo?”
“Bom, se calhar, lá dizia Chklovski, não é só a utilização de imagens que faz com que um texto seja literário ou não. Ele também dizia que se não for só o uso de imagens a conferir literariedade a um texto, então a literariedade desse texto irá depender dos seus próprios mecanismos de construção; são os processos de disposição dos recursos de estilo (imagens, metáforas), que acabam mesmo por impor um certo tipo de leitura diferente da que é proposta por textos não-literários. O que se pretende é quebrar com a passividade de recepção, com os hábitos de leitura e percepção automatizadas. Para isso há que provocar um certo grau de estranhamento que ofereça resistência ao leitor. Sabiamente, muito sabiamente, Chklovski dizia mesmo que a Arte existe é para provar que o mundo existe.”
“Ah… estou a ver. Então acho que já percebi a diferença entre um poema e uma lista de componentes para alfaias.”
“Ainda bem, Mikhail, ainda bem. Pronto, então se não te importas, vou-me recolher, que amanhã o dia começa cedo. Boa noite, até amanhã.”
“Boa noite, Camarada Doutor.”

4. Chklovski nas sombras do candeeiro à noite

Utopyograd, Região de Novgorod, URSS, 21 de Novembro de 1971, 22h27, quarto do Dr. Ivan Nikivanov.
“Enfim, lá consegui explicar por alto ao Mikhail as ideias de Chklovski. É claro que podia ter tentado explicar-lhe mais certos pormenores que acabei por nem mencionar... como por exemplo, o facto de a definição de arte ligada ao uso de imagens ser do simbolista Potebnia, cuja visão Chklovski vai rejeitando, dizendo que a imagem está ao mesmo nível das outras figuras de estilo. Para os simbolistas a imagem é o mais que tudo do texto! Chklovski diz mesmo que as imagens são quase imutáveis de século para século – se assim for, então elas constituem um património comum partilhado por todos, supra-individual, pelo que o poeta não cria o seu material, não inova. O poeta só dispõe do que já existe. Já repararam como esta ideia se liga à ideia que Aristóteles tinha do poeta enquanto artesão que trabalha arduamente a linguagem para obter um produto? Pois, daí ser a arte um processo, pois é algo que se vai fazendo a partir do material de que se dispõe – o material verbal – e não criando algo de novo. Pois, sim senhor, isto é mesmo tudo muito bonito, mas amanhã é dia de trabalho e agora tenho de ir dormir. Boa noite, Mãe Rússia, e bons sonhos”.

João Tavares

Pensamento do Mês

“Expendere omnes casus”
Virgílio

Pondera bem no teu caso (os ganhos e contras) antes de avançares com uma resposta ou decisão.

Reis Neutel