quarta-feira, julho 11, 2007

Poesia

Colagens falsas

É nas ruas despidas de razão
Que me sento à espera do dia que comece
Mas o dia não começa
Porque nas ruas despidas de razão
É sempre noite.

Olho em volta sem olhar para nada
Tenho os sentimentos pendurados ao peito
Como medalhas que não mereci
E me deram na guerra por declarar
Na qual não lutei
A não ser todos os dias da minha vida
A todas as horas
Sem descanso.

Um gigante de pedra desce a rua sem razão
E pergunta-me as horas
Eu respondo que não sei de que me fala
E peço-lhe misericórdia de joelhos
Antes de acordar estendido no passeio molhado
Da estrada de éter que percorre
Aos zigue-zagues embriagados de sentir
As ruas sem razão.

Fujo para longe para não sair do sítio
Percorro para trás um caminho trilhado
Com pedras e espinhos que leva
A lado nenhum
Nas ruas sem razão
Não se vai a lado nenhum
Só se fica lá
Com os sentimentos pendurados ao pescoço
À espera que caiam duma vez
Para não ter de se ficar curvado com o seu peso
Até tocar com o nariz nos joelhos.

Liberdade duma vez
Para quê, mesmo?
Ah, pois, que interessa?
Venha a noite moribunda colher os frutos podres
Da razão asfixiante –
Não quero saber

Na noite fracturada gemem as consortes nupciais
Nos passeios desertos milhares de desperdícios acotovelam-se
No meu peito ferido infinitos sentimentos me queimam
E me condenam ao degredo ignóbil
De deambular perdido e sem sentido
Pelas ruas desprovidas de razão
Para sempre...

...ou enquanto os deuses se divertirem...

Contagens fartas

Foste tu, Infância, que fizeste de mim um menino?
Foste tu que me lançaste perdido no mundo
Do quero fingir que faço de conta
Que é a brincar que imagino?
Foste tu que me puseste a querer ser
O que queria ser quando já não fosse menino?
Foste tu que me fizeste pensar
Que ia ser o que quer que fosse que eu ia ser?

Traidora...

Porque acordo eu então, longe de ti, Infância
A querer ainda ser o que não sou ainda,
A sonhar para fora o que vivo para dentro,
A imaginar lá longe, no porvir,
Que vou ser o que ainda vou ser?

Mentirosa...

Foste-te embora
Deixaste-me entregue nos braços crus da realidade
No abraço frio da existência
E não me deixaste ser o que eu seria lá longe, no porvir
Mas o porvir chegou e eu não sou o que seria
Eu não sou o que fingi que fazia de conta
Que brincava que imaginava que seria

Foste embora...

E deixaste-me órfão de ti
Preso nas tuas sobras...


João Tavares