segunda-feira, maio 07, 2007

NÚMERO SETE



Madredeus - Maio, Maduro Maio

Editorial

Maio Milagre

«Maio maduro Maio quem te pintou?» Assim cantava Zeca Afonso, desconhecendo ainda que Maio viria depois do mês dito da Revolução. E se algo pode ter que ver com algo, algo pode deixar de ter que ver com algo pela simples sugestão ou evocativa analogia – os intentos segundos e terceiros sempre inquinam os seus desígnios. É complexo porque é complicado e o complicado nunca suplicou o complexo; não é rogo de indigente.
Assim, Maio surge porque não tinha que surgir. Assoma, como se uma Aparição refundisse a vida de todos nós. E isto não depende de créditos alheios nem de conformidades materiais e materialistas. É-o porque não sabemos. Desponta; é o Milagre.
E que somos nós em meio de Maio? Talvez Peregrinos caminhando sob o sussurro zombeteiro. Mas tudo isto não é de zombar; quando muito, lastima-se o que se não contempla em beleza.
Maio é mês de mentiras. Não o Abril primeiro mas o Maio último. E Maio não é diverso, pois a mês nenhum se concedeu a graça da pureza e a expurgação dos pecados. Maio é mentira como a vida. E mentirosos somos todos; e eu sou tão mentiroso quanto quem não ousa proclamar esta verdade. Neste sentido, a vida ensina a arte e o seu ensinamento passa inobservado. Não é inobservável porque se consente o fingimento que se aporta a algum lado. No meio disto tudo haverá espaço para a verdade? A resposta é lacónica: há tantas verdades quantos átomos. Há toda a verdade e verdade nenhuma. Por isso proferimos verdades sem nos benzermos, pois se acaso possuísse o Homem a fórmula redentora da humanidade, creio que não proferiria uma única frase da sua doutrina sem lavar o corpo e sem pedir absoluto silêncio e deferência. Mas não se dá o caso, porquanto as vozes da Salvação sempre se ouvem entre o estertor da admiração e/ou o fragor da indignação, e o doutrinário é escravo do amor e do ódio.
Tempo houve em que, um pouco por todo o país, se colocavam as «maias» defronte das casas, nos estábulos, nos carros de lavoura e nos animais, pois, de contrário, a crença popular asseverava que o mês de Maio revolvia em maré de azar. No Minho, em Esposende, as «as maias» eram feitas com giestas, malmequeres e rosas para que o Diabo não entrasse nas casas e para espantar os maus-olhados; em Santa Marta de Portuzelo, a reputação de Maio era a de um tolo, por trazer muito Sol e chuvas abundantes; em Ponte da Barca e Arcos de Valdevez as «maias» afastavam a fome, e em Barcelos afugentavam as bruxas. Maio é, por conseguinte, mês de doença e de males, personificação do demónio – Maio «carrapato», Maio «burro».
Mas Maio não mete mais dó do que Abril. Em Maio se desbravam as giestas, em Maio se acena à Senhora de Fátima com lenços brancos – última recordação das despedidas idas das outras idas caravelas. Maio é mentira como a vida e a vida é mentirosa como a arte e a arte empenha-se a mentir mais do que a vida; trabalho hercúleo e não ao dispor de qualquer trapaceiro. Maio é dos músicos, e à música volve toda a farsa e toda a lenda mais real do que o Real mentiroso menos mentiroso do que a música. E em meio disto tudo, que é tão pouco, ofende o entendimento que o primeiro de Abril seja o dia das mentiras, e o primeiro de Maio o do trabalhador.

Editor maio: Leonel Ferreira

Poesia

meiopoema


o que minto é o que sinto
e o que tento e o sustento
de quem mente é o que atenta
ao assentar.

um poema devagar
que mova o morder do prensar
e o pensar em dispersar
o pensar e arredores
do que tem e não lugar

o meu intento é esperar.


Ruy




heterógrafo

vê só onde o amor nos deixou; é Natal e estamos nisto:
não tenho sido eu própria

] - isto de não ter memória foi
onde a memória nos deixou - [

estamos à porta um do outro, encerramos as despedidas
e as portas que executámos só se acertam de manhã

] – errar, o cálculo, e o separar,
quando onde erramos cem olhar – [

havemos as cartas marcadas, os parceiros enganados
essas moradas por achar, e [escuta],
todos acreditamos nisso, e cem acreditar.


Ruy




cadáver é esquisito
que nos amemos
e nem nos vemos
pelo menos, nem o cremos
nem a mais pelo caminhar
cuja marcha se entontece
e no bolso, acontece, o coração

e ia jurar que te ouvi
hoje
- que respiravas devagar-
neste vago espaço
que alguém pôs no teu lugar

e, depois, talvez não hoje
amanhã me decido a ponderar
nessa morte se suspeitava
que ao lado bocejava
como um gato a uma perna
o enrolar da eternidade

e é sempre esquisito
não deixa sempre de o ser
que hoje o sol o vi nascer
e que o cria eu ainda
já que fosse coisa finda

- lavo os cestos, erro pelas contas
vindimo a solidão -
e desconto ingratos no que conto
os algarismos gastos da pulsação.

Ruy

Poesia

Anexos

Acorda!
Dormir é morrer mas devagar
E eu tenho pressas que se não adiam

Já escolhi o fato
Já comprei a campa
Falta-me viver e abreviar a respiração
Ir em meio de compasso

Mas até lá… gestos…
Factos
Causas e acenos
Oh canseira!
E eu que seguramente não fui o Lidador…

É para aprender que a vida pena
Leonel Ferreira

Prosa

Como um tapete explica a contingência

Andamos pela vida, muitos de nós, distraídos de tudo quanto nos leva ao momento e ao lugar onde estamos. A percepção ininterrupta da causa de todos os nossos efeitos é tão impossível quanto seria, a dar-se o caso, insuportável. No entanto, lá muito de vez em quando, convém meditar sobre o passado; ou melhor, convém contemplar o advir vagaroso que nos sustenta o respirar, admirar o transcorrido de nós para nos espantarmos com o que somos presentemente.
É maravilha incomparável supor o que seríamos não fora aquele golpe que, de sorte, nos desviou da contingência e nos arrastou para a necessidade. Estou a conceder que o presente é necessidade quando ajuizado pelo passado mas absolutamente contingente quando convocado pelo porvir. A admitir a contingência, parece-me inevitável convir um hiato entre o Homem e a Realidade. Chegado a este ponto, afigura-se-me, de igual modo, que o holismo não pode ter lugar. Esta questão não é, evidentemente, nova, nem é intento meu procurar originalidade de pensamento quando o que está em causa é o tédio relativo à necessidade e à contingência. Se todos os nossos actos estão impregnados de necessidade, parece-me necessário consentir que o Homem não escapa à ordem cósmica – nada nele existe que esteja fora do alcance do cosmos e dos planos do demiurgo.
Apelo então à capacidade imaginativa do leitor, pedindo-lhe que visualize um tapete. O seu relevo está ligeiramente inclinado para um lado, de modo que, quando passamos a mão no sentido inverso, sentimos o arrepio da fricção do tecido na pele. Imagine o leitor que está a passar a mão no tapete no sentido da inclinação do seu relevo. Não sentirá, certamente, o referido atrito. Mas se eu lhe pedir que proceda inversamente, tal e qual o seu movimento estivesse registado num vídeo, seremos forçados a conceder que tal é impossível, pois o vídeo regista não apenas o nosso movimento como a alteração que o mesmo provocou no real. Assim, se não houvesse separabilidade entre o ente e o real, seria possível inverter o movimento de tal forma que não sentíssemos a fricção da pele com o tecido, pois, tal como no vídeo, as protuberâncias do tapete precederiam o movimento da mão tal e qual anteriormente efectivado. Há pois, neste sentido, uma separabilidade total entre o ente e o real; separabilidade esta que só pode ser anulada por recurso à gravação de imagem. A revolução das câmaras de filmar e das máquinas fotográficas tem implicações no modo como olhamos a realidade, não apenas na rememoração dos acontecimentos mas ainda nas variações que os entes produzem no real e nas impossibilidades físicas que nos apartam, de modo categórico, da materialidade e do exterior.
Pretendo que todo este lance traduza um algo reabilitador do mistério humano, de uma fracção da existência que permaneça encoberta diante dos olhos de Deus, do Cosmos, do Demiurgo, da Natureza, da Física, do Universo, do Tempo, em suma, da Necessidade. Este algo não é um enigma mas um segredo cósmico. Idealmente, o Homem seria, em parte, o véu que assombra o olhar divino; seria o inconsciente de Deus. Este fraccionamento radical entre o Homem e a Matéria indicia essa incompletude da Razão humana reprimida pelos fados e pelas razões do Tempo como a manifestação mais terrena da Existência, apontando, irremediavelmente, uma outra faceta do Ser apartada de tudo e inscrita no Nada. Este panorama refunde os pressupostos argumentativos e a realidade tal e qual a Razão apreende, isto é, um equilíbrio entre a necessidade e a contingência. Intuitivamente não imagino como pode a necessidade ter lugar, seja no futuro ou no passado, pois não há previdência no mundo que sustente a impossibilidade; não estamos plena e inteiramente preparados para o que quer que seja.
O que o tapete indicia é que o Real, agindo sobre o Homem e exprimindo-se por movimentos que são, aparentemente e a posteriori, necessários, possui igualmente um reverso, isto é, revela uma acção humana que nunca se consegue sistematizar e efectivar de modo absoluto sobre esse mesmo real.
Pode parecer mera banalidade aferir a separabilidade entre os entes e a exterioridade, mas não podemos permitir que a nossa atenção se disperse na aceitação imediata dos dados da experiência. Se o fogo queima e deixa de queimar é porque não estou integralmente unido ao real. Mas se é possível que o fogo queime e deixe de queimar, essa possibilidade pode ser resultado de um encadeamento de movimentos, isto é, de uma união material que se efectiva pela relação de causa e efeito. Se a minha conduta e os meus movimentos mais pueris do quotidiano podem influir na vida de um ente que está do outro lado do mundo ou até nos satélites vagueando pelo espaço, encontramos aí os indícios de um elo não apenas material mas metafísico. Cada acto e cada movimento do Universo se perpetuarão pelo infinito, alimentando-se do Real e perdendo-se numa hierarquia de corpos que se aniquila indefinidamente, a qual nos confunde acerca da importância real dos nossos actos. Esta espécie de holismo não só aniquila a separabilidade como permite que as grandes Revoluções da Humanidade tenham origem em actos aparentemente triviais.
Nada escapa à Ordem; eis a sentença mais imediata que podemos idear. Se criarmos cópias fiéis de um determinado cérebro e as espalharmos por lugares distintos do planeta, esses cérebros expandir-se-ão em personalidades verdadeiramente diversas, isto é, adequadas à circunstância espaço-tempo. E no entanto é-nos impossível repetir uma inversão de movimentos registada num vídeo.
O que a necessidade e o holismo impossibilitam é o Nada. E o facto de impossibilitarem é, por si só, suficiente para se duvidar da sua possibilidade. O Nada solicita a fractura, o hiato e a interrupção espaço-temporal. Se houver um Universo de elos infinitos, onde tudo sucede necessariamente e no qual tudo procede uma causa, o Nada estará votado à impotência. E este Nada impotente não pode caber num mundo de necessidades e sem interstícios onde caibam as sombras do Homem e das suas criações. A contingência consome-se no Nada e o Homem é impelido a ser devorado pelo Nada. É esta inclinação humana pela Angústia que está em causa na impossibilidade registada numa sucessão de imagens inscritas no tempo, isto é, no Passado. O Homem invoca o Nada não apenas através da História e das suas manifestações e lugares onde retumbam as impossibilidades, mas sobretudo no inconsciente, na fractura, no temor, na angústia. Impossibilidade, Nada e Angústia possibilitam, outrossim, a Liberdade e a evasão da Necessidade e do «Olhar de Deus». E este Nada que nos consola é o Inconsciente de Deus, sempre atormentando os sonhos cósmicos, sempre refluindo pelo Universo inteiro.
Seremos então o rebanho tresmalhado de Deus? E se o somos, como poderá um homem sabê-lo? Sabê-lo-á fingindo que o sabe e não o sabendo categoricamente. A Razão é pois Irracional e o Irracional é o retiro do Homem, perdido em meio de Nada, por ele descoberto e incógnito senão no Mistério. E se um tapete o comprovar, o que haverá a lamentar em tudo isto? É ilógico, é imundo, é inconsciente e é o Mistério que finjo nem Deus conceber.
Leonel Ferreira

Prosa


Trágico é o seu devir. Trágico…
O devir de não ser o que se quer, de ser a ininterrupta condição sem solo. Sem!...Solo!... Sem raiz.
Sem chão.
Sem um chão! que lhe parta a sua incondicionada condição. O devir que a percorre é uma tragédia, nada a faz crer que sim, que sim verdade essa feia e triste!, nem que não por simplesmente isso não ver, nada a faz crer no que quer que seja que diante dos seus olhos não esteja. Olhos… Mas olhos que os mesmos sejam no contacto e na finalidade da visão não são olhos, são ver sem perspectiva, sem planos ou perfis, nem pálpebras sempre obstrutivas. São olhos e ouvidos, e toques sem sentidos porque todos os sentidos neles existem, nessas coisas que aqui chamei de olhos. Querer ver deste canto espreitando e não poder, ou pior, não poder nunca querer tal coisa por nada lhe ser permitido desejar é trágico… Ela não acha, nem conseguiria porque simplesmente de si não brotam volições, mas isto é trágico.
Sim, tudo isto é aflitivamente trágico!...
Não ter pontas, esquinas, limites. Não ter nada disso e ser em acto o devir, o eterno retorno a tudo aquilo que se foi, sem se ter sido nada de distinto do que se é ou vai ser. Vir a ser tudo o que foi ou nunca ser no futuro o que no passado não foi. Passado? Futuro? Conjugar tal verbo em tão dilacerante contexto é devaneio.
Não há pontas, esquinas, limites…
Não há qualquer ponto diferenciável dos outros. Se esses não existem não há aqui, ali, agora, antes ou depois, não há tempo, há devir sem tempo. Um devir, por natureza, sem tempo. Isto, raios o partam, é trágico.
Sim, tudo isto é aflitivamente trágico!...
Viver - sem existir - num perpétuo compasso marcado ao ritmo do não-tempo, do eterno, não um eterno positivo, mas um eterno carregado de perpetuidade ainda que não factual. Ser por condição incondicionada um passo em frente e em concomitância um passo atrás.
Ser todas as direcções sem se dirigir para sítio algum!,
Caminhar em todos os sentidos sem sair do sítio!,
Estar sempre no mesmo ponto sem imobilizar!,
Sem alguma vez parar, sem… avançar.

Que trágica ideia és tu!
André Faia

Prosa

Anita

(dedico este excerto a todas as "namoradas" que - inexplicavelmente - desapareceram da minha vida )

Episódio 1º - A Fixação Extra-Forte

Anita, Anita, Oh… Anita! Serena como a primavera, linda como uma delicada flor perdida no manto da natureza. Meu coração palpita por ela, sonho com ela, penso nela a todo momento. Anita a correr pelos os montes, a nadar numa límpida cachoeira, Anita ensaiando a dança do ventre, Anita ensinando-me a surfar num mar gelado, cheio de tubarões. Enfim, sempre graciosa e prestável. Nunca me cansarei dela. Já cheguei a vestir-me como ela em frente ao espelho, o que só me deu mais vontade de ama-la. Ai, Anita… Bem, mas quem é Anita? Será que estou a exagerar na descrição que dela faço? Se perguntarmos a todos os seus colegas da empresa Silva e Carvalho Contabilidade, Gestão e Auditoria S. A., as respostas vão, indubitavelmente, ao encontro do que eu digo sobre ela.
— Ela é tão boa, resmunga o Patrício entre dentes. E finda a frase com uma ruidosa gargalhada, seguida de um inusitado ronco. Mas nem isso o embaraça.
— É muito feminina e queriducha, afirma o Alvarinho da secção três de auditoria.
O Gomes da recepção confessa-me ao ouvido:
— Catano, é boa como as perdizes...
Felizmente, nem todos têm uma visão tão prosaica. O Carneiro elege-a como a mulher mais bela dos escritórios e quem sabe da cidade.
— Tem aquele ar inocente e pueril, mas não é como todas as outras. Não senhor, é tão boa que nem parece de carne e osso, — segundo o Mário Gonçalves das sandes.
Ok, admito, é um interessante comentário.
Mas a Anita é muito mais que uma donzela de olhar frágil e doce, de lábios sensuais, de quadris arqueados e bem definidos, de cortar o fôlego a qualquer um ou mesmo a qualquer uma. Não acreditam? Então notem o que as colegas de Anita dizem dela.
— Ah, a Anita é muito bonita e elegante. Sei lá? É muito sexy, como dizem hoje. Já me chegava metade da sua sensualidade e da sua inteligência.
Espera lá, mas quem é que disse tal barbaridade? Ah, claro a Guilhermina da Contabilidade, a solteirona do piso dois. Por favor, senhora, modere a sua estupidez. Atenção agora, vejam o que a Dra. Margarida diz.
— Ah, ela é um vulcão em actividade.
Lindo, não acham?
Mas afinal de contas, quem é para ti a Anita?

* * *

— Ufa. Que chatice nunca mais são horas de sair e não mais pára de chover, — pensava Ricardo.
— Dr. Martins tem uma chamada.
Ricardo virou a cabeça e acenou com a cabeça. Quem seria?
Ricardo Martins, era o adjunto do director comercial da Silva e Carvalho Contabilidade, Gestão e Auditoria S. A.. O trabalhador modelo, o filho que todas as mães gostariam de ter tido. Todavia, frustrado e solteiro era como ele preferia auto-apelidar-se.
— Só espero que não seja a chata da minha mãe. Filho não te esqueças disto, filho já fizeste aquilo, que seca. Filho agasalha-te, és o filho da...
Enquanto Ricardo se dirige para o telefone atravessando um comprido corredor, vai fazendo caretas e falando alto para com os seus botões. Porém, não desconfia que está a ser observado por vários colegas, que o olham com estupefacção e gozo. Finalmente, pega no telefone. Do outro lado, uma voz em êxtase guincha desenfreadamente:
— Ricardo?! Ricardo, és tu? Até que enfim, pá. Estou a ver que a Feijoada à Brasileira ainda está a resultar.
— Cala-te! Poupa-me, Miguel. Quantas vezes já te disse para não me telefonares para a empresa? Vá diz-me lá o que foi agora?
— Hmm, estamos mal humorados hoje...
— Sim, — respondeu secamente.
— Vá, deixa-te disso, amigo. Olha só uma coisa...
— Sim estou a olhar, cretino, e não vejo muita coisa, — a sua voz denotava agitação e perturbação, — O que foi desta vez? Espera estragaste-me o fato, não foi? — Falava agora muito alto. — Admite palerma... não palerma sou eu por to ter emprestado, que grande burro que eu sou. — Nesse mesmo instante leva a mão esquerda com força à testa, esfregando-a com violência até ficar vermelha. — Razão tinha a Fátima e o Jaime. Mas não... ainda tenho bom coração e vou ouvindo o que tu... — Repentinamente, a sua expressão muda. Desesperado coça a cabeça, repetidamente.
— Tu o quê?
— Vamos eu, tu e as gémeas, aquelas morenas altas e... Calma amigo, eu desconto-te os elogios pelo empréstimo do fato. Não... não te exaltes, espera. Desligou. Mas o que é que eu disse de mal?
Após ter desligado o telefone, Ricardo observou como alguns colegas o fitavam. Envergonhado, mordeu os lábios e disse em alta voz, dirigindo-se para os colegas:
— Queriam impingir-me um ... uma viagem às Bahamas. Estes gajos dos inquéritos. Que chatos.
E voltou para o trabalho.

* * *

Passados dois dias Ricardo é surpreendido no seu gabinete pela visita do amigo de infância, o Miguel.
— Ei, posso entrar?
— Sim, podes. Entra, — respondeu secamente o outro, enquanto organizava uma pilha de documentos.
— Já não estás chateado comigo, certo?
— Não, já passou. Mas o que queres? — respondeu-lhe sem sequer olhar para ele.
— Venho propor-te um almoço, que dizes?
— Um almoço! Ganhaste a lotaria? Espera, não me digas... estragaste-me o fato. Confessa.
— Não, era como moeda de troca. E já decidiste sobre a tal saída com as gémeas? Estás carente, meu. Eu consigo topar isso. Vá lá, vai ser curtido.
— Ok, escolhe lá a data. É-me indiferente. Só te peço que escolhas bem o sítio. Nada de bares gays desta vez, está bem?
— Tudo bem. Mas até que um bar daqueles seria o local perfeito para expor as gémeas, não concordas, pá?
Ricardo observa-o com estupefacção e responde friamente com um rotundo não.
— Vá mas pega nas tuas coisas, está na tua hora de fazeres stop.
— Sim, tens razão, — responde olhando para o relógio.
Ricardo arrumou uma vez mais o montão de papéis da sua secretária. De seguida, pegou na sua gabardina e no guarda-chuva, com prontidão e dirigiu-se com o amigo para a saída do piso, Miguel deu uma olhadela à sua volta e deu de caras com uma rapariga de longos cabelos loiros e olhos verdes. É encantadora, pensou Miguel. Tenho que saber quem é? Fazendo-se de surpreendido, perguntou ao amigo:
— Uau quem é a boazona?
— Ah?
— Quem é ela?
Ricardo vira-se para ver de quem se trata.
— Sê mais discreto. Lembra-te que eu trabalho aqui. Não te molestes em ir atrás dela, ok? Ok?
— Porquê? Ela não é diferente das outras. Tem tudo que as outras têm, ou não? Por acaso olhando com mais atenção até tem muito mais. Ena pá. Apresenta-ma, vá lá. Sou eu o Miguel, o teu amigo de infância. Vá lá.
— Nem, penses. Ela é diferente das outras.
— Força, meu. Sou eu que to peço.
— Claro. Vais usar o teu charme de macho latino. Ela não passa cartão a ninguém. Anda embora.
— Please, please.
— Não, esquece. Ela é mesmo diferente.
— Pois é, por isso mesmo. Ouve para a semana é o teu aniversário. Podíamos sei lá...
— Sei lá? Esquece, meu. Ela é especial, compreendes?
Fixando o olhar hipnótico do amigo, percebeu que ele de facto não percebia o que lhe tentava dizer, qualquer esforço era vão e como quem conforta um menino que acabou de deixar cair ao mar um chupa-chupa ou o brinquedo favorito disse-lhe:
— Ela é... ela é, — sussurrando aos ouvidos do outro — bem dizem que é bi.
— Bi! Bissexual! — ripostou o outro muito alto, o que fez com que todas as pessoas que por ali passavam os observassem com espanto. Mas pior do que a vergonha, era admirar o olhar alucinado com que Miguel tinha ficado, pensara Ricardo. Nesse momento arrependeu-se do que tinha dito, pois teve o efeito contrário ao esperado. Miguel agarrou violentamente os seus braços, como se fosse um louco que tinha medo de ser internado num manicómio. Então, gritando bem alto, disse:
— O que... ela é?... Não acredito. Como se chama? O que faz? Diz-me qualquer coisa, pá. O nome, já, — agarrando-o ainda com mais força, — despacha-te. O nome, eu quero o nooooooooooooome.
Ups, só havia uma maneira de sair dessa encrenca. E Ricardo conhecia-a bem. Devolver o chupa-chupa ao menino. Respirando fundo, disse timidamente:
— Chama-se Anita. É a secretária do Dr. Vilar. E é só um boato, rapaz. Talvez não seja bi. Tem calma.
— Caraças olha-me bem para ela.
Suspiram os dois encantados com a imagem da rapariga.
Ricardo, com alívio tinha recuperado os braços.
— Oh, ela é perfeita.
— Se é, Miguel. Que anjo na terra.
— Como?
— Esquece, vamos lá comer. Conseguiste envergonhar-me. Bem vamos lá almoçar? Chama o elevador, tenho que ir à casa de banho.
— A que horas sai?
— Saio às 18 horas.
— Tu não, palhaço. Ela, a ... como é que se chama?
— Anita. Não sei. Vamos lá, palerma, — observando o relógio — se não te despachas já não tenho tempo para almoçar. Vou rapidamente à casa de banho.
Dois minutos depois, Ricardo retorna e observa como o seu colega se aproxima da sensual secretária do Dr Vilar. Também ela à espera do elevador.
— Oh, por favor. Era só o que me faltava, — pensou.
— Então trabalha aqui? — perguntou Miguel à rapariga, colocando um tom mais viril à sua voz.
A rapariga sorriu embaraçada.
— Sim, — foi a resposta breve que obteve.
— Chamo-me Miguel, muito prazer, — estendeu-lhe a mão.
Ela hesitou um pouco. Felizmente, para ela é salva pela chegada do elevador.
— Vamos lá, — sorri nervosamente à secretária.
Entram os três. A rapariga não tira os olhos da porta do elevador. Ricardo alterna o olhar entre o relógio e o guarda-chuva. Miguel, por seu lado, coloca-se ao lado da rapariga e respira fundo tentando aspirar o perfume da rapariga.
— Chanel Nº 5, — pensa, — foge, é perfeita. Que corpo. Vou convidá-la para sair, para beber um copo. Esta não me pode escapar. E ainda por cima é bi. Uau, — mede-lhe durante largos segundos as medidas. A rapariga começa a ficar nervosa e farta de levar com a respiração do outro.
— Então logo vamos ao teatro com as gémeas, certo? — perguntou Ricardo?
Miguel cora.
— Que gémeas? Estás sempre no gozo comigo, não é? Bem sabes que eu sou descomprometido, pá. Nem sei de que gémeas estás a falar.
Ricardo observa-o estupefacto. O outro pisca-lhe o olho e manda-o calar. Ricardo notou como a voz do amigo já não era tão máscula.
Finalmente, o elevador pára. Saem os três. Miguel continua a olhar para Anita. Ambos desejam-lhe boa tarde, ela agradece e retribui a boa tarde. Fitaram-na por mais alguns segundos.
— Serena luz que nos enfeitiça, amigo. Mas ela não é para o teu bico.
— Cala-te! Estragaste tudo. Grande amigo me saíste. Amigo da onça. Só a queres para ti, não é? Raios para as gémeas.
— Ah, claro! Olha bem para mim. Achas mesmo que tenho alguma chance com ela. Estás caidinho. Eu não. Estavas em cima dela a fungar. Deves ter tido oportunidade de reparar que tipo de laca ela usa, tarado.
— Extra-forte, não natural.
— Desculpa?
— Ela usa laca de fixação extra-forte.

*

Prosa

Restless Seeker

(I address you, my loyal friend, lend me your senses and judge for yourself)


Could the sky go darker and empty our souls, my dear dreamer? Did you see the madmen turning wise? Did you see how the seers became blind? Did you hear the children shouting under the bomb’s glow? Did you hear how their parents were slayed?
Why do They paint the sky with the blood of the innocent?
You must keep vigilant. Don’t let Them catch you. Don’t let Them know what you know. Don’t answer them back. Keep blind, watch just with the eyes of the shadow; keep deaf, hear only when the wind pulls down its trigger; keep dumb until the sun rises on the horizon and your mouth becomes unveiled.


When is the comet coming back?
Spelling the breathing written in
Dreams of hope:
A trail to the stars.

My roots your senses, my branches and trunk your life, my sap your vision
And when my seed become yours, you’ll get the strenght to reveal yourself.
But until then,
The dreamer gives up his vision.

To you I sign this letter,

Reis Neutel

Prosa

¼ de Peru

Ah, que belo dia para se ir fazer umas comprinhas para o lar, doce lar. É sábado de manhã, o céu está azul pintalgado de uma ou outra primaveril e discreta nuvem passageira, o sol brilha com uma intensidade alegremente anti--depressiva, uma levíssima brisa ondula os cabelos de quem os tem, os passarinhos fazem descontraidamente as suas necessidades em cima das estátuas das figuras maiores do burgo e as lojas de comércio tradicional na baixa do município estão abertas e povoadas por gente de gestos e palavras familiares e acolhedores, muitas vezes tratando a freguesia pelo nome e perguntando se há novidades daquele familiar que tão desgraçadamente cumpre pena por se ter deixado apanhar a desviar uns fundozitos aos quais até tinha direito e que não iam fazer falta nenhuma ao IRS. E foi assim, neste ambiente de bucólica felicidade da média-baixa Burguesia citadina que a Dona Gertrudes foi fazer umas comprinhas para o seu tão bem arranjadinho domicílio. Um dos primeiros destinos da sua romaria foi o talho do senhor Nicolau, um senhor de meia-idade muito simpático e prestativo.
“Bom dia, Dona Gertrudes.”
“Bom dia, senhor Nicolau. Que lindo dia está hoje, não lhe parece?”
“Realmente... mas diga-me lá, o que a traz aqui pelo meu modesto estabelecimento?”
“Olhe, eu hoje estava à procura de alguma coisa especial para o almoço. Sabe, é que os meus rapazes foram à pesca e só voltam lá para o fim da tarde. E como só ficamos eu e o meu homem...”
“Sim, sim, estou a ver. E o que é que tem em mente?”
“Eu estava a pensar assim numa carninha tenrinha que se desfiasse bem, mas que também não fosse de se desfazer logo ao chegar ao forno. Está a ver?”
“Ora bem, não sei se isto lhe interessa... veja aqui, chegou ontem um carregamento de vitela bem fresquinho...”
“Hum... não, acho que não me apetece muito vitela. Além disso, é capaz de não me ficar muito em conta.”
“Bom, se lhe interessa uma coisa que fique mais em conta, talvez eu tenha aqui o que lhe interessa.”
“Ah sim? E de que se trata?”
“É uma promoção que começámos a fazer ontem e que tem tido muita saída.”
“Sim...?”
“Por metade do preço pode levar ¼ de Peru inteirinho!”
“¼ de Peru? Por metade do preço?”
“Sim, sim, e olhe que ainda pode escolher a parte do Peru que quiser.”
“Ah, mas isso é mesmo muito bom! Mas olhe que eu não tenho assim muito jeito para escolher Peru... será que me podia ajudar a escolher uma parte assim mais jeitosinha, ó senhor Nicolau?”
“Com certeza, Dona, com certeza. Olhe, aqui para cima tem o ¼ tropical, que apanha as fronteiras com o Equador e com a Colômbia, zona riquíssima em minério e onde o Amazonas nasce; mais para este lado tem a zona Sudeste, na qual os Andes ocupam extensa área, incluindo o tesouro de Macchu Picchu.”
“É só isso?”
“Não, não! Pode ainda escolher a zona Oeste, na qual se encontra a capital, Lima, riquíssima em legado histórico e arquitectónico colonial, bem como praias lindíssimas.”
“Pronto, olhe, acho que levo ¼ de Norte do Peru. Sempre podem fazer jeito uns quantos jazigos de minério, não é verdade? Vá-se lá saber o que é o dia de amanhã...”
“Pois sim senhora, muito bem, aqui está ¼ de Peru da região Norte. Quer que embrulhe, ou vai assim no saquinho?”
“Faça o favor de embrulhar, senão ainda me seca o Amazonas com este solzinho que faz...”
“Pronto, então aqui tem. Muito bom dia e obrigado.”
“Bom dia.”


João Tavares

Prosa

A doença psiquiátrica

Fugiu. Depois de anos e anos injustamente encarcerada num lugar onde não pertencia, aproveitou um momento de menor atenção dos guardas e saltou os muros, rumo à liberdade. Uma vez do lado de fora daquela autêntica prisão, correu a toda a velocidade, sem saber muito bem para onde, apenas sabendo que era para longe, para bem longe, para muito, muito longe daquele lugar horrível onde passara tanto e tanto tempo. Percorreu centenas de quilómetros, sempre em busca de um refúgio, de um santuário, de um esconderijo onde nunca mais a encontrassem. Mas sabia muito bem que isso seria muito difícil. Mais tarde ou mais cedo alguém acabava por reconhecê-la e lá tinha ela de se fazer novamente ao caminho, sempre perseguida, sempre acossada, sempre caçada, como se de uma besta selvagem e brutal se tratasse. Os seus dias eram uma constante partida de gato e de rato com os seus algozes, mas também ela tinha de sobreviver, pelo que também ela caçava. E ela caçava muito bem. Tinha excelentes qualidades que lhe permitiam caçar de emboscada, passando totalmente despercebida diante da sua presa até já ser demasiado tarde. E mesmo assim, na maior parte das vezes a vítima jamais se apercebia de que havia sido apanhada, tal era a intensidade furtiva do ataque. Ah, mas a sua necessidade de caçar era imensa, não se podia contentar apenas com uma presa de vez em quando, tinha de apanhar muito mais do que isso; e foi em face dessa necessidade que ela acabou por desenvolver uma estratégia de caça eficaz: começou a identificar as suas presas e a perseguir elementos que a elas estivessem ligados por laços de sangue. Não haja qualquer dúvida que, desta forma, o seu índice de sucesso na caça subiu enormemente. Mas – ah, pois, tinha de haver um “mas”! – ao optar por dizimar famílias inteiras, em vez de atacar vítimas isoladas, acabou por chamar a atenção dos seus perseguidores, pelo que eles hoje estão muito, mas muito perto de lhe pôr de novo as mãos em cima e de a internar de novo no Hospital para Doenças do Foro Psiquiátrico. Pois é, Esquizofrenia, não tarda estás de novo entre paredes almofadadas e em camisa de forças...

João Tavares

Pensamento do Mês

“O pessimista queixa-se do vento, o optimista espera que ele mude e o realista ajusta as velas.”

William George Ward