quarta-feira, julho 11, 2007

Ensaio

SEBASTIANISMO E TEMPO

Passado e Saudade

No dia 20 de Janeiro de 1554, dia de S. Sebastião, as procissões e orações pelo nascimento do herdeiro do reino de Portugal multiplicavam-se em todo o país, particularmente em Lisboa. Sampaio Bruno, no Encoberto, recorrendo ao testemunho de Frei Bernardo da Cruz, adita os motivos da expectativa lusitana: o desassossego do povo português diante da ameaça castelhana no que à sucessão ao trono concernia. D. Sebastião nasce entre presságios e ânsias nacionais de independência; mas não só; diante de um país imerso na crise, ferido no seu orgulho pela perda de praças em África, incluso num novo contexto económico como no-lo adianta Francisco Sales Loureiro em D. Sebastião e Alcácer Quibir, ao príncipe afluíam todas as aspirações e esperanças lusitanas. Não é pois por mero acaso que António Quadros avança com a ideia de um Sebastianismo anterior ao próprio D. Sebastião, um movimento nacional reflectido não apenas no ânimo do povo mas similarmente no pensamento das elites:
«… o Bandarra teria morrido, segundo tudo o indica, no ano de 1545, isto é, nove anos antes do nascimento de D. Sebastião. Mas em algumas das suas trovas surge profetizada a vinda de um soberano, de um Encoberto, qual aquele que é sonhado depois de Alcácer Quibir, o regenerador messiânico de um Portugal não apenas restaurado na sua glória, mas cabeça desse império iluminado de cristandade, de verdade e de paz, que seria o Quinto Império (…) Eis porque D. Sebastião foi o Desejado. O povo, a aristocracia, a elite intelectual e uma boa parte do clero aspiravam ao reencontro político e cultural de Portugal consigo próprio. O jovem príncipe foi investido de toda uma carga de saudade, de esperança e de sonho.»
Em D. Sebastião já Camões antevira a
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande.
antecipando o Sebastianismo e predizendo os caminhos por onde haviam de ser trilhadas as esperanças nacionais. Na génese do Sebastianismo está já presente a síntese de uma saudade que anela um futuro; uma privação, uma carência, uma fractura que evoca a esperança e a fé, depositadas, no caso, num Príncipe Salvador, em absoluto entendido como o Desejado. No indivíduo se projecta o colectivo, num homem se preanunciam os desejos do Povo Português. Para Sampaio Bruno, o sebastianismo coincide com o filosofismo na medida em que o mito sebastianista não é D. Sebastião, nem sequer o Português, mas o Homem expressando a ânsia de ascender do erro para a verdade, o Homem purgando os males pelo desejo da Salvação colectiva.
Esta ascensão do erro para a verdade cumprir-se-á sempre no futuro, isto é, restituirá o princípio originário do Paraíso Perdido, da Infância do Homem e da Idade do Ouro que o português pressente, pela saudade, ter vivido e, de qualquer modo, ter igualmente perdido. «O Messias assume – num registo superior, evidentemente, o papel escatológico do Rei-Deus ou do Rei-representante da divindade na Terra, cuja missão fundamental era a de regenerar periodicamente toda a Natureza» . E porque o mito aporta sempre aos arquétipos, indispensável seria que a Vitória futura do Rei fosse preanunciada entre o sofrimento e a desgraça, rememorando o martírio de Cristo, coroa das esperanças portuguesas projectada num «illo tempore futuro e messiânico . Por isso D. Sebastião cai em Alcácer-Quibir, por isso D. Sebastião regressa numa manhã de nevoeiro. Regresso que se não cumpre nunca mas que não cessa de ser anunciado. A figura de D. Sebastião assoma como o enviado do povo português, como a sua “síntese individual” no dizer de Pascoais, que acrescenta: “há momentos em que um só Homem é um povo: Camões” . D. Sebastião reúne as aspirações antigas e sintetiza as esperanças futuras.
Mircea Eliade chama a atenção para o facto de o Messianismo abolir a História; isto é, assim que o Messias cumpre a Salvação, a História deixa de existir. O surgimento do Messias e o cumprimento das Profecias realizam as mais altas esperanças. No caso do Sebastianismo, a transmutação do mito sugere uma outra via que anula o paradoxo, particularmente através da teoria da Metempsicose sugerida por Fernando Pessoa e que consuma a ideia de incompletude do Mito, essencial, não para a sua perpetuidade mas para a sua própria essência enquanto movimento filosófico fundamentado no paradoxo entre a angústia e a esperança. Segundo o poeta de Orpheu, D. Sebastião ressurgiria na História assim que alguém evocasse em si a forma do espírito do Desejado. Por isso D. Sebastião poderia regressar indefinidamente e sob várias formas, pois assim que alguém concebesse algo que rememorasse a substância e matriz espiritual de D. Sebastião, o regresso do Encoberto estaria consumado. Assim, Fernando Pessoa sugere alguns nomes como possíveis regressos do Encoberto tais os do Marquês de Pombal, Sidónio Pais ou o próprio Fernando Pessoa. Estamos não só diante de uma regeneração periódica do tempo mas também sob a premência de uma incompletude indispensável ao traço ontológico do mito. Adianta Fernando Pessoa; «A alma é imortal e, se desaparece, torna a aparecer onde é evocada através da sua forma. Assim, morto D. Sebastião, o corpo, se conseguirmos evocar qualquer coisa em nós que se assemelha à forma do esforço de D. Sebastião, ipso facto o teremos evocado e a alma dela entrará para a forma que evocámos». A teoria da metempsicose encontra semelhanças com a Saudade no sentido da Reminiscência platónica, da evocação de uma forma espiritual, de uma rememoração impessoal e inobjectivável – tal o Sebastianismo invoca, pelo Passado e Futuro, o paraíso perdido, a reminiscência de uma infância ideal que há-de regressar simbolicamente pela coroa desse Quinto Império que é D. Sebastião.
Esta teoria reveste-se de uma importância sem par na nova abordagem do Sebastianismo, pois aproxima o mito a uma filosofia inobjectivável, cujo elemento real se não encontra mas se prefigura numa forma impalpável. Meditando nas seguintes palavras de Mircea Eliade: «Executados pelo homem, todo o ritual ou toda a acção dotada de sentido repetem um arquétipo mítico (…) A repetição implica a abolição do tempo profano e a projecção do homem num tempo mágico-religioso que nada tem que ver com a duração propriamente dita, mas constitui este “eterno presente” do tempo mítico» pode concluir-se da indeterminação do objecto do mito Sebastianista. Esta indeterminação respeita, em última análise, a mesma ausência de objecto que Ramon Piñero anteviu na Saudade, caracterizando-a como um puro sentir desligado do pensamento e da vontade. Não há estranhamento neste remate se concluirmos uma conformidade da vivência Sebástica – confluindo em si a Saudade e a questão temporal - com o existencialismo, mormente na importância da angústia. O pensador galego Celestino de la Vega entendeu que «la saudade es un sentimiento sin objecto, lo mismo que la angustia es un estado de anima sin objecto» . A angústia não cede a coisificação. O Ser, experenciando a finitude, é ser de insatisfação. Em Kierkegaard, a angústia como faculdade humana de captação de sentido, aponta para uma transcendência que não está, contudo, totalmente fora do Homem. Se o momento histórico da morte do Rei aponta uma efectivação material traumática, todo o movimento em torno do seu regresso traduz a complexidade do mito, o paradoxo entre a angústia e a esperança. De alguma forma, a Saudade participa deste mesmo paradoxo, reportando-se às antinomias nacionais, não apenas a uma indeterminação mas também a um apego à vida e à natureza envolvente, a uma «expectação do futuro, com angústia e esperança» .
O momento do paradoxo não é, contudo, claro. Se a abolição do tempo profano sugere a supressão do facto, o paradoxo é inseparável de todos os momentos do tempo mítico. Quer isto dizer que a indeterminação/determinação do mito sugere uma ultrapassagem do vivido que espirala entre a lembrança e a esperança, entre a acção e a sublimação da existência. Se o mito apela à incompletude, o seu ponto de partida sugere sempre um exemplo. O momento histórico é o arquétipo, o modelo das esperanças futuras. Pela Metempsicose regressa periodicamente a forma do Desejado, um regresso que se dá na sua «realidade e presença concreta, posto que não fisicamente pessoal» , um regresso que fecha um ciclo para logo abrir outro.
O que é evocado é o exemplo, o momento a que se aspira é o da Infância do Homem, a Idade do Ouro e a antiga coexistência do humano com o divino. A reminiscência dessa infância, encontramo-la na Saudade, sentimento-síntese, no dizer de Teixeira de Pascoais, que ecoa nas quadras populares:
De Qualquer forma que existas
És a mesma Divindade;
Ventura quando te vejo,
Se não te vejo, Saudade.
e na poesia de Camões:
… a Saudade
Daquela santa cidade
Donde estalma descendeu
Para Pascoais, a Saudade «é já a sombra do Encoberto amanhecida, dissipando o nevoeiro da legendária manhã» . Significa isto que a Saudade não se mantém expectante mas deriva do Idealismo do povo português e da sua liberdade relativamente à Matéria, animada pela Lembrança e pela Esperança. O que importa reter na Saudade não é o seu exclusivismo no temperamento português. Aliás, Carolina Michäelis rejeita a ideia de que outros povos não conheçam esse sentimento. O que é relevante é a sua ascendência na psicologia portuguesa, levando-a a distinguir-se, indubitavelmente, de outros modos de pensar. Desta particularidade resulta a originalidade da literatura portuguesa.
O Sebastianismo, anulando o Tempo e a História no sentido profano, é igualmente interrogação sobre a memória, pois apontando o significado profundo da Saudade, reverte a recordação e o vão desejo em afirmação ontológica do destino do Homem. Inscrevendo o Passado, o acontecimento traumático reverbera no sonho do porvir. Pelo regresso D. Sebastião se afirma como figura simbólica do Quinto Império, rememorando a Idade do Ouro e cumprindo a paixão donde «Vêm-me saudades de ter sido Deus» . Entretanto, há um «…movimento contínuo, já que se não sabe quando começa ou quando acaba. Todos os pontos são começo e fim – o que transcendentaliza cada momento existencial» .
A Saudade é ditada pela sub estrutura psicológica do português, afeito ao sentimento saudoso mas também voltado para a acção e para o movimento prospectivo, encontrando no passado não um momento de paralisação mas uma força para tomar impulso. Não se trata de uma criação nascida da imaginação de predestinados mas da alma de um povo, fazendo menção da sua poética e transcendência. A aspiração ao futuro, não nascendo de geração espontânea, alicerça-se no passado. O Sebastianismo é a Saudade neste sentido, pois se aparece como «prenhe de tempo e de futuro, é justamente porque nele surge uma daquelas imagens que, profundamente ligadas ao que já foi, aparece como suscitadora de crença e de fé na possibilidade de realizar-se o mais alto e o mais difícil a que o homem aspira» . Daqui resulta necessariamente que «…a saudade é uma tradição, mas uma tradição sem fórmulas que a fixem e transmitam, uma tradição sempre difícil de surpreender e de reconstituir» . Não espanta pois que o espírito português deambule entre os momentos de tensão e fractura e os de uma euforia e anseio de acção verdadeiramente ímpares tais os que edificaram a epopeia dos Descobrimentos. Em última análise, o indeterminado sugere a figura paradigmática do funâmbulo de Nietzsche ou mormente da Serpente, tão marcante na cultura simbólica portuguesa, indicando um movimento em espiral. A Serpente «apresenta-se como símbolo do conhecimento global – a serpente enrolada, a boca tocando o rabo denomina simbolicamente o universo do saber, a unidade do ser» . Não há, no Sebastianismo como na Serpente, movimento parcial, pois «Ela (a serpente) liga os contrários verdadeiros, porque ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita ou da esquerda, ou do meio, ela segue um caminho que passa por todos e não é nenhum.»



Leonel Ferreira