sexta-feira, março 09, 2007

Prosa

A Lírica dos Caminhos-de-Ferro


Ouves este som arrastado e violento? Ouves os interstícios entre as casas, aquelas vedações gradeadas respirando o ar quente dos motores; as amplas clareiras que se estendem até aquele amontoado de juncos na base do monte? Ali. Olha. Ouves as águas do rio fluindo ante a velocidade orquestrada e metálica sobre os carris? Ouço um túnel. Sim, ouve-lo porque o túnel ganha vida assim que por ele irrompemos aos assobios e arranhões de ferro. É um arrastar pesado que sorve tudo em sua volta. E este abrandamento? Há-de levar-nos ao apeadeiro de Nossa Senhora das Dores. E depois? E depois até à volta. Não mais a colisão serpenteante do som e da matéria entre a ondulação dos pinheirais. Só eu e os meus passos inofensivos, sem o desvendamento dos prédios, dos seus estendais, das suas cortinas rendilhadas, das nódoas escuras nas fachadas. Só eu e uns míseros sapatos que hei-de deitá-los ao lixo não sei se tarda muito, assim que receber uns trocados para gastar noutra coisa que não no som da locomotiva a rasgar, a alancear, a refender, a decepar a paisagem e a levar-me ao apeadeiro de Nossa Senhora das Dores e, por uma vez ou outra, a Travagem – a voz vítrea destilando o destino «Próxima paragem: Travagem» - o que me levou em tempos a rir e hoje a sorrir, mas já muito frouxamente, desta paragem: Travagem. Ouves? Sim. Ouves esta voz feminina, nunca obrigada a gritar para que parem o comboio, para que esperem, para que se demorem e meneiem, assim, de um momento para o outro, o destino de não sei quantos passageiros.
Então nem só de som vive a máquina? Não, evidentemente que não. Vês aquele velho com uma mão agarrada ao arrimo da entrada do comboio e outra pousada na anca? Há-de sentar-se ao nosso lado, há-de roçar a manga do seu casaco nos nossos. E então? E então sacode os braços, inspira o ar todo duma vez – um buraco negro a sugar a matéria, a sugar os passageiros, a sugar o comboio, a sugar as linhas, a sugar as vedações gradeadas e aquele armazém de blocos de cimento – para depois deixar escapar tudo isto contra os nossos narizes. E nós sustemos a respiração… sim… Sustemos como se a nossa vida disso dependesse; como se estivéssemos debaixo de água, no tanque do Sr. Américo, nos dias de verão, a mostrar às cachopas o fôlego dos pulmões, a ver se as convencíamos a mostrarem-nos o seu debaixo dos lençóis – mas não adianta, que o velho há-de expirar o ar estaremos nós ainda a inspirar sofregamente, diante da impotência pulmonar. Mau presságio. Mas é só? É o começo. Depois, o cheiro a formol a entranhar-se-nos na pele, o perfume – frascos gigantescos, banheiras e saunas de perfume importado dum país onde só crescem ciprestes – um cheiro a círios a enfaixar-se nos sobretudos, polvilhos de laca ressequida a esvoaçarem por sobre as nossas cabeças, germes e micróbios ricocheteando nos vidros já turvos da respiração monstruosa daqueles pulmões que não acabam nunca. Bom… não era tão mau como me dizia, mas é realmente mau. Mudemos então de assunto. Esqueci-me do guarda-chuva e está-me a parecer que hoje vai chover.

Leonel Ferreira