sexta-feira, março 09, 2007

Prosa

A fé da ausência


Durante anos fui como um livro ausente na estante, junto aos outros livros. Pensava que teria de reescrever as linhas em branco com tons suaves da imaginação. Mas deparei por mim sem saber sonhando que não mais sonhava. Entre o esquecimento e um copo de tinto tudo se esvazia, até mesmo uma vida e talvez a própria morada das palavras.


um pouco de tudo e muito de nada
Quando a angústia estiver reduzida a apenas uma ponte estanque entre cidades e vales que se espraiem nas declinações dos olhares vagabundos. Aí sim, teremos as dunas para viajar pelo horizonte das nossas certezas e um falso sopro no corpo fendendo as ondas geradas numa melodia fraterna. Segui a noite como um traço da sua descendência. Os nossos olhos não tinham fronteiras. Todas as visões foram já percorridas além das horas de sono e de um amor sem antecedentes que não conheço e trago preso às correias do espírito.

*

O compasso do relógio bate sempre certo. Mas às vezes no termino do sono, há um bater de asas adormecendo no crepúsculo dos sonhos e aí relembro a alteridade de mim. Na dispersão do labirinto encontro-me a sós com a vertigem do teu olhar e permito à alma abraçar a tua sombra. A sede que perturba os lábios de não cessar de amar. Misturo as cores do desejo. Beijas-me num longo suspiro. A tua boca suspende o pulsar da minha. Segregas-me ao ouvido, como era bom não teres morrido.

*

Ainda repousas, é claro!
Que despedidas dilatam as lágrimas que escolhemos para assassinar o coração?
Desprendem-se os sulcos das fecundas avenidas. Tudo não passa da razão que marcha ao sabor dos dias, ocultando o silêncio matiz, descrição daqueles que riem sem demora. Pobres que habitam o objecto do seu esquecimento. Já não sei sonhar! Já não sei matar! Já não sei morrer se não num palco agraciado por um candelabro, um quadro, intersecção de um outro movimento incompreendido, de uma chávena estilhaçada (já não me serve de nada), de um relógio que apenas dita as horas em consonância com a luz ao fim do cárcere. O mundo escondido num sótão, em qualquer página onde possa reclamar para mim os instantes em que enveredo em meu próprio nome na loucura de todos os outros. O sótão, sempre o sótão, perdido na minha indiscreta presença ausência. O sótão onde posso divagar as chamas a confluírem nos ângulos da comédia humana. Se fosse um corredor trespassado por múltiplos sorrisos, lágrimas, tristezas agitando os passos dos transeuntes, a realidade debruçando-se no prisma da minha consciência, um novo rosto para expressar todos os sentimentos sem gesto, a negação das margens sem carimbo das histórias da infância. Talvez pudesse representar os semblantes dos retratados no vão do pensamento, mas não sei o que representam. Talvez projectem a sua própria alienação de existir. Não penso! Deixo isso para a inconsequente sombra da vida. Sou tão vazio, que me limito a pedir à Noite um percalço rápido ou um desembarque nos subúrbios suplícios abandonados da ferida do coração ao som do desespero que o caminho aperta contra mim. Como se tudo bastasse, até o deslizar de uma porta rente ao acaso de uma paisagem desfigurada.


Clarão
No sótão das memórias lá estava ele rasgando a vertigem dos dias, ou o desfolhar das horas sobre a mesma avenida de cetim.
Teclando no mais macio das tempestades. Falhaste o assalto de ti mesmo. Contas as feridas às nuvens de ácido, somente, elas te escutam no intervalo da ausência, talvez, te respondam — Sim. Só estás à espera que o mundo acabe, bem depressa para poderes voltar para o nó dos teus sentidos e daí abarcar o ocidente conserto dos nossos receios. Não é nenhum segredo apelares para te ouvirem dizer que o horário da meditação termina onde o mar começa, onde a noite frígida interrompe com estalidos a ceia de todos os prazeres. Sim, eu sei que ele foge do atrito inadiável dos ?’s que correm ao amanhecer da primavera sobre os lábios atordoados da emoção. Roçam a eternidade, negam a realidade
A cura, morte, a dor que vai gemendo ao acaso nos degraus de quartzo.

Tu só vives dentro de mim na fachada de meus sonhos.
Os teus lábios são poesia,
São consolo na dormência dos sentidos,
São silêncio vertigem, quando as palavras se calam, Setembros adiados não pronunciados.
Talvez,
(Eu vivo em ti e somente tu podes viver assim).


Reis Neutel