quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Número Quatro

Editorial


Um Deus Menino

No auge da Técnica, uma das últimas disposições humanas diz respeito ao gosto pela parcialidade. De actos criativos emergem instrumentos notáveis que parcializam actividades ordinárias, facilitando-as. Ainda bem para o homem e para uma urgente necessidade de esgotar o tempo diário dispendido com elas. A obsessão pelo método científico do especialismo desenfreado é, todavia, tanta, que o método varre mentalidades de áreas que sendo únicas, único modo de viver deveriam ter. O especialismo científico está a transformar-nos naquilo que estudamos. Que estudamos precisamente por nos julgarmos capazes de generalizações avaliadoras. Generalizações avaliadoras que fazemos por sermos mais do que aquilo que estudamos. Não gosto deste carrossel, é feio e tem bicho.
Um prato serve para comer, uma faca para cortar, uma caneta para escrever, uma cadeira para sentar, um bolo para comer e o homem não parece descansar enquanto não etiquetar exclusivos serviços e capacidades como estas nas pessoas.
O especialismo doentio a que hoje assistimos em tudo quanto cheira a humanidade, inclusivamente nas letras, mais não é do que sinónimo de um leviano desejo de incompletude. Não aceitação, nem admissão ou resignação, mas desejo. É a recusa do renascimento, do homem multifacetado, múltiplo. Destrói-se a totalidade que nos é intrínseca, com que partimos quando nascemos. Hoje quer-se não um ser que cria, mas um ser que realize particulares serviços com a mesma eficácia com que o Excel realiza aquilo para que estava programado. Eu sou o Excel e sou realizado pessoalmente, troque-se Excel por um humano nome e é para isto que aponta o dedo do progresso. A evolução da involução. Corro para trás pensando que corro para a frente, sonho atingir um topo que é topo porque o vejo de cabeça para baixo, vejo um topo que afinal é abismo. Urge redireccionar consciências. Não sendo uma máquina, o homem procura agir como tal, o mesmo sucede inversamente, ainda que por razões diferentes. A este desejo de cientificidade da vida lhe respondo de soslaio, a vitalidade tende a evaporar, a vida sentida com verdade é rejeitada por um dos seus filhos maiores.
Entre ser tudo de todas as maneiras ou ser um algo de uma só forma o Progresso acolhe o último. No dia em que o homem fechar as portas ao poeta inteiramente à solta, morre. Isso tenta o mundo hoje, isso tentaram filosofias europeias encerrando sentidos numa qualquer vesga perspectiva, baseada num qualquer vesgo método. A tradição especulativa portuguesa pode aí ensinar, pode ensinar a querer aprender. Pode porque se libertou das etiquetas, porque especula poeticamente, porque num nietzscheano movimento é poeta e filósofo, vivendo paradoxos ao ritmo de um verso. Pode porque não totaliza o que é parcial. Pode porque o seu Deus é menino! e é terra! e é espírito! e é sangue! e tudo quanto não exista!
O seu Deus, o Deus do poeta-filósofo, é tudo e é nada, e tudo não quer nem sabe não ser, sabendo que tudo nem ele é.
André Faia

Prosa

Máximo Expoente: a partida

A música é a suprema arte, a arte pela qual rezo todos os meus dias.

O palco. Olhamos uns para os outros. Fitamos o público. Sinto-me nervoso. Respiro fundo na ânsia de um alívio, nem que efémero seja. Nem uma única cadeira vazia contemplo. O burburinho… trocamos olhares e rimos ao ritmo da afinação das cordas. Estou pronto. O que sinto? Meu estômago aperta-me na clausura da minha condição. O auditório cala-se. O maestro dá sinal.

— “Nunca serás ninguém!”

— “O que procuras tanto no mar, filho?”
— “O mar impressiona-me, mamã. Às vezes, enquanto dormito dialogo com as ondas e silencio a minha dor da partida.”

O que é para ti o mar ? O que nele vês? “O Mar de Debussy”, alegre e sinfónico ou, o desespero melódico de Chopin, ou será antes a nostalgia de Mahler que te trespassa? Flecti as cordas com os dedos hirtos, pesados, alheado do mundo em volta. Era eu, somente eu que girava os contornos do mundo, a partir do meu violino. Ao mesmo tempo era palco e auditório da minha própria agitação interior. Fazia deslizar a crina do arco suavemente. Com pressa por não deixar exaurir a recordação. Não só as cordas vibram, mas também meu corpo, meu pensamento.
— “Meu filho! Assusta-me a ideia de poderes seguir a vida do teu pai. Não quero que vás para o mar. Promete-me.”
Não podia prometer, o que não podia controlar, o que já nascera comigo.
O mar viu-me nascer. O mar era tudo para mim. Nas suas águas desdobrei meus sonhos e meus desânimos. Agora a melodia vibra nas cordas do meu violino. A música palpita-me no coração. O mar da tranquilidade, a música do contentamento unem-se no meu coração soltando um grito mudo em uníssono.
Ofereceste-me aquele primeiro violino, singelo e doce. Debrucei-me sobre ele como se de um bicho magoado se tratasse. Como o faria funcionar? Teria uns oito anos. Não tardei muito a desafiar a firmeza das cordas, a testar a minha ignorância, perante tal artefacto enigmático. Mal sabia eu no que haveria de acontecer. Querias que ele fosse o ponto de partida para uma nova existência. De certo modo, aquilatavas a esperança de um afastamento do mar. O novo brinquedo rugia feroz. Exasperava-me. Mas não desisti. Acreditavas convictamente que eu não seguisse os passos de meu pai. Lembro-me que cada vez que tentava soletrar o meu mundo, através do brinquedo, ele me ordenava para estar quieto. “São horas do noticiário! Pára com essa mariquice, se não... Irra não tem jeito para nada.”
Meu pai... . Em mim não há indiferença. Nunca fui indiferente à vida, sobretudo à minha.
— “Não serves para nada. Nunca serás nada porque és inútil, és indiferente. Jamais vingarás, jamais.”
Eu cerrava os olhos para não chorar. Queria manter-me forte, mas era um fraco. E fraco fui até muito tarde.
Quando era criança perdia as horas esboçando as ondas nas íris dos olhos. Debruçava-me sobre os penhascos e abraçava complacentemente o mar. Fingia mergulhar até ao derradeiro e silencioso sepulcro das marés. De repente, viria à tona, rompendo com estrondo as ondas de cristal. Enchia as palmas de areia escorregadiça e contava cada grão até me esquecer do número em que ia. Lembro-me de permanecer mudo esperando o por do sol. Imaginava histórias para os meus sótãos escuros. Esperava ansioso o regresso do meu pai. Ele era pescador, pescador como poucos. Todos os dias às cinco e meia da manhã adentrava-se na escuridão com o seu pequeno bote, na companhia de cinco amigos.
Mas um dia fartei-me de esperar, a minha sombra vazia foi acordada pelo passos rápidos e sôfregos do meu irmão. Pegou-me pela mão e levou-me para casa, sem palavras. Observei-o durante o caminho. Manteve-se calado o tempo inteiro. Não trocou nenhum olhar comigo. Estivera a chorar? Pressenti que algo não estava bem.
A nossa casinha parecia iluminada por uma áurea de tristeza. O meu irmão bateu ao de leve na porta. Ouvimos passos lentos e pesados. Algum burburinho, uma cadeira caiu. Finalmente a porta abriu-se, pude exalar um cheiro forte a rosas e tulipas. Entrei primeiro. A minha avó Maria desviou a face, um momento. Não quis olhar para mim. Era o fim. Lá olhou para mim, enquanto me apertava com força as mãos, ainda ásperas da areia e do sal. Levou-me para a sala, sem delongas. Virei a face ao encontro do meu irmão, que se mantivera agarrado ao fecho da porta. Vi lágrimas nos seus olhos. Na sala vislumbrei um grupo de pessoas que não conhecia. Alguns vizinhos. E lá estava a minha mãe, segurando ao colo os meus dois irmãos mais novos. Tinha estampado no rosto a cor do desespero. Desatou a chorar logo que me viu. Abraçamo-nos durante muito tempo. Não era necessário dizer o que acontecera. Os minutos tinham passado, o alento perdera-se. Sabia que o papá não voltaria.Regresso, agora, muitos anos mais tarde a um limiar da minha própria essência. Toda a minha infância atravessa-se à minha frente, perante o olhar de desconhecidos. O grande Vivaldi, reveza os “Caprichos de Paganini”, sou a alma do maestro, primeiro violino, e a chuva inunda o mar e eu reteso as cordas para pronunciar a água que volve do céu. Todavia, estas são as lágrimas impronunciáveis que velo por minha mãe.
Reis Neutel

Prosa

A “NUBE”

Os motores rompem o ar em reviravoltas trémulas e fazem-na subir ao ponto mais alto da aldeia, aos altos onde ninguém põe a vista, à excepção daquele ditosa semana em que por ali se apeia a máquina dos céus. Os motores são o orgulho daquele homem que passeia olhando o alto, sempre enfadado com as cores azuis do altíssimo, sempre dulcificado pela alegria dos seus clientes ao romper a atmosfera nos anis dos céus; no sopro multicolor que engelha os cabelos das adolescentes, lhes levanta as saias, lhes destapa as barrigas; o mesmo hálito da tarde que descompõe o cabelo dos homens de idade, que faz lacrimejar os olhos dos pequeninos; o mesmo turvo éter como se fracturado aos pedaços e aros de cristal.
Os miúdos juntam os tostões ao cobro das pastilhas elásticas que não mascaram semanas a fio, roendo as unhas durante a décima quarta jornada, a décima quinta jornada, a décima sexta jornada, a décima sétima jornada – entorpecidos pelo folar dos padrinhos, acorrem à maquina astral, de mãos estendidas para a bilheteira e afirmam que foram os primeiros a chegar, que dinheiro não é coisa que lhes falta, ameaçam que não ousem porem-lhes as patas em cima, caso contrário não respondem pelos seus actos, pela autoridade do folar. Já se imaginam no escritório do advogado da cidade, com o folar dos padrinhos sobre a secretária, puxando dum cigarro pago com o mesmo capital, demandando a justiça, a razão, a equidade, a igualdade, a máquina etérea rompendo as nuvens dum final de tarde.
Os motores continuam a fustigar o ar em polvilhos sonoros que se estendem asperamente, numa zoada aguda que se expande em espectros e espirais voláteis dançando pelo ar, pousando nos sentidos dos transeuntes. Só os miúdos dos folares dos padrinhos sobre a secretária do advogado da cidade observam a engrenagem do aparelhamento, pensando que há-de chegar o dia em que serão donos de algum automóvel sussurrando safanões mecânicos pelos trilhos da aldeia. Talvez nem fosse má ideia saltar da máquina etérea e exigir o reembolso do folar, poupá-lo durante as trinta e duas jornadas da próxima época e juntá-lo aos folares que aí virão, no intuito de comprar um automóvel usado e abusado, daqueles que o Carlos leva para as corridas de ferro-velhos e sucatas, excitando a voz das meninas mais crescidas. O Carlos haveria de ver quem conduz melhor. O Carlos arrepender-se-ia daquele ar pimpão a levantar a taça patrocinada pelo salão de cabeleireiros da freguesia. O Carlos baixaria a bola nas conversas de tasca; já não apoiaria um cotovelo no balcão, não mais esquecido da cerveja na mão esquerda, não mais levantando o indicador da mão direita, não mais arranhando propositadamente a voz, não mais balindo ao imitar a voz do segundo classificado, não mais as pausas no discurso para emborcar um gole de cerveja e molhar a garganta até os olhos se lhe gotejarem numa vermelhidão ébria.
Os miúdos dos folares dos padrinhos sobre a secretária do advogado da cidade esquecem as corridas dos ferros-velhos, sucatas e chapas quando atingem o cume da aldeia, acima do sino da torre da Igreja, e lhes é dado ver o deslumbramento mecânico que se espraia numa fila interminável de automóveis; a uns oitocentos passos diz um, a uns oitocentos e dois passos diz outro, a uns seiscentos e trinta e quatro passos diz ainda um terceiro. Quando o maquinismo desce, apertam todos a barriga, puxam e repuxam o rosto, adivinhando as rugas que hão-de vir, se Deus quiser. E ao atingir de novo o topo do mundo, apontam para aquela muralha de chapa viva, de chapa ardente. Não lhes sai palavra alguma num momento, falam todos ao mesmo tempo num outro. Primeiro a face de espanto, depois o rosto retorcido que leva as mãos à barriga – parece que o estômago fica alojado na garganta ou vai alternando de lugar com o esófago. O cheiro das folhas das árvores infunda-se pelos narizes no momento da descida, emaranhando-se no polvilho desprendido pelo sapatear estrepitoso da multidão.
Chamam-lhe «a Nube». Uma nuvem que desenha círculos no ar, esboçando aros etéreos. É uma das atracções da feira, embora se não possa dizer que é a «grande atracção», pois, tradicionalmente, os Carrinhos de Choque conquistam os cuidados da grande parte dos foliões. Não quer isto dizer que, num ou noutro ano, as coisas se não acomodem de tal forma que uma outra distracção seja considerada a mais popular, devendo-se essa reputação a causas desconhecidas e, quem sabe, fruto da contingência. Mas «a Nube» é, desde há alguns anos, uma inquestionável atracção da feira.

***

Enquanto aquele ponto negro, desenhado no Sol, ameaça vir na sua direcção, traceja o rosto assustado e une as mãos para se proteger não sabe se da luz se da possibilidade do embate. Ouve-se depois o tinir dos ferros no chão e a réplica estusiástica da plateia.
«Ao poste!»
Surpreendido com os caprichos da Física, limpa o suor que não tem na testa e bate com as mãos em sinal de protesto. O ritual, herdou-o nas tardes de domingo, a apertar as mangas do casaco do pai para não se perder no meio da multidão e a ouvir-lhe a voz grave, gravíssima, a entoar contra as mesas, cadeiras e guarda-sóis das esplanadas por onde passava:
«Não, não, o Gomes sim, o Gomes é que era!»
O Gomes poderia ter sido, mas quem o levava ao estádio era aquele guarda-redes a bater com as mãos, a esfregá-las e a cuspir-lhes, como o avô, quando dava uso à gadanha. Aliás, o som da bola a ferir as redes lembrava-lhe o desbastar das ervas sob a inclemência da lâmina; e quando estava com o avô, impunham-se, sempre, no espírito, duas possibilidades: a gadanha ferir, num impacto súbito, um qualquer animal escondido no resguardo das ervas; e o cheiro do campo de futebol ser uma reprodução muito aproximada daquele que se instilava no corpo e que levava para casa no verdete denunciador dos joelhos das calças.
A baliza da escola, essa, não tinha rede, de modo que cada equipa mantinha sempre um rapazola, metade espião metade instigador, a vigiar os alvos. Isto apesar de a utilidade destes fiscais ser mínima, visto a equipa contrária desconfiar sempre dos seus cálculos e intuitos quando gritavam:
«Entrou, entrou que eu vi!»
No caso, toda a gente viu e ouviu o lance. Bola no poste, pontapé de baliza.

Na papelaria não havia cliente mais criteriosa do que a Joaninha. Os papéizinhos amarelos e enfeitados com aqueles ursinhos grudados a um balão que nunca estoirava; as folhas balsâmicas cujo fundo camuflado desvendava, timidamente, uma menina com uma saia um pouco acima do joelho, levando o pai a exclamar sigilosamente: «Ah caralho!»; esferográficas concorrendo com a impetuosidade de bombardas napoleónicas, reunindo variadas cores emanando um odor que se lhe entranhava nos dedos; pisa-papéis cinzelados, esculpidos, esgravatados, imitando o sorriso obscuro de uma meia-lua; tesouras cujas pegas plagiavam olhos agigantados, embuçados por pestanas ameninadas e maquilhadas; anões risonhos escondendo um afia lápis cujo orifício, não se sabe se por virtudes caprichosas do destino se por lascivos intentos fabricadores, substituía o rabo em falta, levando os rapazes a rirem sempre que a Joaninha introduzia o lápis no anão sorridente; lupas com pálpebras pintadas à mão; porta-lápis desvendando complexos proscénios campestres; mil lápis de cores cuja existência o pai ignorava; marcadores, compassos, réguas, esquadros, lápis de minas e respectivos porta lápis de minas e porta minas, agrafadores, fita-cola, encadernações cintilantes e um mundo de objectos que transformavam o quarto da Joaninha num recanto florido, rivalizando, pelo menos na sua opinião, com os mais sumptuosos aposentos das mais excelsas rainhas.
E foi neste ingénuo éden-creche que a Joaninha escreveu a sua primeira carta de amor.
A importância da carta não se encontrava no ideal do amor, pois nem sequer passara ainda pela cabeça da Joaninha o esboço do primeiro beijo; nem tão-pouco o conteúdo reflexivo da carta preocupava o seu ainda cândido entendimento. A essência da carta, mais do que a ontologia, era o grafismo propriamente dito. A caligrafia, o perfume e o desenho da folha figuravam a grande inquietação da Joaninha. O texto, em si, era curto e incisivo; uma única frase desvendando todo um coração
«Gosto de ti»
E depois, evidentemente, a hipótese de concordância ou refutação. Uma simples questão:
«E tu, gostas de mim?»
Seguida de dois quadradinhos meticulosa e pormenorizadamente desenhados, sobre um dos quais o seu herói teria que assinalar a sua sentença «Sim/Não»

Sob o ressoar exaltado da multidão, bate no ombro do seu defesa central
«Bamo’ lá, caralho!»
E o professor de Educação Física olha-o de esguelha, leva o apito à boca e assinala grande penalidade.
Multidão indignada com o juízo do desajuizado juiz sem contudo expelir palavrões, que o Director Executivo tem por hábito desafivelar as calças para flagelar as carnes pudibundas dos alunos.
«O que é que eu fiz?» pergunta um
«Foi casual!» afirma logo outro
«Disseste um palavrão» retorque peremptoriamente o árbitro
«Vai buscá-la ao fundo da rede» já exclamam reflexiva e reflexamente os oponentes.
«Quem é que disse o palavrão?» perguntam todos em uníssono ainda que não métrica e matematicamente uniformes.
«O Eduardo» aponta o dedo acusador do árbitro.
«O que é que eu disse?» questiona esganiçadamente o Eduardo.
«Aquilo que acaba em alho» avança o pudor lustroso do árbitro.
E todos riem timidamente da sílaba, subitamente arguida num julgamento que lhe é insensível.
«Querem matar a nossa equipa!» ecoa numa voz aflautada e longínqua.
«Disseste “caralho”?» pergunta o Manuel
«Tino!» adverte o árbitro enquanto faz a sinalética ameaçando o cartão amarelo.
E o Eduardo, de braços pendendo já sem o vigor do herói e semideus do Estádio cheirando à erva desbastada pela gadanha, tomba diante da culpa
«Disse-o inconscientemente e sem pecado…»
E gera-se um silêncio de absurdo a palmilhar a consciência de todos quantos assistiam ao jogo. O árbitro deixa escapar o apito da boca, olha entre dúvidas o rosto magoado do Eduardo e toma a última resolução
«É pontapé de baliza»
E a multidão responde com o rumor habitual de uma plateia de raparigas e rapazes envaidecidos com as suas equipas, como se nada tivesse acontecido, como se a voz da Joaninha não tivesse silenciado ante a sentença abrupta e despropositada do juiz de jogo.
A Joaninha grita por cima dos ombros das amigas e o Eduardo responde com uma cuspidela meticulosa sobre as luvas de guarda-redes profissional; a Joaninha suspira a cada defesa do seu herói e o Eduardo limpa o nariz à manga da camisola com o patrocínio dum Stand de automóveis; a Joaninha vibra a cada remate e não adivinha a determinação com que o Eduardo há-de desenhar a cruz na opção «Não», sem sequer ter cheirado o perfume, sem ter contemplado o desenho do ursinho e as cores garridas da carta, apressado que estava em participar num simples jogo de dois contra dois, constantemente interrompido pelos passar apressado dos automóveis na rua, mas onde podia bradar a pulmões cheios
«Bamo’ lá, caralho!»

***

A toalha sobre a mesa
o prato, os talheres, os copos, o jarro da água, a cestinha do pão, o pão de centeio, os guardanapos
uma nota de dez euros sobre um pires
eu sem apetite
a dar estalinhos no copo, a ver a água revolvendo em pequenos afluxos serpenteantes
eu sem apetite
a atirar as migalhas do pão contra o jarro da água
as migalhas do pão ricocheteando para o chão, pisadas por mil pés no frenesim da festa

aquela frase ressoando nos meus sentidos:
«Tem cara de pobre»

Eu sem apetite
A não ver os rostos dos outros anos, a não malquerer a estupidez humana, a não responder a pergunta alguma, sem dar indicações, sem responder a comentários sobre a corrida de cavalos.

«Mas também há que admitir, são as que melhor se ajeitam na cama»

A Joaninha,
de mãos agarradas às correntes do baloiço nas tardes sem aulas. O seu laço vermelho, ainda o não sabia, era a curvatura do universo, a cúpula do céu, o meu primeiro pequeno sinal de pequena consciência cósmica. Não a vi ler a carta que sofregamente escrevi sobre o balcão da carpintaria do meu pai. As lascas de madeira a enfiarem-se pelo envelope, o cheiro a serrim a enfaixar-se nas cartas e a caneta que tirei da orelha do meu pai a esborratar o papel com a tinta azul que me sujava a ponta dos dedos.

O empregado da tasca leva a nota de dez euros sem perguntar se estou satisfeito. Leva o prato ainda com o bife, ainda com as batatas fritas pintadas pelo sangue esparrinhado com o garfo, ainda com o ovo na borda, desfeito, esfrangalhado, ainda com folhas de alface esparsas, secas, com montículos de sal cumulados na brincadeira do ócio. A multidão que passa sem que eu a oiça. A multidão que sei que passa por me repetir todos os anos, por estar nesta mesma mesa, a repetir a minha história, a fracturar o meu tempo, a suspender o hálito e as pulsações da vida. Se não a mesma camisa, uma camisa muito parecida; se não as mesmas calças, umas calças muito parecidas; os mesmos sapatos com toda a certeza; o mesmo gel porque receio que os outros não sejam melhor. Sou arquétipo de mim mesmo.

E era como se o empregado me estivesse a dizer, a jurar
«Tem cara de pobre»
E era como se o empregado me estivesse a dizer, a jurar
«Mas também há que admitir: são as que melhor se ajeitam na cama»

A Joaninha, de livros debaixo do braço, óculos de haste prateada sobre o nariz delgado, o sorriso da resposta pronta nos exames, os dedos maculados pelo giz que mexia sem o meu nervosismo, e eu sem conseguir dizer-lhe que não comia por sua causa, que não dormia pelos seus cabelos, que não estudava pelos seus olhos, que me mantinha estático, deitado no sofá, de auscultadores nas orelhas a imaginar que me queria e que me não queria, a gostar que me não quisesse, a desejar que me quisesse. As férias do natal a aproximarem-se e eu sem conseguir dizer-lhe
«Tenho reparado em ti»

e a ouvir músicas que nem digo

vivendo duas semanas na aflição, contando os dias e achando-lhes eternidades em todos os instantes e pontos do espaço. Aqueles dias distendidos pelo universo, e outra vez um pequeno sinal duma pequena consciência cósmica, um sorvedouro entre mim e o tempo, sem escolha, o eleito, o ungido, o homem fracturando o tempo.
Enquanto todos carpiam pelo regresso das aulas, ali estava eu, no corredor, encostado ao cacifo, rindo dos professores, rindo do giz misturando-se com o suor da minha mão, rindo das matemáticas,
e sem coragem para lhe dizer que não dormia
a escrever cartas e a soprar-lhes para tirar as lascas de madeira, a atirá-las para o cesto de papéis, a arquitectar uma forma de o dizer, cheio de coragem, cheio de mim mesmo, e no dia seguinte
encostado ao cacifo, com vontade de vomitar, as mãos suando sem giz, a voz tremendo sem os números da matemática no quadro
era como se eu já pressentisse
«Tem cara de pobre»
era como se estivesse a ouvir o twist às voltas, os carrinhos de choque que nunca repetem um percurso na sua longa marcha restrita

O empregado da tasca está à porta
de braços cruzados,
e é como se tivesse giz na ponta dos dedos
como se tivesse tinta azul na ponta dos dedos
como se fosse ele a escrever as cartas
como se fosse ele a tirar a caneta da orelha do meu pai
como se ele fosse eu
como se eu, sendo ele, lembrasse ao arrumar a loiça:
«Tem cara de pobre, não achas, Eduardo? Aquilo não engana. Quenga até à medula. Diz que é a “biciclete” do bairro. Não sei. O que dizes?»
e é como se o empregado não tivesse conseguido dizer
«Tenho reparado nela»
e é como se o empregado não tivesse conseguido dizer
«Tens razão, tem cara de pobre»
e é como se o empregado lembrasse o silêncio quebrado pela voz do Paiva
«Mas também há que admitir, são as que melhor se ajeitam na cama»

Oiço motores de automóvel incorporando o polvilho da tarde, como de resto sempre acontece à excepção do ano em que, garante o empregado da tasca, o Augusto pertenceu à Comissão de Festas.
«Isso é que foi um bom ano! Bófia à porta de casa, sinais de sentido proibido pelas ruas, calmeirões passeando pela festa de walkie-talkie na mão. Categoria! Mas este ano não, cada um faz o que lhe apetece e aí está o resultado: pandemónio.»
Três buzinas entre o ajuntamento de automóveis, depois quatro, depois três e finalmente a indefinição. Eu sou o número de buzinas ressoando agora pela rua.

«Vais para a corrida de cavalos? É que diz que não aceitam inscrições de burros»

Irei à festa porque sei que ela está lá. Como quando ia à festa procurar a Joaninha; os carrinhos de choque vazios, sem a Joaninha aos encontrões, as cadeirinhas voadoras sem a Joaninha, arremessadas contra o vento de Abril, os vagões do «Twist» sem a Joaninha, os carrosséis apinhados de meninas que eu conhecia, de rapazes que me mostravam o polegar apontado para o alto, e eu sem conseguir discernir a Joaninha, a esticar o pescoço por cima da multidão, os sapatos agarrados ao alcatrão derretido sob o Sol que não me acalorava
as músicas que nem conto a martelarem-me a cabeça
e que me faziam associar a Joaninha aos nomes mais estranhos das mais extravagantes celebridades dos arraiais
o rebate dos carrinhos de choque
as faúlhas dos carrinhos de choque
a voz aciganada a apregoar as voltas ao mundo
e no poço da morte esvoaçavam dois motociclistas, agarrados ao meu coração e arrebatados à minha dor de a não ter
porque a festa é o meu arrependimento e a «nube» é o refúgio absurdo que não encontro na vida
não se volta ao mesmo lugar
não há solução
não se volta atrás
não se anda em círculos

e para além disso

absurdamente

não há mistério

não há círculo
mas também não há mistério

não há
na vida
mistério

só na nube

só na nuvem…
Leonel Ferreira

Conto

Atitude

A vida passava e passava, e ele nada podia fazer para impedir que a vida passasse e passasse. A vida ia passando ao de leve por ele e ele nada fazia que fosse digno de nota perante a fugacidade da vida. A vida ia tomando o seu curso e ele não tomava curso nenhum na vida. Ele chamava-se Asdrúbal Maciel e não era propriamente o tipo de pessoa que se mexe muito para o que quer que seja – normalmente o ponto alto da sua movimentação ao longo de um longo dia alapado num sofá ou num cadeirão, era o totalmente involuntário Movimento Rápido de Olhos que tem lugar durante o sono. Dizem que ele é um inútil. Dizem que ele não serve para nada. Dizem que ele é um mandrião, um preguiçoso, um passivo, um vegetal, um burro. Dizem-lhe muitas coisas, quase todas elas com o intuito de o fazer reagir, revoltar-se, mexer-se, levantar-se, explodir, arrancar, viver, sair por aí fora, mundo fora, vida fora, e fazer da sua vida algo que seja digno de se chamar vida. Outras vezes dizem-lhe isso só para o insultar. Mas quê, ele limita-se a fingir que não é nada com ele e fica-se na soleira da quietude impávida e serena do seu sedentarismo militante. Dia após dia, noite após noite, lá está o Asdrúbal Maciel muito entretido a fingir que a vida não é nada com ele, que o facto de ele estar vivo mais não é que um mero acidente de percurso do Universo. Ele dorme, e dorme, e dorme, e depois, quando já está cansado de dormir, vira-se para o lado e descansa um bocadinho. “Ah”, pensa ele, quando está suficientemente desperto como para articular pensamentos, “que fadiga esta de ir sendo enquanto se vai sendo qualquer coisa na existência”… A fadiga é, provavelmente, a companhia mais certa que Asdrúbal Maciel vai tendo desde o dia em que teve aquela trabalheira toda para vir ao mundo. Pfui! Só de se pensar nisso, até já escorre em catadupa uma fiozada de suor pela cara abaixo. E depois, é claro, lá tem ele de se virar para o lado e dormitar mais um ou dois dias seguidos para se recompor do choque.
No outro dia, no entanto, o senhor Aristides Telles, farto de ver o Asdrúbal Maciel a desperdiçar toda a vida alapado no sofá sem fazer rigorosamente nada de proveitoso nem de útil, disse-lhe uma coisa que lhe ficou a ecoar na cabeça durante muitas e muitas horas de torpor e de sono: “Asdrúbal Maciel, meu rapaz, não podes continuar a desperdiçar assim a tua vida. Tens de te levantar daí e fazer algo por ti. Tens de tomar uma atitude!” As palavras não lhe saíam da cabeça. Pensou nelas, sonhou com elas, teve pesadelos com elas, viu-as a voar à roda da sua cabeça, sentiu-as impregnar-lhe os sentidos, viu como elas se lhe apoderaram do seu ser, como tomaram conta de todas as horas da sua existência. E foi assim, num belo dia de manhã bem cedinho – aí pelas 14h45 – que Asdrúbal Maciel resolveu operar a maior revolução de toda a sua vida: decidiu que iria tomar uma atitude! Assim, ainda um pouco aos tropeções, levantou-se do sofá e arrastou-se até à porta, junto da qual descansou – mas sem adormecer!!! – uns trinta minutinhos. Mas estava decidido a não desistir, iria tomar uma atitude, a primeira da sua vida. Nada o faria desistir do seu propósito. Depois de se recompor do titânico esforço de chegar à porta da rua, abriu-a e saiu. Foi com um estoicismo sem igual em toda a sua experiência de vida que calcorreou os mais de vinte e cinco metros que o separavam da porta do café da Dona Bertilde Alecrim, no qual entrou, ofegante, encharcado em suor, o seu corpo a gritar por cada poro da sua pele que parasse, que desistisse, que se deixasse cair onde quer que fosse e dormisse umas vinte ou trinta horas para recuperar do esforço sobre-humano a que o sujeitara, ao passo que na sua mente um único pensamento, firme e inabalável, o impelia a avançar sempre mais um bocadinho, pé ante pé, um passo a seguir ao outro, sem vacilar, sem desistir, contra tudo e contra todos, ele está decidido a tomar uma atitude na sua vida e é isso mesmo que vai fazer aqui e agora, tomar uma atitude! Assim, quando a Dona Bertilde Alecrim vê o moço sentar-se na primeira cadeira que encontra, com o corpo completamente ensopado em suor, os olhos cercados dumas olheiras do tamanho de bolas de ténis, as mãos trémulas e a língua dependurada até ao queixo, vai ter com ele e pergunta-lhe:
“Então, Asdrúbal Maciel, vais querer tomar alguma coisa?”
“Vou, sim. Era uma atitude, se faz favor…”

João Tavares

Prosa

Turbo

Escrevo nadas que se materializam em palavras. Deixam de ser nadas para passarem a ser banalidades. E o que me fere o entendimento é que estas banalidades, como todas as outras, são reais. Isto não devia ser assim. Na verdade, nem sequer é.
Recomecemos…
É que eu já falei em verdade, e esse é o primeiro passo para se chegar à conclusão de que se está a mentir.
Por outro lado, falar na mentira é falar da verdade negativa, porque a mentira é também um termo. Recomecei mal porque me dirigi para o oposto da verdade. E isso é nada. Bom… talvez não seja nada, porque se o fosse não estaria materializado. É já alguma coisa. É uma banalidade. Recomeçamos?

Mas como se recomeça nada? Ou melhor, como se recomeça a impossibilidade do nada? A impossibilidade arrasta-me para a verdade ou para a mentira, e o que eu quero é permanecer num meio-termo que seja nada. Esta é a impossibilidade. Porque o meio-termo é já alguma coisa. Quererei o paradoxo? É possível.
Este recomeço é preferível, pois recomecei no possível. O possível é alguma coisa, é todas as coisas simultaneamente. O possível, sendo todas as coisas, é diametralmente oposto ao impossível que é, aparentemente, coisa nenhuma. O que finjo que me enfastia é este facto de o impossível ser mais categórico do que o possível. O impossível é finito, extenso, paradoxalmente inteligível. O possível é, senão infinito, pelo menos superador. Mas se o impossível é coisa nenhuma e até paradoxal – embora apenas aparentemente – então convém aos intuitos do autor desta banalidade.
Convém, mas ainda assim, é alguma coisa. O impossível é-me conveniente, mas eu quero, teimosamente, o possível. Se quero o possível é porque me é conveniente, porque só queremos aquilo que nos é vantajoso. Eu não sei se é possível desejar a dor, porque se desejamos, é provável que essa dor a seja apenas para os outros e que nós estejamos, apenas e afinal, a dar provas concretas à ideia do Espectro Invertido de John Locke, que coloca a possibilidade de usarmos o mesmo conceito para coisas que vemos de modo diverso uns dos outros. Portanto, desejo algo, e isto é alguma coisa e não uma mera banalidade. Aquilo que desejamos pode ser uma banalidade. O acto de desejar, em si, não pode ser uma banalidade, pelo menos em termos consensuais, porque o mundo é, afinal, “apenas” isso, uma questão de consensos. Convém, neste momento, recomeçar esta banalidade, pois temo ter deixado de sê-la para intentar passar a falar de verdades. E eu não quero verdades. Também não quero impossibilidades. Quero o possível. Quero a possibilidade do paradoxo.

Ocorreu-me há instantes que a melhor forma de encontrar a possibilidade é escrever uma banalidade. Não encontramos neste texto nenhuma impossibilidade. Admito que encontrar um sentido a este texto seja muito pouco provável. Ainda assim, respeito o princípio de Heisenberg que me diz ser apenas muito pouco provável que alguém encontre um sentido neste texto. Não há, portanto, impossibilidade. Por outro lado, este mesmo princípio de Heisenberg impede-me de ter como certa a impossibilidade de haver impossíveis. Portanto, é possível que este texto seja impossível de compreender. Mas notem, é apenas possível…
Leonel Ferreira

Poesia

Retro-modernismo
(Ou – Dói-me a Cabeça)

1 – Sim…?

Retro-modernismo é acordar num dia normal, igual a tantos outros, dar uma volta pela cidade com a mesma abstracção côncava e desanimada de sempre, um pé atrás do outro só pela mera acepção mecânica de não cair para a frente – ou para trás – ao proceder ao movimento que permite locomoção física por meio de duas extremidades posteriores, é ir parar aos bairros suburbanos da mente onde as paredes estão grafitadas com slogans de paz e amor entre os elefantes e os ratos, é ver com os olhos fechados os giroflés que crescem como caveiras desbotadas por sobre a camada oleosa de desinteresse que ponteia o dever patriótico a rigorosamente nada dos semáforos, é virar para a esquerda e ir em frente numa ruela que não tem esquerda nem frente, é passar por uma cena de obscenidade gratuita protagonizada por uma loirinha licenciada em direito que prostitui com uma verborreia exaurida pela força jurídica os seus moribundos ideais de justiça e gelados de chocolate em prol dum dia mais sorridente do que este – mas se o dia lhe sorri mais do que este, os dentes vão aparecer todos manchados de gelado de chocolate – e um professor de educação física com óculos e um catálogo de apitos debaixo do braço, é meter as mãos nos bolsos e ficar na mesma com elas ao frio e à chuva apesar de não estar frio nem estar a chover, é ir parar a um beco que, apesar de ser beco, não tem saída, é passar pelos caixotes do lixo do beco e ver lá um cadáver abandonado a apodrecer mas vestido de azul escuro e verde mediterrânico, é não saber a diferença entre o sol que se esconde numa caixa de oleados e uma bolacha de canela torrada. O Retro-modernismo é isto tudo e não é nada disto, pelo simples facto de o Retro-modernismo não ser coisa alguma.


2 – Lenço de papel reciclado

O lenço é feito a partir de papel reciclado
Ou
O lenço de papel é que foi reciclado?


3 – E se eu fosse

E se eu fosse
Um deus que ninguém adora
Um poder sobrenatural
Que se perdeu mundo fora
O antigo clamor da oração
Que prece alguma recorda
A visão que visita em sonhos
Quem a esquece quando acorda

E se eu fosse
Um capitão sem navio
Um sábio velho comandante
Que adormeceu ao relento frio
O último a abandonar
A embarcação afundada
Uma lembrança de névoas difusas
Que padece afogada

E se eu fosse
Uma bala sem pistola
Um jogo de futebol
Que decorre sem a bola
E se eu aqui
Não fosse quem eu sou
E fosse apenas as sobras
Do sonho que se esfumou?


4 – Não

Não

Não é assim

Não é assim que se faz

Que mais querem que vos diga?

Não é assim que se faz

Não é assim

Não


5 – Em Sangue

Leque em sangue!
O sangue está vivo!
E escorre pelas ruas desertas do desespero!
O sangue…
Vivo…
Anjos com túnicas brancas
Erguem o leque em suas asas
E levam-no para o Paraíso…
O sangue…
Vivo…
Uma quadriga de Deus
Leva o leque vivo
De sangue
Para os corredores do Paraíso…
Tanta luz!
Tantos anjos!
Tanto sangue…
Vivo…
Vivo?
Vivo??!!!
Leque sem sangue!
O sangue já não está vivo!
Jaz seco nos corredores de entrada para o Paraíso
O sangue…
Lavado pelas senhoras da limpeza do Hospital…


João Tavares

Poesia

A voz de dois homens encostados ao vago resplendor do abismo

Agora
Todos os dias tentamos iludir a morte,
Marcar o nosso próprio reflexo,
O teu
O meu
Compasso cingido ao instante de Deus
(Não existe o Outro dia).

Deus o ourives do tempo
Pelos seu dedos correm as linhas
Perpétuas do infinito
E do outrora jamais reescrito
No virar dos gestos
Ou na sombra de pensamentos e palavras.

Não existe outro dia,
Somente
este
Delírio de não acabar.

Violamos a vida para escapar à morte
Cruzamos o desejo e retomamos o cigarro,
A ponte cálida por entre os dedos
Por entre a esfinge do movimento.
Salvé irmão — orador da Utopia
Deleita-nos com a tua poesia.




A certeza ou a polifonia da minha querida vida
Cala.
Nada paira a Ocidente desta minha loucura
Fosse eu antes um cadáver apodrecendo
Na companhia de uma guilhotina.

Se eu soubesse o que era a morte
Juro
Ter-te-ia matado há muito.

As palavras passam pelo crivo do pensamento
Tal como eu me aniquilo
Nas noites longas de plenilúnio.

Arranco os estandartes das fogueiras,
Irmãs de vaidade,
Lugar onde pernoitam os corruptos
De ventre roxo
Expostos à minha ira bestial.

Serás um deles certamente.
Tempo fere-me na memória dos compromissos que declinei.

O homem permanece onde fica,
O homem já não vai onde queria
Os seus vestígios desaparecem para ele, com ele.

Deus ex-machina
Salvé
Os instantes polimétricos
Onde o corpo se extingue
Na mira de um caleidoscópio

E na incerteza de hoje, ontem ou amanhã —
Pereces.


Filipe Monval

Poesia

da morte não acreditamos alguns.
eu acredito. eu. sei o que a morte traz
por entre as bandeiras no espaço
contido do estourar de foguetes . ou
entre os passos das crianças, entre o pousar
e o voo das aves de tanta certeza.
eu sei do que a morte existe
eu sei no que ela insiste

[tenho traído os ideais todos, vendi as pratas, a honra e a paixão, sou estrangeiro num país por desenhar]

talvez te incomode com a certeza,
mas de outra coisa não disponho
e pelo parque, à hora absurda em
que as pessoas estão felizes,
faz-me falta sentir o que devia,
estou indisposto,
acredita que não o queria, nem o cria tampouco

[acreditei em deus nas dobras do tempo, na vida nos outros e em mim, em coisas e ideias, mitos e razões]

vive um homem tantos anos,
e nos anos todos o mundo corre,
nem que parado pois que o mundo se move.
e de tudo isso, de tanta coisa, só morre.
Eu sei eu sei e que sei e que se há-de fazer é a vida

[faço que me esqueço e olvido-me que não me recordo, e um dia, quando eu morrer, não digas a ninguém que te amei]

tenho colhido as flores.
agora já não acredito em jardins
e ao longe pressinto: nunca caminhei
por onde não podia e por isso nunca por onde devia
já que ao cabo é para morrer.
branco ou tinto, é para morrer.

Rui Gonçalves Miranda



do que eu te queria ter dito e não consigo

nada de real nada tem
é postiço este sofrer
e não é real sequer
o que hoje aconteceu

adio a palavra, travo,
o mundo, acredito,
e insisto nisto porque sei
que só pode ser postiço.


eu sei que não é verdade
[como pode? quem o pode?]
que nunca mais, sem mais,
que o irreal a si se descobre.

Rui Gonçalves Miranda



por entre o esplendor da luz perpétua

Entre ambos fingimos
que o mundo não acabou
e no intervalo de um café
saboreamos o torrar do nulo

de horas e partidas
de deuses fados e vontades
nestas mãos porque respiram
sentimos ainda os cravos

como calha. Pertenço
Pretenso à mentira dos capazes.
Talvez durma, viver cansa
sempre e nesta dança

calho de olhar para ti
levante-se esta mesa final.
Para de onde daqui? Desreal

]-e crocodilos de capô escamoso aspiram a ser
cobra engolindo os latejantes-[

entre nós ambos o fim

Rui Gonçalves Miranda



Quem trará, de entre
os passos que se avizinham
insuspeitos [mas onde estão?]
as ofertas da lembrança?
- Os deuses nos roubaram
em crianças, para um mundo
no qual se não deve acreditar-
. Descortina-se nesta peça
que alguém se esqueceu de fazer
de Deus, numa história que um
de nós ficou por contar

Alvoreasse em mim o desejo
de um voltear. Alvíssoras,
Terra à vista, capitão!
- E é tudo tão mentira
um sentir de papelão-
. Perdemos as ilhas todas dos amores
aumentámos a imensidão
e do que procurámos encontrámos
só o ficar por encontrar

Trouxemos do mar o impossível
baptizámos o inenarrável
- e calámos, por entre os interstícios
da carne, nossos demónios.



mas já não há quem nos aguarde

Rui Gonçalves Miranda



sem fim

não tenho garantia, estou, sem o estar
(como poderia?) vazio.
mas não é isso, acontece
estar do lado de fora do curso das coisas
[não oblíquo, de lado]
eu [que quando digo eu, digo eu]
predigo porque o vou sentir
que o pião gira deslocado
estou de lado
nem num lado nem noutro
corda sem brinquedo
talvez rio sem leito
onde me sento? onde me canto
agora que me desfasei?
quem me conserta,
caveira breve sem fim?

Rui Gonçalves Miranda



sopro


eu, que quando digo eu,
digo eu. não quero dizer
coisa outra. não digo outra coisa.
Eu. E eu sou eu e nem
tudo é eu nem eu tudo
nem eu me projecto em tudo
nem tudo está em mim
nem sou nada, coisa nenhuma,
não me lembra de onde vim
não me interessa para onde vou.

Eu digo eu. Plena justificação
da existência de cada estrela
por si e no conjunto porque
sei que sou eu porque
não quando nem porque
nem se nem ao. Digo eu.

Digo

eu, que não nasci nem
de deuses nem de diabos
nem de puta que os parisse
que não pertenço a nada ou ninguém
nem a todos e a toda a gente,
eu, este eu, coração de bufar.

nem princípio nem fim
nem intermédio ou pilar
nem nação nem o outro
nem outro nem perdido
nem fodido, fora de mim ou
despreocupado e sem compromisso

plena pulsão vital de dizer
eu
instinta distinta força. eu
que nem sequer sou,
mais, além, aquém,
demais, a menos,
talvez, porém, e tu
também?


Minha voz não é uma voz
minha não é. Eu

Rui Gonçalves Miranda

Poesia

Nas Outras margens de mim
Existe o breve rumor do caminho por traçar
Cinzas e pó que a memória não mais poderá conceber
O projecto consumado desconhecido nas pregas de um destino.
E
Nós, apenas, julgamos estar a olvidar a silhueta do olhar.

Reis Neutel

Citação

“Aquele que não consegue perdoar aos outros, destrói a ponte por onde irá passar.”

Francis Bacon

Poesia

Pedaços

Rasguei minhas palavras
E pensamentos…
Lancei-os ao Vento
E ele, em galopantes suspiros,
Os levou com magistral gosto!!!

Perdendo-os em minha vida,
Senti faltarem-se pedaços de mim!
Que miséria!

Arrependi-me…

Corri, corri, corri para os alcançar…
… Saturei!!!...

Subi umas escadas
Cujo fim era inalcançável…

Aaaaaaahhhhhhh!
Que queda triunfal!!!

Caí em local deserto,
Na infinidade…
Meus pensamentos e palavras
Lá estavam como virgens tocáveis…

Peguei neles e o Vento, (sempre tu!),
Levou-me para minha moradia,

Onde penso…
Onde sonho…
Onde escrevinho…
Con-correntes dores!


Os Deuses nada fazem…

Boiando entre meus lençóis,
O frio que estrangula,
Entra sem licença!

Quero escrever versos vertiginosos,
Cuja virgindade será explorada quando lidos…
Contudo, a inspiração falta-me e foge-me como
A lua da luz solar…

Febo e sua luz evaporam-se por entre as árvores
De nuvens feitas!
Erato, não inspira minha poesia
Jamais lírica ou amorosa!

Oh Deuses e Divindades,
Ajudem este ser para quem
Cada segundo é uma hora
E uma hora é dia esgotável em trabalhos mentais!

Camenas, socorre-me!
Minha poesia de macambúzia,
Que em terras movediças se perde,
Não solfeja…
Logo eu, que tanto gosto de cantarolar…

Bóreas, meu prezado amigo,
O mais célebre dos Ventos,
Vai buscar outra ajuda… um deus cego…
O Destino… porque não?
Tem debaixo de seus pés
O globo terráqueo e nas mãos
A urna fatal que encerra
A sorte dos mortais como eu… ou como tu!

Aaah! A força esvai-se de minha seca mão…
Oh, Noite, tu que és mãe do Destino, do Sono
E da Morte, esposa de Caos,
Leva-me a ver Platão, rei infernal
E dos mortos… talvez ele me aceite por suas terras!!!

Sou jovem… pareço ser…
Mas Hebe quis esculpir minha essência
Com paralelepípedos pisados pela dor e pela idade…

Será que me mereço esta (in) justiça?

Foi Eaco que me condenou… ele que é tão justo!


A inspiração desfaz-se
Como ondas de diamantes
Sem cor transparente…

Oh Minerva, dá-me um sopro
De tua mui lograda sabedoria!

Oh Lino, tuas poesia e música
Podiam querer invadir minha mente…

Oh Proteu, oh Orco… deuses do mar
Findável em meu olhar nublado,
Trazei minha poesia!

Por que não me ajudais?
Por que não nasci da espuma do mar
Como Vénus, bela e amada?

Rendo-me
A Hapócrates,
Silêncio de alma e corpo sentencioso…
A Mepómene e sua vivência de tragédia…
A Vesta que minha inspiração queimou…
…Para sempre!!!


Saudação a Martins Ferreira

Malabarista de poucas palavras,
Aponta dentro de si todos os
Rastilhos de solidão pouco querida!
Tem o «dom» de escrever por
Íntimas linhas, que
Nada parecem despertar em
Seres menos atentos, sensíveis!

Fere seu pensar com
Encontros fantasmagóricos feitos de pesadelos!
Rende-se à solidão limitadora e castradora que
Rasteia sua vida!
É um poeta?...
Integrando-se em viveres de alegria,
Rendilha seu ego de ânimos
Anormais e peculiares de sentimento!

Martins Ferreira