domingo, junho 10, 2007

NÚMERO 8

EDITOR 8IT0

“The man who writes about himself and his own time is the only man who writes about all people and all time.”

George Bernard Shaw (1856 - 1950)


Será o escritor uma espécie de predestinado, de um super-homem?
A marcha do tempo é inevitável. O mundo cambia em menos de nada. Somos vigiados pelas câmaras escuras dos nossos governos. Acabou-se há muito a privacidade. Sim, ou talvez não. Num exíguo sótão, o autor desafia o exterior, debate-se com os labirínticos contornos dos seus pensamentos, entorna tinta sobre eles, manipula-os até lhe dar a cor certa. Palavras são pensamentos prévios, sem pensamentos nunca o terem deixado de ser.
Mas tudo parece resvalar na inércia do mundo de olhares vagos. E ele, o centro do mundo, que bem conhece, o farol de turbilhões de pensamentos — pensa se valerá mesmo a pena escrevinhar signos por signos.
O acto de escrita surge da necessidade de uma auto - comiseração do ser-autor. A escrita funde-se nos recônditos dos seus desejos e aversões. Medita com a palma da razão. Porém, o silêncio dá lugar à dor. O peso do mundo abate-se sobre ele. Não há lugar ao regresso a casa, pois não há casa que o acolha mais. Resta-lhe um caminho. Continuar. Ele será a chave da nova criação. Deve, então, continuar, apesar da dor e do cansaço. Só assim, a obra nascerá e com ela a terapia no seu consolo.

Reis Neutel

CITAÇÃO I

“Cada um de nós faria mais coisas, se as julgasse menos impossíveis.”

(La Rochefoucauld)

ENSAIO: SEBASTIANISMO E TEMPO


Introdução

A reflexão sobre o mito não pode fazer-se sem a consciência de que a sua profundidade nos impede um termo. A procura de fundamentação do Sebastianismo afigura-se-nos, pois, impraticável, não apenas porque «o mito precede o discurso racional e sábio»1 mas mormente porque o corpo da crença no absurdo e sua sequente manifestação temporal no passado, presente, futuro e, particularmente, no porvir, nos toldam qualquer tentativa de explicação no sentido moderno, isto é, «…uma boa parte dos mitos (…) revela uma estrutura do real inacessível à apreensão empírico-racionalista»2. Daqui não resulta qualquer embargo para uma meditação sobre o fundo messiânico e histórico do sebastianismo e a sua incontestável influência e até ascendência na cultura portuguesa, pois parece-nos que «a originária sabedoria no mito semelhado ou figurado, precede a cultura»3. O que se pretende que fique mais ou menos claro é a incompletude de qualquer «teorização», «explicitação», ou «explicação» do domínio sebástico.

A estranheza do objecto não pode, entanto, desimpedir o interesse do investigador, eis o pressuposto da fragilidade daquele que se dedica ao estudo do Mito Sebastianista. Em última análise, o texto sobre o Sebastianismo participa da complexificação do mito, alimentando-o, contribuindo - por vezes de forma decisiva - para a sua própria incompletude. Assim o têm ditado a filosofia e a literatura construída em torno da figura do Desejado.

Este pequeno texto tentará erigir um ponto de partida para a indispensabilidade desta incompletude, firmada essencialmente no aspecto temporal do mito e no pressuposto de que com a fractura e tragédia da História de Portugal se abandona um Império material em proveito de um Império que, consciente ou involuntariamente, se «quis» da Existência e do paradoxo entre o Desespero e a Esperança, pois o mito «rememora a separação entre Deus e o Homem, a queda, a dor e a morte, preanuncia o restabelecimento da harmoniosa unidade»4. O Sebastianismo consubstancia, sob a forma histórica, religiosa, estética e filosófica, o sofrimento do povo português. E este paradoxo é decisivo para a compreensão do Sebastianismo, pois é quando aparentemente o Homem perde a esperança, que se renova a fé no absurdo. Não é pois apenas o passado o que está em causa no Mito Sebastianista, mas, e de um modo decisivo, o futuro, porque deste fenómeno esquivo depende «a compreensão do nosso presente, assim como a legitimidade ou a inanidade das esperanças postas no porvir de todos nós»5.

Nos momentos traumáticos, o Sebastianismo renova forças. Preanuncia-se entre a Apagada e vil tristeza de um Portugal estrangeirado e fragilizado pelos fanatismos e pelas intolerâncias inquisitórias dos tempos de D. João III, emana do desastre de Alcácer-Quibir, e regenera-se durante o domínio Filipino. «O Sebastianismo, fruto da Saudade activada, se nasceu à volta da frágil hipótese do regresso de um rei desaparecido sem sucessão, tornou-se o nervo da resistência ao domínio castelhano (…) um verdadeiro mito nacional, o que justifica tomá-lo por nome próprio de um modo de resistência colectiva»6.

Neste ensaio se apresentará um caminho que conduza à possibilidade de o Mito Sebastianista respeitar, não apenas um momento profano ou mítico mas, de um modo decisivo, a tradição espiritual portuguesa relativamente às questões temporais. E manifestando o mito os traços essenciais da cultura portuguesa, concluir-se-á a sua indeterminação, o seu não-objecto, a sua incompletude e renúncia a sistematizar-se, não apenas indiciada pelo seu carácter mitogénico mas principalmente pela sua comunhão com uma tradição cultural, que encontra eco – contemporaneamente, julgámo-lo – em parte do corpo teórico do Existencialismo. Entretanto, apesar de se apontar determinados momentos e correntes filosóficas às categorias que julgamos ser sub-estruturas do Sebastianismo tais a Saudade, o Desespero e a Fé, a sua complexidade impede qualquer tentativa de adequá-lo integral e radicalmente a movimentos e correntes filosóficas.

No Mito Sebastianista, Passado, Presente e Futuro não se estratificam, não são susceptíveis de fixação. A irracionalidade do mito possibilita o movimento gracioso da dança e da poesia, o deambular e o espiralar da Serpente e daí a sua não objectivação, o seu puro indeterminado. Não significa isto que o Sebastianismo se não possa reverter em acção e em prospectiva vontade. O que se pretende fazer notar é que as categorias do mito não se adequam nem à necessidade nem à contingência, não dependem de uma substanciação ou fundamentação, não se resumem a um passo decisivo e revelador. O Sebastianismo “construiu-se” pela Fé, pelo Desespero, pela Esperança, pela Angústia, por tudo isto e por nada. O Mito, disse-o Fernando Pessoa, é o “nada que é tudo”. Por isso o Sebastianismo influiu de modo decisivo na filosofia e na poesia portuguesa. A figura do Desejado despertou a atenção de todos os grandes nomes da cultura nacional, tais os de Luís de Camões, António Vieira, Almeida Garrett, Fernando Pessoa, José Marinho, Sampaio Bruno, António Quadros, Francisco da Cunha Leão, António Nobre, Afonso Lopes Vieira, Teixeira de Pascoais, Jorge de Sena, entre muitos outros poetas e filósofos que, sebastianistas ou anti-sebastianistas, se dedicaram à compreensão de uma verdadeira religião nacional na qual «se juntaram, em partes iguais o messianismo hebraico-português, o cristianismo messiânico-encarnacionista e os velhos arcanos céltico-bretões, como também, e cumulativamente, as aspirações nacionais e populares, quer a um nível onírico quer a um nível sócio-político»7.

O Sebastianismo foi, para alguns, o motivo das esperanças nacionais, para outros a figurativa estagnação da vontade lusitana. De outro modo não poderia ser, e este é o passo primeiro para a compreensão do mito, isto é, o comum acordo entre a vontade de compreensão e a inelutável ânsia de indeterminação inseparável da condição humana. E se o Ser se encarregou da essência do Pensar, tal o afirmou Martin Heidegger, é compreensível que o Sebastianismo, tendo mais a ver com a Existência no sentido em que respeita à indeterminação, ao assombro e à perplexidade, tenha imperado, de modo tão decisivo, na poesia portuguesa, pois «A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o consumar a manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam»8. O Sebastianismo afirmou-se não apenas através de categorias existenciais mas aportou ao próprio Ser, no sentido em que se desdobrou, pela filosofia e poesia, ao Pensar Português e ele próprio se constituiu como o reservatório, por excelência, da essência da nossa espiritualidade.

O Sebastianismo não rejeita o Nada, mas tal não justifica que se gere do Nada. Ancorando-se no Passado, vivendo-se no Presente e anelando ao Futuro, o Sebastianismo espirala a Realidade. Aparentemente não se cumpriu ainda o regresso do Desejado. A cada negação, a cada opressão, o mito reforça-se. A figura do Desejado, a Ilha Encoberta, alimenta-se da negação e da ausência, edificando-se em paradoxos e espiralando entre antinomias. Não se tratará, certamente, de eternidade, na medida em que tudo finda, mas pretender-se-á demonstrar que não há escatologia senão um fim para além dum fim.


Leonel Ferreira

POESIA: D. SEBASTIÃO

INVERSÕES DO INCÓGNITO

Alma-Império de mim partiste
Como as lágrimas dos que me sonharam
Cinzas que
Retomam sua sombra
como último destino

Sopro veloz e brando retoma
Agora
O teu fluxo
E dilacera em mim
A tua sentença infernal.


Filipe Monval

CITAÇÃO II


“O prazer é frágil como uma gota de orvalho, morre enquanto ri.”

(R. Tagore)

CONTO

ANITA

(Atenção: este excerto não é indicado aos adoradores do Noddy e do Bob o Construtor)


Episódio 2º - Uma surpresa nunca vem só


— Que seca! — pensava Ricardo, enquanto olhava à sua volta. O disco-bar estava às moscas. A música indiana e o ambiente retro anos oitenta fustigavam-lhe os sentidos. Eram onze horas da noite. Onze horas, apenas! Parecia-lhe ter passado tanto tempo.
— Ei Ricardo, estamos há quinze minutos aqui e ainda não falaste de ti. O Miguel disse-me que trabalhas numa empresa de contabilidade.
Ricardo fitou a rapariga, que se encontrava sentada ao seu lado, mas com algum receio. Parecia custar-lhe olhá-la olhos nos olhos.
— Como é feia — pensava — e aquele buço. Qual buço? Que bigodaça me manda esta.
— Ricardo, Ricardo estás cá?
— Sim, desculpa Miguel. Estava distraído. Cansado. Marta perguntavas-me...
— Oh, o que fazes ao certo?
— Trabalho burocrático. De tudo um pouco — rematou.
— Ah! E isso é duro?
— Sim, muito — respondeu inseguro.
Nesse momento, Miguel levanta-se e toca no ombro do amigo.
— Anda vamos buscar umas bebidas para as nossas convidadas. Só um momento meninas. Vamos trazer-vos duas bebidas bem boas. Anda daí, rapaz — disse novamente ao amigo.
Como que salvo no último segundo de morrer num submarino perdido no fundo do mar, assim se sentia Ricardo. Mais no fundo não podia bater. A sua expressão mudou, era agora alívio que reflectia. Chegaram ao balcão em três ou quatro passos. Passos lentos, mas largos. Miguel fitou o outro friamente, perscrutando-lhe o que lhe ia na alma. Seria o peso da idade? Seria cansaço?
— Conta-me, o que se está a passar? Tens algum problema?
— Não, nada.
— Eu conheço-te, pá. E sei que se passa alguma coisa.
Ricardo observou como os olhos verdes do amigo cintilavam.
— Já sei. Daqui a três dias fazes anos. Sentes-te mais velho, sentes-te frustrado, mas...
— ... estou cansado, rapaz.
— Vá lá conta-me a verdade. As gémeas são umas brasas e tu dizes-me que estás cansado. Vamos divertir-nos. O ambiente é porreiro, a música é...
— ... deprimente?
— Hã? Estás de gozo?
— Nã, esquece.
— Não acredito. Saíste-me cá um esquisito. Para ti nunca está nada bem.
— Vamos lá pedir as bebidas, estas pago-as eu, ok?
— Ei meu, relaxa. Vai tudo correr bem. Aproveita o momento. Vamos fazer uma grande festa com as gémeas na próxima quinta. Que dizes, pá? Para festejarmos, vá lá.
— Não sei. Não estou nos meus dias.
— Não gostas mesmo de nada. O que queres afinal da vida? Este sítio é especial, a Marta é especial e tu aqui a lamentar-te. Olha bem para aquela miúda.
Ricardo moveu desconfortavelmente os olhos na direcção da mesa das raparigas. A Carla, a acompanhante de Ricardo era vistosa. Tinha os olhos bonitos e expressivos, talvez verdes, talvez azuis, a pele lustrosa e alva, uma pequena boca fina mas bem demarcada, umas sardas pequeninas, quase imperceptíveis. Contudo, encontrava mais encanto no cabelo ruivo da rapariga. Desde tenra idade tinha manifestado uma certa inclinação para gostar de ruivas. Porém, havia a sombra da irmã gémea. Sempre a sombra da irmã a pairar por perto, como que eclipsando aquele deslumbramento. Mas deviam ser com certeza gémeas falsas. A Carla, aaaaaaaahhhh, como lhe causava repúdio observar a moça. Era igual à irmã, ruiva, sardenta, olhar meloso, e até aqui tudo bem, mas o bigode estragava tudo. Talvez se não fosse ruiva, se não tivesse a pele tão branca... não desse tanto nas vistas. Mas que caramba, um homem com um certo status tem de ter cuidado com as suas companhias! Lamentou-se da sua falta de sorte.
— Mas o que queres que te diga. Este não é meu sítio. Sinto-me deslocado. O ambiente é... engraçado, mas este não é o meu sítio — voltou a ripostar com Miguel.
— O quê? Agora é... este “não é o meu sítio” — Miguel franziu a testa, cruzou os braços e com um ar sábio suspirou —. O menino quer violinos, vinho francês, pratos de loiça inglesa, pessoas de smoking, Oh très Charmant.
— Esquece, pá. Tu não entendes.
— Claro que entendo. Olha para mim, — puxou-o pelo braço com força —, sabes qual é o teu problema? Sabes? Tens medo de ser feliz, — o amigo de boca aberta olha-o estupefacto —, receias procurar a felicidade. Essa é que é essa. Tens mais a perder do que a ganhar se não arriscares a tua felicidade.
Ricardo pediu duas bebidas, deixando o seu amigo imerso nos seus pensamentos. Miguel durante largos segundos não ousou abrir a boca. Este gajo droga-se — pensou.
— Se queres ir ao teatro ou à ópera, força. Não contes mais comigo. — Bebeu um gole e retirou-se da beira do amigo, rumando em direcção da sua gémea.
Ricardo ficou imóvel, petrificado. Ficou a remoer as palavras do amigo. Aquele mesmo amigo vago e fútil. Nunca o seu amigo em mais de trinta anos de amizade — conhecia-o desde os quatro anos — tinha tido um momento tão iluminado. O que lhe sucedera? Seria a madures, finalmente? — pensou —. Aquele rapaz estava a tornar-se num homem. Procurar a felicidade, era isso. Procurar ser feliz, é o melhor conselho que lhe podiam ter dado e logo vindo da pessoa menos propensa para tal. Voltou-se para a sua gémea e encontrou logo o buço da rapariga.
— Não pode ser, devo estar com alucinações — pensou — não é possível que o bigode seja visível a três metros de distância e com pouca luz. Vou pedir uma bebida mais forte. Um, um não dois shots. E haverá sempre um terceiro à mão — e sorriu. Voltou-se para o barman e pediu dois shots bem fortes. Bebeu-os de penálti, um após o outro. Abanou a cabeça, sentiu como o veneno mergulhava pelas suas entranhas. Imediatamente, ficou enjoado. Respirou fundo, deu duas ou três palmadas em cada face, bateu com os pés no chão e em seguida, uivou desalmadamente. Todo este espectáculo decorria mesmo em frente das gémeas e de Miguel, que permanecia imóvel, medindo cada um dos enérgicos e bizarros gestos do amigo. Teria ele perdido a razão? Nunca o tinha visto beber daquela maneira, muito menos comportar-se como um louco, — Credo! Fiz merda, — magicou para consigo — oh, mãezinha o que fui fazer? — Miguel pôs as mãos sobre a testa, tapando os olhos, sentiu-se perturbado, embaraçado, escandalizado, o que iriam pensar as raparigas? Ousou, nervosamente, alvejar de esguelha as reacções das gémeas.
Mas as gémeas, sobretudo a Marta, deliciavam-se com o desenrolar frenético dos acontecimentos. Agora aplaudiam de pé a gesta do herói sobre o palco, de peito bem aberto pedindo um terceiro shot “El Matador” e de seguida um quarto e pede com valentia o quinto. Com estrondo o copo do shot caí, caprichosamente, ao chão e parte-se em mil e um nacos (PRSHHHHHHHHHHHHHHHHiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmmmmmmmm).
— Ups!
Ricardo muito vermelho, mas agora o vermelho da rectidão moral estabelecido na sua face, pois parecia ter recuperado o tino, dirige-se com inefável subserviência e educação ao barman, pedindo mil e uma desculpas. O homem riu-se, o que chateou ainda mais Ricardo. Tinha que resolver rapidamente o imbróglio.
— Bem, dois martinis brancos duplos, se faz favor.
Pegou nos dois copos e devagarinho, para não cair, pois sentia as pernas um pouco bambas, rumou de volta à mesa. Sentia-se ainda mais desconfortável. Que mísero espectáculo tinha proporcionado e ainda por cima a Marta tinha apreciado. Deu as duas bebidas às raparigas e sentou-se sem abrir a boca. O que fazer a seguir. Deveria despachar a rapariga? Não era seu hábito ser descortês. Tinha que pensar em algo, rapidamente. Como sobreviver àquela noite de pesadelo? Fitou Miguel. Este lívido também não ousava abrir a boca. Foram as gémeas que começaram a puxar conversa, manifestando júbilo pela espantoso desempenho do trintão. Ambas falaram pelos dois durante infindáveis horas.
As raparigas além de falarem demasiado, bebiam como bestas. O charme de Carla rapidamente se esmoreceu para Ricardo, mas não para Miguel, que aos poucos e poucos se voltou a animar e começou a beijar o pescoço da rapariga.
Pelas três e meia da manhã, finalmente a Marta começou a dar sinais de fraqueza. Já não completava as frases, ria-se sempre a meio e a irmã ajudava à festa, com gargalhadas monumentais e roncos inumanos, — deplorável a todos os títulos — pensava Ricardo.
Mas a irmã num, agora, raro momento de lucidez levantou o copo de gin tónico, o qual fitou especada e começou a falar de uma estranha alergia de que padecia e do tratamento médico que efectuava diariamente e, principalmente dos seus inestéticos efeitos secundários. Nesse mesmo instante, voltou-se para Ricardo.
— Ricardo, amor! Sabes que eu... se calhar ainda não notaste... tenho alguns pelitos... aqui e acolá — e pousou o dedo indicador sobre o bigode e sobre as faces, junto aos ouvidos — estás a ver? É horrível, não é?
— Sim — balbuciou Ricardo — mas, não se nota, pois não? — atalhou desviando o olhar rapidamente na direcção de Miguel.
Miguel num movimento torpe e inusitado levanta a cabeça e coloca-a mesmo em frente da pobre moça.
— Ei, não posso acreditar. É horroroso. Que pêlos enormes. Que tragédia singular!
Ricardo levou mão à cabeça. O seu amigo estava completamente grogue.
— Não ligues. Ele está sempre a gozar.
— Não estou nada, meu. Tu és mutante? Só podes ser mutante.
Marta começou a chorar, enquanto a irmã a tentava consolar. Alguns momentos depois, a rapariga apavorada e embaraçada pegou na sua carteira à tira colo e saiu a correr. Carla, seguiu-a logo de imediato, sem se despedir dos dois amigos.
— E eu a pensar que estavas no caminho certo.
— Hã?
— És um idiota. Acabou a bebida.
— Hã? O que eu disse de mal?
— Anda pega no casaco. Vou levar-te a casa.
— Eu não preciso de ti.
— Fica aqui vou pagar a conta.
A noite finalmente acabara, sem contudo findar da melhor maneira. Ao chegar ao seu pequeno apartamento, Ricardo estendeu-se na cama e adormeceu.

* * *

O aniversário de Ricardo chegara. Miguel tinha uma surpresa para ele. Uma semana antes, tinham visto numa papelaria um livro de comics da série favorita de ambos, o Super X. Ricardo parecia ter-se entusiasmado, chegando mesmo a comprar o livro, segundo ele para “recordar os bons tempos de adolescência”. O Super X era o melhor de todos os super-heróis. Carismático, versátil, forte, justo e galã. As mulheres não se lhe resistiam. Um exemplo perfeito de virilidade. Fazia tudo sem esforço e não tinha adversários à altura, bem a não ser o malévolo Dr. Ezquizo. Mas o Super X era um espectáculo, uma lenda. Agora Miguel lembrara-se de estampar numa t-shirt o símbolo mítico do herói e oferecer esta ao amigo.
Decidiram almoçar juntos nesse dia. Miguel passou um pouco mais cedo do que combinado pela empresa de Ricardo. Enquanto esperava, espiou as actividades de uma das funcionárias. Ora se debruçava para arranjar as meias, o que fazia rejubilar Miguel, ora levava as mãos aos fartos cabelos negros para os pentear, duma forma que ele considerou muito sexy.
— Deixa a Margarida em paz. Ela não é o para o teu bico.
— Ah, nem te vi. Como que não é para o meu bico?
— Nem para o meu. Já tentei. Vamos embora.
— O que te fez.
— Deu-me com os pés.
— Vamos passar por ela, por favor,.
— Está bem.
Ao passarem pela mulher de fartos cabelos negros e de longas pernas sexys, Ricardo cumprimentou-a. A rapariga sorriu.
— Olá Ricardo.
— Vou almoçar. Xau.
— Xau, até logo. Bom almoço.
— Obrigado, — responderam os dois homens em coro.
Mal se voltaram, deram de caras com Anita e uma amiga desta, que se encontravam à espera do elevador. Ricardo corou. Miguel abriu a boca e nada disse. Foi a rapariga morena que acompanhava Anita que falou:
— Vão para baixo?
— Com certeza! — respondeu prontamente Miguel.
Ricardo observou como Anita nem sequer os olhou. A rapariga parecia ignorá-los. Manteve uma atitude distante e altiva durante o percurso de elevador. Emanava uma fragrância suave. Ricardo sentiu-se nervoso. Ela e amiga saíram sem dizer nada, em passo rápido. Ricardo seguiu-as com o olhar. Ele e Miguel estavam dois passos atrás. Anita estacou à saída do edifício, procurando alguma coisa na carteira, enquanto a amiga abriu a porta. Passados alguns instantes, tirou o telemóvel da carteira. Nesse mesmo momento, Ricardo chegou à porta, Anita com a mão direita não permitiu que a porta se fechasse. Ricardo encontrou os olhos verdes de Anita. Suavemente ela sorriu-lhe. Ele agradeceu-lhe o gesto.
Durante algum tempo Ricardo, inconscientemente, observou-a, enquanto ela se distanciava na calçada da rua, até que a sua silhueta se dissolveu na malha de figuras anónimas.
— É pena, muita pena. Que tragédia singular.
— Ah?
Miguel pôs a mão no ombro do amigo e abanou a cabeça.
— Que mulheres! Que desperdício — e suspirou fundo.
— Desperdício?
— As duas, nós os dois, que raio de mundo. Vamos lá comer, Ricardo, isto já me deu a volta ao estômago e depois tenho que voltar para o jornal.


* * *

A festa de aniversário começou às sete da tarde. Na minúscula sala de estar de Ricardo, os seus pais e o amigo, Miguel começaram por incentivá-lo a colocar um estúpido barrete do “rato Mickey” e a bufar num apito com toda a força. O aniversariante acedeu a ambos os pedidos, todavia com manifesta hesitação.
Logo após, os pais passaram-lhe para as mãos, com muito cuidado um saquinho transparente, no qual se encontravam dois peixinhos dourados virados ao contrário. Ricardo notou, fazendo deslizar os dedos por uma das extremidades do pequeno saco, como o mesmo estava furado. Fitou os pais por uns segundos na ânsia de obter mais informações sobre a proveniência dos peixinhos, mas percebendo que nada iriam dizer, prontamente agradeceu-lhes a oferta.
Os pais ainda tinham uma outra prenda, um livro intitulado: “Como ser feliz em trinta etapas”. A obra era abundantemente ilustrada, o que segundo o papá Horácio tornava as coisas muito mais fáceis para o seu filho.
Por seu turno, Miguel deu-lhe uma edição especial de um livro bestseller, o “Kamasutra ilustrado para iniciantes”. Miguel conseguiu arrancar, apenas do seu amigo, um ligeiro sorriso cínico e uma promessa de que as coisas não iam ficar por aí. No entanto, a mamã Elvira não enxergando bem o que aquela obra, também ela profusamente ilustrada, debatia, teve o seguinte o comentário para o seu marido:
— Era bom que o nosso menino se arrumasse com alguém, não era Horácio?
O homem, coitado, lá teve de assentar com a cabeça.
Por fim, Miguel apresentou-lhe a última das oferendas. Envolta numa caixa preta, com um laço vermelho por cima, encontrava-se a t-shirt com o mítico símbolo do Super X estampado.
Miguel segredou qualquer coisa ao amigo.
— Não estava à espera. Uma camisola do Super X. Original. Obrigado.
— Vá lá, não sejas tão modesto. Não querias vestir a pele de um garanhão — e riu-se selvaticamente.
Ricardo sorriu, desconfiado. Abriu a camisola e pô-la à sua frente. O estampado era perfeito e de certeza que a camisola lhe assentaria bem.
Ricardo sorriu e cumprimentaram-se.
— Quem sabe se não a levo amanhã para o trabalho.
— Ah, isso é que é falar.
— Estou a mangar, pá.
— E qual era o problema de a levares?
— Bem, preciso de arranjar umas meias com ursinhos e veados a condizer.
— Oh, não sejas infantil.

* * *
O jantar decorreu tranquilamente, somente a monotonia era interrompida pelo sorver da comida da mãezinha e a renite do papá, o que bem vistas as coisas, até não era dizer pouco.
Quase duas horas depois, chegara a hora de cantar os parabéns e soprar as velas. Desta vez, o protagonismo foi entregue, na íntegra, a Miguel. O pobre rapaz depois de ter bebido quase uma garrafa e meio de vinho e uma garrafa inteira de champanhe, não conseguia estar de pé, muito menos cantarolar a música ou mesmo decifrar quem era o aniversariante. Por duas vezes tentou beijar o velho Horácio, à terceira foi impedido resolutamente pelo amigo, que envergonhado, o forçou a manter a compostura.
Antes de apagar as velas, Ricardo observou detalhadamente cada um dos presentes, enquanto cada um dos convivas o puxava para soprar com força.
— Pede um desejo, meu filho.
— Sim, pá. Força!
— Ainda não casaste, oxalá casasses, não é Horácio?
— Sim, sim mulher, pois... — ronronou o pai.
— Isso, casa nova — vociferou de rompante o amigo.
Ricardo olhou apavorado para os parentes e para o seu querido amigo, que já trocava os olhos, os olhos lacrimejantes da mãe, a renite alérgica do pai, os olhos tortos do amigo, as choro da mãezinha, os ranhos do papá, o olhar vidrado e desfocado de Miguel, o pranto da mamã Elvira, os moncos do papá Horácio e todos em coro...
— Sopra, sopra, sopra...
Os olhos trocados do amigo, os ranhos da mãe, o choro do pai... O que Ricardo poderia desejar?
— Sopra, sopra, sopra...
Ricardo olhou para os peixinhos dourados mortos, os dois livros ilustrados e finalmente para a t-shirt com o mítico X. A camisola que o seu herói de juventude vestia, o mesmo herói galã, que tudo resolvia sem esforço e era irresistível para as mulheres.
— Vá, sopra, meu!
— Pede um desejo filho, — gritava a mãe.
— Vamos lá campeão, — bafejava o papá.
— Anda lá caramba. Com toda a pujança.
Mais uma vez Miguel estragava a solenidade do momento. Ricardo fitou-o. Voltou a cara para ver cada um dos presentes e depois os olhos disfuncionais do amigo, que agora soprava no apito, como se não houvesse amanhã, os moncos da mãe e do pai. Como que envolvido por uma estranha força fechou os olhos, dois pensamentos vieram-lhe a ideia, num instante sentiu-se como preso no centro de um imenso vórtice, de onde lhe era permitido contemplar um grande X vermelho e os olhos brilhantes de Anita. Imediatamente, como que saído de um embate violento, soprou com toda força as velas, as trinta e cinco velas num desvelo de super herói.
Bateram as palmas e entoaram novamente os parabéns a você.

*

POESIA: ALÉM DAS PALAVRAS DO MUNDO

Poesia I

ODE SINUSOIDAL


Latente contracção de esponjas amarelecidas

Pelo vento, pelo tempo, pelo sustento

Que me lambe as feridas das mãos

Que eu fiz ao saltar os muros com arame farpado

Do sonho de ser mais alto.

Mórbidas insolações de Inverno em dias de chuva

Arrastam carrascas lembranças do futuro

Que nunca tive nem nunca hei-de saber.

Inútil! És um inútil, sonho!

Serves só para não servir para nada!

Banhas com banhas de cobra as cobras que não se banham!

E não passas de um inútil…

Deita-te ao ar de almofadas em punho

A ver se alguma dispara na direcção errada

De voltar para trás indo seja lá para onde for

Sim, seja lá para onde for,

Que ir para qualquer lado

É sempre ir na direcção errada.

Bandeiras olfactivas de peixe podre

E odorizantes matinais perenes

É disso que se queixa a multidão amordaçada?

Soubesse a multidão que é multidão sequer!

E já não se queixavam de mais nada…

Vai-te embora daqui para fora

Ou fica lá longe do outro lado de ti…

Cortei-me outra vez pela primeira vez

Isto está sempre a acontecer

E já nem sei que bolso hei-de usar para pôr lá dentro

Os dentes partidos que me vão cair

Quando me esmurrarem amanhã de manhã

Ou de madrugada

Ou de noite

Ou de comboio

Ou de bicicleta

Desde que não seja com borboletas da Antártida.

É sempre assim que o mundo se diverte

Atira caixas contra a parede do riso

E espera que os vampiros da saudade

Se vão refastelar a seguir

Completamente imundos e a pingar sangue pelas narinas.

Já percebi…

Estou doido…

Não faz mal, assim também não tenho

De estar sempre à espera que me deixem atravessar

A estrada

Fecho os olhos e a estrada já não existe

Assim, já não tenho de a atravessar.

De resto, podia ser pior…

Se ao menos o sonho não fosse um inútil…

Eu não teria de estar preso nas suas malhas!



João Tavares

Poesia II

O LIVRO SEGUNDO DE JUDITE


Se a palavra mata, Judite,

Eu aqui não exorto a tua imagem

Encontrei há tempos uma mensagem

Que me enrubesceu e deixou triste


É que juro, não sou quem disse

As desolações da minha pobre carta

Antes morto, antes visse

Mefistófeles e o raio que o parta


Nem os versos rimam

Nem o coração se alegra

Diante da frouxa feição que de mim tracei

Não sou a rota e ébria criatura que esbocei

Ante o ciúme louco e a paixão cega


Poeta já fui, passado, antiquário

De promessas vãs e falsos perdões

Pudera um pobre escriturário

Apresentar as suas razões


Já acendi velinhas à Senhora

Mas não sei se a prece adita

Que entre rogos e comparações

Lhe disse que eras a mais bonita


E nos serões de Inverno, só,

Lembro sempre minha fraqueza

Escrevo cartas que não envio

E, num relance, parto a braguesa


Mas eis que bebo do cálice

Dois golos de Porto branco

E logo se me ergue num ápice

A graça de ser franco


Judite, meretrizes já muitas o diabo viu

Mas nenhuma como tu e a puta que te pariu


Leonel Ferreira

Poesia III

SENHORA DA MEMÓRIA


Ajaezada e vencida

Depõe a alma pendões ao vento

Naquele alto morro toma acento

A rústica, alva e pobre ermida

Poisa a mão em ajuste divino

O remorso de antanho, doutro vento.

Ruge o mar seu lamento,

Na penha morre um trágico hino.

A última hora na munda serrania,

Lacera o espaço como o fogo aquece

O puro amor que sempre entontece,

Ante longes d’alma e fins d’agonia.

E os passos brandos d’ Agostinho da Cruz

Ecoam salmos de queixume e lembrança

Desse ermo bravio que exulta e amansa

O pungente martírio de Cristo Jesus.


Leonel Ferreira

Poesia IV

CONFISSÃO

Ontem debrucei-me
sobre o manto das árvores
para escutar as passadas incertas das folhas

e por entre a ramagem do fim do dia
em silêncio
meu coração murmurava palavras desconexas

num impulso começou a contar os instantes do mundo
como um louco vagabundo
dormitando na ausência da razão

rasgava o ar com ponta dos dedos
dizia voar no crepúsculo das nuvens
— rumo ao infinito

E de repente

tombou imóvel
Sob os contornos invisíveis daquele demónio
Que apenas posso soletrar
A—M—O—R.


Reis Neutel

Reflexões

“A esperança é um afecto que vive suspirando sempre por ver, vive de não ver e morre com a vida.”

(Padre António Vieira)