terça-feira, novembro 07, 2006

Número Um

Editorial

Sombras etéreas materializam-se

-1-

Novembro é o mês dos dois “1”, ou duplos “1”: é o 11º mês do ano, pelo que é o primeiro da primeira dezena – daqui o duplo “1”, ou o duplo início. É também o mês que começa com o dia 1 (sim, é verdade que esta não é característica exclusiva de Novembro, pois que todos os meses começam com o seu próprio dia 1), que para quem vive no Portugal dos nossos dias é sinónimo de “dois em um”, sendo que o primeiro desses dois “uns” é o feriado que o Estado concede ao Povo por nele se assinalar, no calendário Litúrgico, o Dia de Todos os Santos; o segundo “um” é a vantajosa coincidência do feriado estar tão pertinho do dia dos Fiéis Defuntos, que se assinala no dia anterior, 31 de Outubro, mas cujas implicações rituais e religiosas se transportam sabiamente para 1 de Novembro porque, assim, nem se falta ao trabalho para ir pôr grinaldas e velas no cemitério, nem se falta ao cemitério para não ir pôr grinaldas nem velas no local de trabalho, ergo, “dois em um”. Neste caso concreto temos ainda a observar a curiosa relação entre o dia oficial destinado aos Defuntos no calendário (31 de Outubro) e o transporte do mesmo para 1 de Novembro, que se poderia traduzir – caso eu percebesse alguma coisa de Psicologia das massas – numa tentativa de sublinhar que se acredita, ou se quer acreditar, que a passagem dos entes queridos para a exclusividade do plano metafísico não é um fim de ciclo (simbolizado pelo dia 31 – fim de mês) mas sim um princípio de ciclo (simbolizado pelo dia 1).

Outro duplo início que este mês assinala é o da Orgânica, que nele vê surgir o Número Um, ícone indomado dum grito de recém-nascido a assinalar as suas primeiras pegadas de gigante em solas de pequenino rizoma a brotar da terra da imaginação. Mas este Número Um é o re-nascer e não o nascer da Orgânica, cuja essência foi já bafejada pela luz da existência nas asas do Número Zero de Outubro. Assim, este debutar primevo é nada mais que o desabrochar de uma flor que já se desfolhou arautamente.

Qual jogo de futebol que recomeça com o apito inaugural de uma segunda e virginal parte, qual primeiro capítulo de um romance novo que se segue ao genésico prefácio, qual borboleta que se desprende nascidamente do casulo onde encetou o seu segundo conceber-se, eis que também nós, arautos das Letras que queremos renascidas, damos início ao nosso segundo alvorecer – o Número Um.
Que comecem os espasmos de não-passividade militante!
E, já agora, conduza com cuidado.

-2-
No mês em cujo fim se assinala o 71º aniversário do desaparecimento de Fernando Pessoa, um dos Maiores das Letras Portuguesas de Sempre (e Para Sempre), não estranhem reconhecer em alguns trechos poéticos – e não só – a óbvia homenagem que alguns dos membros deste Projecto decidiram dedicar-lhe, abraçando de coração desnudo o que nem sempre só no Coração mora. Assim, pelo que acima vai sendo dito se poderá aferir da eventual sinopse de pessimismo latente em alguns trechos ou mesmo em alguns textos. Mas não se deixem enganar! Nenhum dos participantes neste Projecto considera a existência como um fardo insuportável que urge dar por terminado. Antes todos eles são imbuídos de uma sinceridade ulterior que lhes permite filtrar toda a essência das emoções tidas e quase-tidas para delas retirar o sumo do que se quer que sejam os néctares dos deuses da inspiração e da transpiração: os textos que ora aqui trazemos. O “pessimismo” não é um fim per se, nem pode sê-lo. O “pessimismo” é a condição necessária para a constatação da chuva que nos molha e nos incomoda, de modo que possamos sentir o seu desconforto “pessimisticamente” e sintamos imperioso acelerar o passo e partir para a acção de sair do desconforto da roupa molhada que nos provocou o pessimístico incómodo de querer ir para casa trocar de roupa. Quando trocamos de roupa sentimos imediatamente um conforto especial que advém do facto de termos tido roupa incomodamente molhada que agora está muito mais comodamente seca; assim sentimos um conforto que não sentiríamos na vulgaridade dos dias em que nos limitaríamos a vestir uma qualquer roupa seca – porque toda ela estaria seca – e não daríamos qualquer tipo de valor ao conforto da roupa banalmente seca, pelo que se conclui que o “pessimismo” é condição superior para a partir dele se descobrir os confortos que advêm do reagir contra a banalidade do vulgar. O “pessimismo” é um catalisador de reação, é o bilhete para uma viagem num veículo de fazer qualquer coisa melhoradora do estado das coisas; é um meio, portanto, jamais um fim.

Editor Um - João Tavares

Prosa – O Voo de Ganimedes

Acredito. Enfim acredito. Agora não há volta a dar. É um baque de sons mortificando-me o entendimento que julgava ter das coisas. Aguento-me como posso. De resto, que fazer senão aguentar, senão quedar-me sob a necessidade de eu ser um suporte que sustenta um algo que não pode senão ser o suportado? Deixo-me de filosofias. Deixo-me - sobre todas as coisas deixo-me - de sistemas. Prefiro o paladar amargo do café a misturar-se com a leve impressão de um fumo que voluteia perdidamente.
Tenho chegado às conclusões mais edificantes nos lugares mais inusitados. Sob incensos de cachimbo tenho cogitado na esterilidade de certos movimentos. Debruçado sobre bilhares tenho concluído ímpetos lógicos que me escapavam morosamente. Passando os olhos em panfletos que me ofertam no Metropolitano tenho decifrado enigmas que pressinto terem mais importância do que os arcanos a que os outros se devotam. E porque é que isto é assim?

Deus…
Deus assim o quis. Quis que o fumo do cachimbo espiralando no ar, a carambola sobre o tapete verde do bilhar, a multicolor mensagem dos panfletos publicitários – quis Deus que tudo isto fosse, afinal, a colisão fatal do mundo sobre os sentidos que a vida me vem autentificando. Como uma certidão que me carimbassem pela vida fora. O som do selo ferindo a folha corroída pelo trânsito das coisas. É, enfim, um estado a que não sei emprestar denominação senão a imagem pobre de um documento que os outros certificam e que me protege pela vida inteira.

Em criança, nem o sussurro do seu nome me perturbou o sossego da vida. Só uma fotografia de um senhor com a mão direita pousada sobre o automóvel e a mão esquerda a esticar o suspensório. Velhas sombras que eu reservava para as minhas meditações nocturnas, sob o marulhar dos ramos das árvores e o vergastar do vento pelos abandonos do jardim. Confundo sempre o cair de uma jarra com a recordação opaca do automóvel na fotografia. Os recantos floridos; os repuxos de água arqueando sobre estátuas de anjos, caindo por tabuleiros folheados em meia-cana; as louças encimadas por nimbos d’aurora; as pedras talhadas em folhas de árvore outonal, esparsas pelo chão como que petrificadas por espectros; uma azinhaga ladeada de pequenos muros de adobo com floreiras a atapetar-lhes o cimo; vértices de paisagem, aljôfares multicolores, espelhos de água derramando pelas escadas de pedra. Sonhos que hoje conheço e que ontem senti.

*

Sem hesitar - um quarto engolido por um edifício. Geme a cada passo que ouve, estreitado pela respiração ofegante que imagino turvar-se entre o lustre do sapato e o nó da gravata. E é como se eu o conhecesse – a ele, o mais velho dos mais velhos de meu sangue - como se lhe soubesse a singularidade. E conhecendo-o, é também o quarto que se desdobra de si para um mim, um si-mim de si, não me tendo sido dado separar a experiência material das coisas da experiência impalpável do abstracto.
Entro. Aquele jornal pousado sobre a geleira fere-me a percepção sensível das coisas. Desço a Rua Direita e sinto-a jornal húmido entranhando-se nas paredes do quarto. Entro, recordo a tabacaria e um rosto turvo na primeira página entre letras garrafais. A geleira demanda uma revisão, a julgar pelo zumbido que acredito ouvir e que se infunde, através do jornal, na ladeira lúbrica da Rua Direita.

Enquanto passava no corredor, o sobretudo gotejava sobre o chão tabuado. E não havia luz artificial senão a de uma antiquada televisão distraindo o recepcionista. A música do concurso ecoava pelas paredes, vibrando no sorriso do telespectador, resvalando por entre as gotículas e fissuras do soalho e colidindo, enfim, no alheamento da minha meditação.

«Se Deus quiser, ainda aqui viverei muitos anos»
O zumbido da geleira infunde-se no da telefonia.
«Só é pena não ter uma televisão»
A cortina rendada divide a ténue luz de finais de Setembro concentricamente. Minúsculos lampejos de névoa atravessam o quarto em linhas diagonais que se eclipsam por detrás de cada mobília de castanho velho. E o cheiro… Tudo cheira a velho, menos ele que o é de um modo vital.

Primeiro ouvi o esbofetear de chinelos duma enfermeira brincando com uma algália. Depois senti um olhar de reprovação esgueirando-se entre os sinais da minha passagem pelo soalho antes enxuto.
«Chove que se farta» não tirava os olhos da televisão.
«Pois é» dava pancadinhas na algália
«Boa tarde» retesava os músculos das pernas na esperança fantasiosa de poder estancar o gotejar do sobretudo.
«Já sabe o caminho» apontava a esferográfica para o fundo do corredor.

A televisão que ele não tem projecta uma meia-luz por entre o bafo cálido do edifício. Perco-me entre a peugada embaciada dos vidros da janela e o espaço prateado que a não-televisão não gera senão no meu entendimento das coisas já toldado pela teimosia do sobretudo.
Depois sou levado dali para fora, para o mesmo lugar que é «um» mesmo lugar. Olho-me chegando ao edifício com uma mochila às costas. Um recanto onde troco de roupa. Mais enxuto do que um cadáver, mais áspero do que o roçar da língua no jornal. Rio-me – ainda que não tenha a coragem de o fazer – da algália tão-como-o-corpo-do-homem. Ensopada por dentro, enxugada por fora.
«E uma lareira, claro. Mas isso já era pedir demais. Eu quero a minha medida. Apenas e só a minha medida»
Lá fora - o emurchecer das flores no corredor, nutridas pela torrente policroma do concurso – ouve-se o vaguear nervoso da enfermeira.
«Acertou!» aplausos fervorosos por cima da música metaliforme…

Estou diante da lápide porque estou no quarto dele. E porque é que isto é assim?

Deus…
Deus assim o quis. Quis que eu sentisse o respirar orvalhado dos edifícios da Rua Direita. Quis o sentido, imperiosamente meu, fixado na tabacaria. Quis o meu rosto enrubescido sob a crueldade do sobretudo. Quis, por fim, que eu aqui estivesse, debruçado sobre a pedra marmórea, afagando os seus cabelos por cima do vidro turvo da fotografia.

«Farto. Farto é o que eu estou. Só as coxas da enfermeira Graça me sustentam. Branquinhas…»
O edifício não é outro senão este em que evoco os adultos carregando o andor de Nossa Senhora da Apresentação nas tardes de calor; o suor em holocausto pela luz imanada da auréola da Senhora; as coroas adornadas por flores encarnadas que se enfaixavam nos dedos dos serviçais; os miúdos adereçados com as vestimentas dos soldados do Império Romano, reflectindo a luz do Sol nas suas armaduras até aos vitrais dum velho armazém de matraquilhos, fingindo chicotear Jesus; o Tiago com a barba postiça na cara e a longa cabeleira castanha coroada de espinhos que não crivavam, os seus olhos azuis como o Cristo dos filmes de Hollywood e a catequista a seu lado adequando-lhe a cruz ao cachaço, adequando os gestos da Imolação – não faças isto, faz aquilo, olha aquele, olha aqueloutro, tropeça agora, tem-te não cais – e os carros buzinando ao longe, não na noite, não na reminiscência da Nossa Senhora da Apresentação mas onde estive e onde estou criando gente que me escapa desapiedadamente.

«Vê lá, deu-me uma fotografia com, pelo menos, sessenta anos. Ora, pergunto-me se sessenta anos são uma actualidade. Não. Não, meu caro. Nem actualidade nem possibilidade. Sessenta anos são uma pouca de merda. Está na segunda gaveta»
O bater da porta ouve-se por dentro e atroa por fora. Como o repousar do último cigarro que fumei antes de partir. Um fumo que enlaçou a página do jornal e perturbou a carambola impensada no bilhar.
«O que me deixa doente não é o rosto real» retorce as rugas da testa e refunde os seus olhos pelos meus «O que me deixa doente é o rosto da fotografia»
A gaveta abre-se em timbrado e vibrante arrastamento. Placas tectónicas de mim em fricções doutro.
A mão dele, ainda suspensa, impele o ar quente da geleira contra a fotografia. As rugas da sua mão misturam-se com as rugas brancas do ar num movimento único entre o efectivo e o possível.
A fotografia do jornal assoma no entorpecimento de não estar ali. A mão de Deus asfixia-me as sensações.
«Eu, à minha, às vezes, também lhe passava as mãos pelas ventas. E outras coisas… E outras coisas…»
A telefonia – «a minha opinião é a seguinte»
A televisão no corredor – «são mais de duzentos e setenta e cinco…»
A enfermeira - «Posso entrar?»
Ele - «já entrou»
Eu –

Adiado de mim para mim e de mim para o mim da fotografia, que sou eu, por certo, a dizer-me meiguices e a dizer-me que me hei-de curvar perante a frieza do mármore e sem ilusões que não as do silêncio do campo-santo, sem saber que a morte é um estado outro que, de alguma forma, de alguma maneira que desconheço, se há-de sentir fisicamente por ser outra circunstância que não a actual e por ser o possível…
Eu –
Subjugado à beleza das coisas. Juro sentir o ranho dele meter-se por dentro da manga da enfermeira.
A fotografia na minha mão. Sou transportado pelo Universo, numa viagem cósmica entre fragmentos de mortos – na Rua Direita, no Edifício, no Corredor, no Quarto...
«Ao que um homem chega…»
A voz da enfermeira expelida da grelha da geleira
«É-se bem criança duas vezes»
«Bonita» digo eu que não o digo por dizer. Digo o ser do ser-bonito sem poder dizer coisa alguma que não o ser das coisas que não são.
«Avozinho, o seu neto gostou da nova avozinha» trolaró que rico dó.
«Avozinha os tomates. Que fique com ela se a quer»
Eu – Quero
Sim, quero. Eu, o querente – ente crendo querer a beleza das coisas sem idade.

Há silêncio – ou também, e reforço este «também», há silêncio nas coisas – porque as coisas invocam ausência de coisas ou de outras coisas. Se eu me repito é porque rogo a um qualquer Além para que eu, ente categorial, esteja entre o que sou e o que nunca fui. O que nunca fui é também o que sou, não sendo justamente um não-ser mas um não-eu. Não mais os gestos que esbocei e os objectos que vi. Como um dia a mais que nos foi morto.
Há uma só distância no passear por uma rua da cidade e pelo corredor do edifício – é a chuva que não cai no corredor senão do meu sobretudo. O incompreensível destino que as coisas, para além de nós, vivem, tornadas coisas para que as amemos, tornadas coisas para que as destruamos.

Se eu me debruço sobre a lápide, não é para ler o seu nome por cima da data….
Dia timbrado pelo som-de-agulha do telefone. Um respirar sofrido, ainda que não magoado, a esquartejar palavras.
«Faleceu»
O telefone teria tocado quantas vezes? Sim, quantas vezes, pergunto-me.
«Esta manhã»
Duas, três – muito provavelmente quatro vezes.
«Isto calha a todos»
Pois sim – como os carrosséis sempre param. E ainda bem.
Se aquela voz se ouvia no telefone, não podia ser ela mas ele. Ele, contudo, já lá estava havia dois meses. A sua fotografia de defunto na mesa do café, entre um cinzeiro e um jornal desportivo cuja capa era um vivo festejando o «hat-trick».
«Lembra-se de estar com a fotografia dela na mão que mais parecia o hipnotizado a olhar para o pêndulo?»
Como não se ainda hoje tremo quando ouço o telefone…
«Ela não tem mais ninguém. Pensei, talvez mal, eu sei lá…»

Já não ouço o resfolegar da geleira. Já não sinto o cheiro asfixiante da humidade do jornal nem concebo já a ideia de o roçar na língua. Da enfermeira apenas o som do telefone a tocar três, quatro, cinco, seis vezes, metendo a algália por debaixo dos lençóis.
«Tenho ou não razão?»
E tê-la-ia não fosse a fotografia vibrando na minha mão, que a sinto em golfadas de desespero a percorrerem-me as artérias.
«Mas isso foi há sessenta anos ou mais. O pior… ou mais»
Olhar para as coisas que não tivemos como para os lugares que não têm coisas que poderiam ter tido se uma outra história que poderia ter sido o tivesse sido de um modo outro que não hipotético ou possível mas efectivo e actual sem contradição entre este objecto e este não-objecto porque dubiamente serpenteante e paradoxal.
Ouço o rastejar de chinelos – tenho a sensação de o ouvir ainda que o não possa confirmar. Sou eu quem o diz, quem o faz, quem mantém a impressão de afectos antigos. O choro de uma privação, de uma saudade, de um deus-a-voltar. E se eu tiver um dia a certeza de mim como das incertezas que pressinto de coisas outras?

Se me curvo sobre a lápide é porque consinto a imaterial possibilidade das coisas como fundamentação da material impossibilidade do que sou.

«Vai para o corredor, por favor. Não consigo fazer nada na presença de homens»
A gaveta fecha-se. No seu atrito áspero correm os rostos da minha vida – passados, esquecidos.
Nem vejo, já, a mão na maçaneta e o seu girar-que-eu-sei-ser-girar porque sei ter transposto a porta do quarto.
Sou a música do concurso escorrendo pelas paredes, tocada por trombones que não vejo. Aplausos, risadas, «jingle» deslizando por entre as fissuras do soalho.
«Ele há gente com sorte»
«Uns penam, outros gozam»
«E outros, ainda os há, que consolam»
Sinto-me capaz de sapatear.
«Ó homem, você é estúpido?»
Mas não – falta-me a presença, ainda que desconexa, do irreal.
«Está naquilo da algália, não é? Sabe… eu nem sequer à frente da minha esposa sou capaz de o fazer. Aquilo emperra que é um diabo. Já experimentou?»

Os círios brilham nos meus olhos ainda que eu os não veja. Retratos de mortos que o não foram. Esta fotografia por cima do epitáfio derrama vida-morte. Apenas um lugar e a fotografia converte-se numa outra imagem, ganha uma outra alma. Centenas de vidas mortas numa fotografia que mudou de lugar, subjugadas à opressão do espaço.
E as datas sobre o mármore são bafos de velhas de xaile preto que acabaram de acordar dum longo sono, de rosário apertado entre os dedos.
«Podes voltar» ouve-se asfixiantemente.
A gaveta fechada. A segunda gaveta fechada. A segunda gaveta abre-se sem áspero som.
«Porque eu não gosto de velhas. Lembro-me de, em criança, olhar para aquelas manchas que algumas delas têm no rosto e lembrar-me das manchas castanhas das bananas demasiado maduras e não gostar dessas bananas precisamente por me fazerem lembrar as manchas da cara das velhas»
A não-televisão abre-se numa luz ténue e empoeirada. A não-lareira crepita surdas faúlhas. O não-abrir-se da gaveta mutila-me o entendimento das coisas. A não-coragem de partir arrasta-me pelos alicerces do edifício.
«A enfermeira Graça ainda as não tem. Mas há-te tê-las, feliz de mim que aqui não estarei para o testemunhar»

Não-eu-nem-outro e as lágrimas quase estalando ao cair sobre o féretro. Um rosto de manchas castanhas iguais às manchas das bananas maduras:
- Peço desculpa se estou a incomodá-lo, mas não o conheço. É da família da dona…
- Não.
- Sim senhores… É conhecido então…
- Também não.
«Sabes o que é uma velha quando tens setenta e dois anos? É uma velha quando tens vinte»
- Então?
- Então…
- Então… desculpe a impertinência mas…
E é como se eu, ajoelhado sobre a campa, me estivesse a ver ligar o interruptor da televisão. O «jingle» do concurso enfaixa-se no rendado do féretro e em rodopios de fúria por entre o rosário da velha – fala por mim. Um rastro de um qualquer eu dum outro espaço-tempo, fixação outra d’estoutro Universo. A gravata roça no féretro em clarões de não-círios, no mármore da campa em clarões de não-televisão. De novo a criança brincando com o som dos seixos embatendo nos azulejos do jardim – a criança que poderia ter sido. Criança. O embate da bola seis na bola dois e da bola dois na bola quatro. Fiquemos por aqui - é já muito.

Leonel Ferreira

Prosa - Sancho

“O Povo Completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos.
Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades”

Almada-Negreiros

Era a hora depois do jantar. O pai, D. Afonso, sentou-se confortavelmente na sala, como fazia sempre, depois dum estafante dia de trabalho. Virando-se para o seu primogénito, Sancho, de oito anos, perguntou-lhe que tal lhe tinha corrido o seu dia de brincadeiras. O pequeno, que estava de férias, respondeu que lhe tinha dado vontade de ir passear pelos campos depois do almoço. Contou ao pai como foi percorrendo os outeiros na direcção do rio que passava lá em baixo, depois do lugar dos caseiros. Quando chegou ao pé do rio deparou-se com uma rapariguinha que chorava. Ao vê-la assim, Sancho perguntou-lhe qual o motivo para o seu triste estado. A rapariga disse a Sancho que tinha acabado de perder a sua cestinha de vime, que muito estimava porque era o orgulho da família desde o tempo de sua avó.
“Mas onde a perdeste?” – indagou Sancho.
“Aqui mesmo, ao pé do rio!” – soluçou a rapariguinha – “Só me sentei um tempinho para retomar o fôlego a caminho da feira... pousei-a ao pé de mim... oh, que tristeza!... quando abri os olhos... como sou desgraçada!... abri os olhos e... que é da minha rica cestinha?... ooh... deve ter caído ao rio! Pobre de mim!...” – e assim continuou a lamentar-se. Sancho perguntou-lhe se ela já tinha procurado a cestinha, se tinha a certeza que esta caíra ao rio. A rapariga respondeu entre soluços que nem valia a pena procurar, que só sabia que ela estava perdida e que a não veria nunca mais.
“Mas era assim tão valiosa, a cestinha?” – perguntou Sancho. A rapariga respondeu-lhe entre lágrimas e suspiros que pertencera à sua avó e que fora, havia uns quarenta anos, tida como a mais bela cestinha em toda a feira da vila, lá por uma quarta-feira de cinzas. Sancho ainda tentou dizer-lhe que não podia estar totalmente perdida, que a ajudaria a procurar aquela relíquia do passado, mas a rapariguinha apenas chorava a para ela já irremediável perda, insistindo na total e absoluta inutilidade de qualquer esforço de recuperação daquele tesouro do passado.
“E se fosses comprar uma cesta nova, em vez de ficares aí a chorar pela velha?”
Mas a jovem já nem sequer ouvia Sancho. Limitava-se a chorar o seu triste fado, o de lamentar amargamente, lavada em lágrimas, a perda da sua cestinha.
Perante o insucesso dos seus esforços por chamar a jovem à razão – ainda que fosse a razão de uma criança – Sancho decidiu continuar o seu caminho. Mais adiante deparou-se com um homem que estava metido dentro dum buraco até ao pescoço.
“O senhor está bem?” – perguntou Sancho.
“Estou, rapaz, só um bocadinho apertado.”
Ao ver a cara de espanto do menino, o homem decidiu explicar-lhe qual a razão pela qual se encontrava ali:
“Sabes, é que ontem à noite lembrei-me que queria ir à vila comprar meia dúzia de gambozinos, que ouvi dizer que eram muito bons para ter em casa. Mas eu queria era lá chegar antes que os comprassem todos. Assim, antes do sol raiar, fiz-me ao caminho. Mas como ia com pressa de chegar antes dos outros, nem se me ocorreu trazer lanterna, pois cuidei que sabia bem o caminho. Por infortúnio, quis Deus que me aparecesse este buraco pela frente, onde estou metido até ao pescoço.”
“Quer que eu vá buscar ajuda? É que eu sozinho não consigo puxá-lo.”
“Não, não, deixa estar. Esta já é a terceira vez que eu fico preso neste buraco este mês. De todas as vezes fui sempre capaz de me desenrascar sem ajuda de ninguém. Se fosses chamar alguém, com certeza eu já me teria posto a andar daqui para fora quando cá chegassem.”
Perante tão convincentes argumentos, mais não restou a Sancho senão retomar o seu caminho. Daí a pouco, enquanto ainda pensava lá com os seus botões no caricato da situação anterior, encontrou um homem recostado numa árvore. Pelo aspecto dir-se-ia que estava a dormir. Mas não estava. E dirigiu-se a Sancho:
“Eh lá, moço, onde vais com tanta pressa?”
“Pressa? Mas eu não tenho pressa. Estou só a passear pelos campos.”
“Pois a mim parece-me que vais mas é com pressa.”
Sancho reparou que o homem estava muito bem vestido.
“Estás a olhar para a minha roupa, não é? É que hoje é o dia do meu casamento.”
Sancho olhou para ele, admirado.
“E então o senhor não vai para a igreja?”
“Não, ainda não. Tenho muito tempo. Agora estou aqui a descansar um bocadinho. Depois, lá mais para a tardinha sou capaz de ir andando para a igreja.”
Sancho ficou estupefacto.
“Então e a sua noiva?”
“Ah moço, não te preocupes, que ela espera. Até porque eu sou o único homem lá da aldeia em idade de casar, por isso ela tem mesmo de esperar por mim, e é se não quiser ficar solteira! E acredita que ela não vai querer ficar solteira, tendo como noivo um rapagão como eu! Vá, agora vai lá dar o teu passeio e deixa-me fazer uma soneca, que eu hoje estafei-me a dormir toda a manhã.”
Tendo retomado o seu caminho, e ainda mal recomposto de mais este estranho encontro, Sancho viu uma mulher com uma escada a tentar descer um monte para ir apanhar uns morangos que estavam ao fundo dum outeirinho. O problema é que a escada era curta e não chegava até lá baixo, onde estavam os morangos.
“Ó, ó pequeno, dá-me aqui uma mãozinha e segura-me na escada pelas pontas, para eu ir lá baixo apanhar aqueles moranguinhos tão lindos. Quero fazer uma sobremesa ao meu Joaquim!”
Sancho observou que a escada era curta demais para assentar firmemente no fundo do outeiro.
“Olhe que a escada não se segura cá em cima!” – disse Sancho.
“Claro que segura, rapaz, só tens de agarrar aqui nas pontas e esticar-te, enquanto eu chego lá baixo.”
“Mas eu não posso com o seu peso e...”
“Podes sim Senhor, rapazinho, só tens é de segurar a escada para eu não cair.”
Sancho via o absurdo da situação: eles estavam ambos no topo dum pequeno monte, os morangos num outeiro bem mais fundo do que a escada; e a senhora queria que ele segurasse a ponta da escada para ela descer?!
“A senhora desculpe, mas não posso ajudá-la. Acho que era melhor pensar numa maneira melhor de ir lá baixo buscar os morangos.”
Dizendo isto, Sancho foi-se embora. A senhora ficou ainda a dizer que esta juventude estava perdida, que já não se podia contar com ninguém, que a melhor maneira de ir buscar aqueles morangos era, sem dúvida, com uma escada...
“E depois, como já estava cansado, vim para casa!”
“Muito bem, que dia tão atarefado que tu tiveste!” – disse o pai, D. Afonso, Rei de Portugal.
“Sabes, Papá, eu gostava de poder ter podido ajudar aquelas pessoas que vi esta tarde.”
“Olha, meu filho, é o teu bom mas ingénuo coração que te faz pensar assim. Bom era que essas pessoas quisessem ajudar-se a si mesmas! Sabes, todos os dias parto para a batalha contra os Sarracenos, e sei que os Portugueses que combatem a meu lado são capazes dos mais grandiosos feitos. Todos os Portugueses sem excepção são mais do que capazes de levar a cabo grandes obras, até mesmo nos mais pequeninos pormenores do seu dia-a-dia. Basta que queiram!”

João Tavares

Prosa - Amanhã, Talvez Depois...

- Você está com uma pança hoje! Vai nascer o menino? – a pergunta acompanhada de uma luminosa dentadura excessivamente à vista mais não lhe pode irritar. “Fizesse ele ideia do porquê desta coisa que parece prestes a rebentar…”. Não houve resposta, nem amostra de sorriso, há uns anos atrás era homem para deitar lume pelas ventas. Hoje não.

Sei que tenho de estar aqui, mas sinto tanta falta de não estar, de abrir os olhos e gostar de o fazer, não de desejar não os ter. Tenho medo, está tudo tão vazio à minha volta. O meu olhar está suspenso no que não vejo. Vogam nadas por entre outros nadas, nadas que ferem por nada dizerem. Cravam com pungência, eles próprios, as unhas no meu corpo. Sinto-as sofrer, a elas, aos nadas. Não na pele, mas é só aí que as queria sentir. Só.

- Não sei se está a ver…? Ó Sr. Manuel, por amor de Deus, palavra de honra! Veja lá isso, a sério. Sabe que eu… Ali!... ah?! Ali!... Respeitabilidade, ah!? Honorabilidade, ah?! Hombridade! Está a compreender? Sou um homem cheio de hombridade! O indivíduo chega lá e tal, o esquema montado, ó pá… bola ao poste, deu o jogo ao inimigo... – o ritmo tão avassalador quanto incompreensível do Sr. Sinval deixa Manuel ligeiramente extenuado. “Isto é muita consumição!”, lamenta interiormente em tom de desespero.

O mar, absorto, compenetrado numa bela e assustadora agitação, sempre foi companhia, para o bem e para o mal. Companheiro e depósito de coisas tantas que meu Deus! Um grande e único corpo físico renovador de corpos e espíritos! - Se não foras tu, coisa imensa que enoja como tudo o que é imenso, se não foras tu… - O diálogo flui multiplicando-se em jogos de linguagem vários, únicos, originais, mas nunca fracassados. O mar emana palavras que só Manuel compreende. Manuel, mãos em direcção ao céu, esbraceja ridiculamente, ridiculamente para todos menos para o mar. Só ele sabe o que lhe é dito. Dia após dia, após noite. O mar come tudo o que lhe roubam, nesse desespero come tudo o que lhe oferecem. Não sabe, não sente, não muda, muda tudo, mas fica o mesmo.

- Ai, Sr. Manuel, eu dava-lhe tudo… se você me ajudasse, eu nem sei! Eu dava-lhe tudo! Tudo! – O ar militar da dona Osminda evaporou, o cabelo à recruta deu lugar a uma mulher indefesa e suplicante. Lindo! Extremamente comovente. Santos nem deitado se segura, de tanto rir. Mascara-se com um “tenha calma, dona… dona… Osminda, isto é muito complicado, não posso fazer nada, mas você é rato e vai ver que ela vai mudar, ela gosta de si…” – Ai Sr. Manuel, Deus o ouça! – “Definitivamente, estou fodido!”

Não há muito de novo na vida de Manuel, os seus amigos de sempre nunca o abandonaram. Assim tem sido com o frio, a chuva, as dores, o sangue, o sono, a dúvida, a fome, o abuso, a admiração em pacotes colada à pena. Assim tem sido, sempre, desde que se lembra de si. A hora que tudo leva está a chegar, desta vez sim, porque a outra não chegou a ser. Nem a outra…
O mundo ali. Todo ali. Naquele agora, naquele desafio que lança a quem para ali o lançou. A religiosidade carrega-o, e ele a ela, o problema é que ele é leve, ela nem por isso. Isto dos destinos e da sua injustiça, nunca o incomodou, até incomodar. E ela com isso…

Os olhos cortados ao meio pelas pálpebras caídas denunciam a visão que tem. A realidade em dois, cortada e cortante por ser cor e negro e não apenas cor. Maldita a hora que te disse sim! Maldita a hora que mesmo se agora fosse jamais diria não!

- É, eu sei, gru gru, piu piu pardais ao ninho! Meu filho, o homem é tanto maior quanto a sua dimensão de religiosidade! Por falta dela é que se olha para uma pata partida de um jeco como aquilo que empenou a chapa do carro e não o contrário! Por falta de religiosidade gente como tu morre enquanto se dá de comer a um qualquer micro-robot de brincar!
- Tem razão, mas se formos entrar por aí, não saímos mais! As pessoas são tão vastas e complexas nas suas motivações, dentro de si mesmas, Sr. Santos… Há nexos estruturais entre os seus actos tão incompreensíveis quanto reais e isso…
- Meu rapaz! – interrompe Manuel - O que dizes, tecnicamente tem um nome: paleio para entreter! Cala-te e não me fodas a cabeça!

O mar acordou, espreguiça-se até às pontas dos dedos. Manuel, petrificado, agita-se insuportavelmente. Quer sair dali, sente-se correr em círculos doentios. Não se mexe, não pode. Chegou ao momento em que nada sabe, em que tudo é dúbio. Está só. É livre. A hora era agora. Era, já foi. Amanhã, talvez depois…

André Faia

Conto - Quem Procurais?

— Pode recordar-me como passou aquela manhã, a manhã da… do seu desaparecimento?
— Pede-me recordações da manhã da minha morte, Dr.
Prostrado numa marquesa, de olhar fixo entre o pestanejar de uma luz estroboscópica e um psiquiatra que lhe sorri, enquanto gentilmente lhe coloca a tal pergunta: o que tinha feito na manhã em que um estranho incidente aconteceu a bordo de um Albatroz, aquando este flutuava na cintura dos planetas gémeos?
— Doutor Fonz, já permaneci aqui tempo suficiente, não acha? Já respondi a essa questão mil e uma vezes, pode comprovar que a resposta foi sempre a mesma, suponho que as gravações, todos os registos estejam ao seu dispor, certo?
— Certo. Mas quero ouvi-lo pessoalmente. Só quero ajudá-lo, compreenda o meu…
— Vá para o diabo. Estou há vinte semanas encerrado e não tive direito a um único pedido. Vinte semanas! Foram mais de trinta anos que estive congelado. O que está a acontecer lá fora? Quero viver, diabos. Já me fizeram todos os testes que quiseram. Creio que todos sabem quem sou eu, excepto… eu.
— Tenha calma, eu sei o que deve sentir. Mas você é um caso único — disse o Dr. tentando amenizar a cólera do outro.
— Caso único!? Não era eu, não era eu, mas lá estava. Era evidente. No momento errado, no sítio certo, não? Faça um favor a si mesmo, Dr., pegue nas suas coisas e ponha-se lá fora.
— Não complique a sua situação. Quero mesmo ajudá-lo. Creio que sei como fazê-lo. Colabore comigo e vai ver que num instante…
— Por que o mandaram a si, Doutor Fonz? A sessão de ontem não foi suficientemente reveladora? O que aconteceu à Doutora Sheila? Ah, espere, vai ensinar-me uma nova habilidade, para depois me entregarem a um circo. Já consigo imaginar… um belo circo de atracções, desses que viajam pela Terra, pela Lua, por Marte e por Europa. Estou esgotado, onde está o meu almoço? Raios, onde está o meu almoço?
Nesse instante, a porta abre-se e um pequeno robot metálico flutua na sua direcção. Uma pequena comporta abre-se do seu peito e dentro dele sai um tabuleiro com uma refeição.
— Tem um aspecto delicioso, certo Dr.?
O robô desliza silenciosamente e retira-se. A porta da cela fecha-se. Vários feixes de laser bloqueiam a porta. O rosto do prisioneiro torna-se sombrio. O recluso deveria ter perto de trinta anos. O que mais impressionava o Dr. era o seu olhar magnético. Parecia que estavam em constante pesquisa. Entravam na alma, descortinavam a cor dos sonhos e o temperamento das vontades. Nem enquanto comia ferozmente, parava de observar os gestos precisos do Dr. Estudava-lhe a forma, o sorriso, o teor das palavras, atentamente. Era difícil dizer com certeza se os seus olhos eram cinzentos ou azuis. Sorria, de quando em vez, em menosprezo pela conversa do outro. Mas não era isso que lhe tirava o apetite.
Dr. Fonz respirou fundo. Estaria a ordenar os seus pensamentos, para formular uma nova questão, que não demorou muito a surgir.
— Sargento, lembra-se de ter conhecido uma auxiliar de hotelaria na Estação Centauros? Tente lembrar-se, por favor!
— Lamento Fonz, está na minha hora do almoço, a hora da visita terminou. Passe por esta cela daqui a vinte ou trinta anos, talvez já tenha aprendido algum truque novo. Ou melhor, talvez tenha uma habilidade nova para me ensinar.
— Pensava que desejava sair ardentemente da cela. Ah… antes que me vá embora deixo-lhe esta fotografia da Helena.
Erguendo-se e desviando a poltrona, introduz a mão no casaco e retira uma pequena fotografia. Agilmente coloca-a em cima da cómoda em frente à marquesa do paciente.
— Bom apetite — os feixes laser desligam-se — com certeza voltar-nos-emos a encontrar muito em breve.
Retira-se imediatamente. O outro fita-o com surpresa. Depois do Dr. Fonz sair, pega na foto. O seu rosto emudeceu. Levou as mãos à cabeça e exclamou:
— Oh meu Deus, é ela!

* * *

— Dr. Fonz aqui tem o arquivo completo do paciente.
— Muito obrigado, Carolina.
— Precisa de mais alguma coisa, Dr.?
— Não, é tudo por agora. Carolina, só mais uma coisa… não quero ser interrompido por ninguém, Preciso de concentrar-me neste dossiê.
— Com certeza, Dr. Fonz. Não permitirei que ninguém o perturbe.
— Obrigado.
— Com licença.
O Dr. Fonz permaneceu pensativo durante um largo período no seu gabinete. Alguns diplomas, retratos e uns quantos quadros emolduravam as paredes. Num deles, que sobressaia por apreciáveis dimensões chamado “As metamorfoses do sonho”, observava-se um homem atravessando um labirinto em chamas, do qual dezenas de pessoas e de todo o tipo de objectos pareciam ser engolidos por um insaciável vórtice, que resultava ser o seu próprio sonho. Por cima do homem pairava uma enorme ave pré–histórica vermelha e laranja, parecendo indicar o caminho. O homem vai-se diluindo na tela, enquanto o seu rosto denota confusão e perplexidade.
Fonz sentou-se finalmente na sua poltrona creme de pele macia. Pensava em como poderia ajudar o recluso. Com certeza devia estudar melhor o dossiê. Há sempre algo que escapa. Um pormenor interessante aqui, uma nova pista ali. Naquela tarde debruçou-se sobre o processo completo. O nome do processo: “O Fantasma da Estação Centauros”.
Começou por estudar os registos da conversação rádio entre dois pilotos: os Sargentos Thomas Jensen e Sinder Val. Ambos pertenciam à Companhia Aero-Espacial Centauros. Esta recrutou militares de científicos de todos os continentes terrestres. A nova missão tinha como objectivo analisar as condições para criar colónias em dois planetas gémeos, Gemini I e Gemini II, localizados a vinte e cinco anos-luz da Terra. Possuíam potencialidades apreciáveis. Mas era necessário fazer estudos minuciosos da área envolvente antes de analisar profundamente o terreno. As pesquisas já se estendiam há mais de dois meses. Os dois pilotos estavam a fazer uma viagem de reconhecimento em redor dos planetas quando um estranho acontecimento ocorreu.

— … Ok, vou dar só mais uma olhadela.
— Calma, V2. Vai com calma.
— Parece-me que estás com medo, Thomas. Respira fundo. Está-se tão bem na imensidão do Cosmos. Sinto o seu berço, o silêncio…
— Oh, cala-te. Não dormi bem, tive um pesadelo e agora estás-me a chatear com as tuas tretas.
— Vamos lá, Thomas, não…
— Sim?
— Oh não, não vejo nada. Não… uma luz… Não aguento. Ajuda…
— Sinder, chega de brincadeiras. Sinder?… Que se passa, Sinder?
— Não consigo… não…
— Fala comigo, amigo. Sinder, amigo, escutas-me? Fala por Deus. Amigo?
………………………

— Oh o que está a acontecer. Oh não, desapareceu, a sua nave explodiu. Merda, o que está a acontecer? Estação - Centauros, aqui nave de reconhecimento V1, escuto?
— Daqui Estação Centauros. V1, perdemos o contacto radar com V2, o que se passa? Informe.
— Hmm. Comunico que acabamos de perder…merda, perdemos o V1, a nave explodiu… à… à minha frente.
— Como diz?
— Vaporizou-se, não sei dizer mais nada.
— V1, retire-se imediatamente. É uma ordem, retire-se imediatamente.
— Não. Não posso ele é meu amigo. Sinder, amigo ouves-me? Responde, vamos lá.
— Sargento Jansen está a entrar numa zona perigosa, retire-se. Não pode fazer mais nada pelo seu amigo. Escuto.
— Daqui V1, volto para casa.
…………………………

No relatório da Equipa de Busca lia-se que tinham sido encontrados fragmentos duma aeronave e de um fato espacial. A conclusão era óbvia. O Sargento Sinder Val tinha morrido no decurso de um estranho incidente, cuja origem era ainda desconhecida.
Vários especialistas comentavam a morte do Sargento. Uns argumentavam que poderia ter sido ocasionado por um destroço incandescente de um asteróide. Outros falavam na possibilidade de um fenómeno sideral poder estar por detrás do incidente, propiciando uma intensa luz, que o fez perder a consciência. Havia ainda aqueles que acreditavam que um clarão de energia pura pudesse ter interrompido a missão do Sargento Val. Mas outra dúvida entrava em campo. O Sargento Jansen negou sempre ter observado qualquer luz. O que teria acontecido realmente? Ninguém sabia.
As investigações continuaram. Todavia, novas perguntas e novas possibilidades foram sendo levantadas, devido a relatos de várias pessoas que asseguravam ter visto o Sargento Sinder Val vaguear pela Estação. Uma delas era o próprio Chefe da Missão, o Comandante Evgueny Hayduchov. Dr. Fonz leu o relato. Ficou estupefacto. A sua idoneidade era reconhecida por todos. Teria sobrevivido, realmente? Teriam sido afectados os membros da Estação Centauros por uma alucinação colectiva?
O seguinte relato pertencia a uma hospedeira da Estação, Helena Belver. Fonz sabia que Sinder a conhecia. No dia anterior à sua última viagem, Sinder tinha marcado um jantar com Helena para essa mesma noite. Havia cumplicidade entre os dois. Helena ficou afectada pela morte de Sinder. Mas ainda, ficou mais chocada quando cerca de três meses após o fatal dia encontrou o piloto sentado numa poltrona dos seus aposentos. Sinder vestia um manto púrpura comprido. Helena, apavorada, gritou. O outro, calmamente, sem tirar os olhos dela, perguntou-lhe:
— Por que demoraste tanto?
Helena fugiu rapidamente do quarto, aterrorizada, incapaz de encarar o “fantasma” do seu amante. Mais tarde voltou ao quarto na companhia do melhor amigo do Sargento Val, Thomas Jansen. Contudo, não havia rasto de Sinder, em parte alguma.
Outros testemunhos como este, de outras pessoas, seguiam-se. Mas apenas Helena tinha escutado a sua voz. A sua voz clara e forte. Helena viu-o mais duas ou três vezes.
Numa das ocasiões narra uma outra experiência sobrenatural.
“Quando me preparava para ir trabalhar, no elevador que me transportava, havia mais alguém. Mas era suposto estar sozinha. Alguém estava comigo, sentia a sua respiração. Soube imediatamente que era ele.”
Passados alguns meses outra nave de reconhecimento teve um acidente, que quase resultou na morte de um jovem piloto. A nave entrou em estado de mau funcionamento, misteriosamente, precisamente na zona onde o Sargento Val tinha desaparecido. Anteriormente duas naves guias, não tripuladas, tinham perdido a rota. Inclusivamente, uma delas explodiu. As pessoas começaram a entrar em histeria. Falava-se de uma anomalia sideral ou uma maldição que cobria aquela área. A missão estava seriamente comprometida. O Comandante Evgueny Hayduchov não queria colocar a vida de mais de trezentas pessoas em risco.
A situação complicou-se mais quando foi encontrada uma nave de reconhecimento da Companhia. O relato foi o seguinte:
— Estação Centauros, daqui fala o Capitão Koriamy da Equipa Copérnico… encontrámos uma nave e é das nossas, repito é das nossas.
— … Impossível, Copérnico. Não há nenhuma nave nossa em voo, à excepção da vossa… mas… Espere um momento. Estamos a receber no radar a posição de um novo objecto com as coordenadas… Corresponde às suas coordenadas, Copérnico?
— Tem que ser das nossas. É um Albatroz. Usa o mesmo código de identificação que nós usamos. Aguardo instruções.
— Tente entrar em contacto com a nave, mas mantenha-se cauteloso e pronto para sair daí a qualquer momento. Vamos enviar uma equipa de salvamento e outra de assalto.
— … Centauros? O Albatroz não responde. Todavia registo sinais vitais. Mas não muito fortes.
— Copérnico, prepare-se para sair do local. Pode ser perigoso.
— Centuros, não me parece que haja perigo. Peço permissão para fazer abordagem directa à nave.
— Permissão não con…
— Como diz, Centauros?

Nesse instante ouve-se através das escutas da Copérnico uma voz sussurrando, quase imperceptivelmente:
— “Quem procurais?”
Era uma voz humana, algo distorcida. Mas era humana.
— Devemos ter perdido comunicação com a Central. Rapazes, façamos a abordagem. Não receiem. Temos o dever de ajudar um dos nossos — dizia Koriamy.
— Daqui Centauros, saia da área. Repito, saia da área. Entraram em zona de perigo. Saiam da área, é uma ordem. Escuto… Daqui fala o Comandante Hayduchov, escuto…

— Centauros, … acreditar…
— Daqui Centauros, fala o Comandante Evgueny Hayduchov, o que aconteceu? Perdemos o contacto durante alguns minutos. Qual é a sua situação?
— Centauros, deparámo-nos com dois corpos dentro do Albatroz…
— Há sobreviventes? Escuto.
— Apenas um. Nem vão acreditar de quem se trata.
— Que raio se passa? De que está a falar Koriamy?
— O Tenente Sinder Val, julgado morto há seis meses, está afinal vivo. Repito, está vivo.
— Não brinque comigo, Capitão.
— Senhor, o “fantasma” vive. Com todo o respeito, Comandante.
— Impossível. Devem estar a passar por algum estado de alucinação.
— Engana-se, Comandante. Estamos bem. A não ser que estejamos todos mortos e isto seja um encontro com o nosso destino.
— Como está a sua saúde?
— … debilitado, mas sobreviverá.
— Meu Deus, como é possível? Tem a certeza que é ele, Capitão?
— Conheço o seu rosto, espere… acaba de acordar. Posso fitá-lo nos olhos e dizer com total certeza que é mesmo ele. É o meu rapaz.
Diz-se que pediu algo.
—Quero ir para casa.
Todos a bordo da Copérnico riram. Diz-se que riram para afugentar o medo que sentiam. Apenas Koriamy e a sua adjunta, Melanie Kerpal não sentiam receio pelo reencontro com o “fantasma”.
— Calma, calma. Ainda não acredito. Estás vivo. És mesmo tu.
— Capitão, o que me aconteceu?
— Oxalá pudesse responder-te, rapaz. O que importa é que estás bem. Rapazes, ajudem-me a transportá-lo para a Copérnico. Depois, reboquem a nave.
Sinder disse mais tarde que nunca tivera nenhum acidente. Explicou que se encontrava numa missão de reconhecimento, acatando ordens do próprio Comandante. O Comandante não achou graça. Pô-lo de quarentena, atrás das grades. Estaria louco? Temeu pela sua sanidade. Apenas uns poucos privilegiados sabiam que o Sargento Sinder, ou o seu “fantasma”, estava de volta à nave. Quem revelasse a notícia seria severamente punido. Mas aquele homem não podia ter sobrevivido a tal acidente. Como poderia ter sobrevivido no espaço? O que lhe teria acontecido? Somente uma resposta acorria à sua mente: era o espírito do falecido Sargento Sinder Val alertando-os para saírem do local. Só havia uma solução. Aprisioná-lo, vigiá-lo de perto e transportá-lo em segredo de volta à Terra. Esperava, contudo, que a maldição do local não fosse também levada para casa. Era um dilema, não queria pôr em risco a tripulação, já tão esgotada e amedrontada. Mas haveria outra solução?

* * *

Falei com Sinder no dia seguinte na sua cela. Sentámo-nos à mesa, frente a frente. Corroborou tudo que lhe disse. Continuou asseverando que jamais tivera algum acidente com o seu Albatroz. Nunca tinha desaparecido. Continuava incrédulo com a história de ele ser um fantasma. Disse-me:
— Acredita mesmo que sou um espectro? Acredita que eu era o fantasma que assombrava a missão?
Não sabia como responder-lhe. Tudo era um enigma para mim.
Perguntei-lhe se no dia do seu suposto desaparecimento não viu a luz.
Ele riu-se.
— Sim, a luz quase me ofuscou. Mas consegui manter o controlo da nave e regressar para a Base. Mas segundo o processo eu perdi os conhecimentos e a nave explodiu. Estranho, não? Quem está por detrás deste esquema, Dr.? Eu servi de engodo e de bode expiatório. A missão terminou e eu fiquei retido numa câmara hibernando durante décadas. Perdi parte da vida em troca de quê? Não envelheci mas privam-me da liberdade.
— Mas a luz vinha de onde, Sinder? Como conseguiu controlar o seu Albatroz? Como… nunca perdeu a consciência em nenhum instante?
— Ocorreu-me pedir auxílio ao meu amigo, ao Sargento Jensen. Ele disse-me para me manter calmo. Foi o que eu fiz. Sinceramente, olhando-o olhos nos olhos, é possível ter perdido a consciência. Sim, de facto não me lembro como tudo sucedeu. A memória tem falhas que o tempo oculta, ou que Deus nos apaga. Mas não morri, creio. Já me fizeram duvidar de tudo, mesmo que tudo isto exista. Testes e mais testes. Aliás, julgo que vivo no purgatório, pois no inferno a comida não seria tão deliciosa. Não acha, Dr. Fonz?
Fitei-o. Apercebi-me nesse instante que o seu olhar era profundo e assaz perturbador. Sorria maliciosamente. Mantinha-se sereno, imperturbável, insondável. Um arrepio atravessou-me a espinha. Pela primeira vez acreditava que ele era de facto um fantasma. Senti-me atemorizado. Apenas lhe respondi com um encolher de ombros.
Observou-me de cima a baixo. O que me deixou inquieto. Olhei-o de soslaio. Sem pronunciar nada.
Ganhei coragem e questionei-o sobre a sua vida após o alegado acidente. Respondeu-me que nada de extraordinário tinha ocorrido, à excepção de uma ou outra anomalia nas naves ou receptores. Disse-me que procedeu a mais viagens de reconhecimento. Inclusive deu-me pormenores da sua aterragem a um dos planetas, Gemini I.
— Quando viajamos inclusos no coração do cosmos, deixamos de respirar com normalidade, não sentimos os membros responderem-nos com a prontidão necessária. Por vezes não cremos no que os nossos olhos nos mostram. Será tudo verdade ou estarei a sonhar? Perguntamo-nos, dadas as maravilhas que encontramos. Já assistiu ao desfalecer de uma estrela, ou a erupção de um manto de cores, como se de um arco-íris se tratasse, no meio do nada, Dr.? Bem, naquele dia, eu, o Sargento Jansen e o Tenente Gordon entrámos pela primeira vez na atmosfera de Gemini I. Do espaço era uma esfera quase esverdeada, ao mesmo tempo quase violenta, linda. Mas na verdade deparámo-nos com o latejar de um enorme véu índigo. A força da gravidade era ligeiramente superior à que presumíamos. O jet ganhou uma grande velocidade, a trepidação da entrada gerou quase a sua destruição e a nossa morte. Aterrámos em sobressalto. Perdemos um dos motores de propulsão. Perdemos o contacto via rádio com a Estação Centauros. Gordon… o Tenente Gordon era um homem impecável. O gajo tinha… digamos que era destemido. Nada o detinha no cumprimento de uma missão. Pior do que ele era mesmo eu. Sempre fui obstinado, Dr. Não havia obstáculos à minha impaciência. Mas aquilo era diferente. Havia algo de errado com Gemini. Observámos ao nosso redor uma atmosfera anil sob um denso manto de nuvens. A essência inóspita de tudo dava-me arrepios. Mantivemo-nos resguardados nos nossos fatos espaciais, apesar do clima ser respirável. O solo era rugoso, como areia grossa e de uma cor vermelha pálida, como em Marte. A Lua mergulhava os seus contornos no silêncio da noite eterna. Desejava ir-me embora, mas não podia. Não demorou muito a sentirmo-nos em perigo, quando sem nada que o previsse, uma chuva ácida irrompeu. Trovões gigantescos surgiram no horizonte. Uma terrível tempestade de areia avizinhava-se. Corremos de volta para a nave, amedrontados. Levantámos voo de imediato e abandonámos o planeta. Tudo aconteceu demasiado rápido. Foi um choque para nós. Quase não sobrevivíamos ao enfurecer daquele casulo.
— Então crê que havia uma maldição ligada aos planetas gémeos?
— Tenho ainda pesadelos sobre Gemini. Sonho que fico inconsciente, perdi o rasto da nave e observo como uma tempestade se aproxima. Procuro abrigo e fico preso numa rede. Grito, tento libertar-me e um colossal monstro assoma, pronto para devorar-me.
Fonz notou que o dedo indicador da mão direita de Sinder não cessava de bater no tampo da mesa. Indiciava estar nervoso.
Sinder forneceu-me informações precisas de todo e qualquer aspecto relacionado com o assunto da aterragem, da cor, do ambiente do planeta. Estaria a inventar aquilo tudo? Sabia de antemão que jamais nenhuma missão tinha ancorado no dito planeta. Mais um enigma a juntar a tantos outros. Aquele homem estava a dar comigo em doido. Resumiu-me os seis meses em quinze minutos. Quem era aquele homem?
De repente, lembrei-me de lhe perguntar por Helena Belver e do jantar marcado. A sua face escureceu. O sorriso desvaneceu e o seu olhar perdeu-se por entre as memórias do seu passado.
—A bela Helena — suspirou . Ele temia que alguma coisa de mal pudesse ocorrer. O instinto feminino, dizia-me. Nunca amei nenhuma mulher como a amei a ela. Estava tão bonita naquela noite. O seu cabelo de oiro exalava perfume de rosas. O olhar era doce, a sua pele cetim e os seus lábios eram seda. Não a poderei esquecer — calou-se.
De seguida, sem que nada o fizesse prever. Levantou a face e voltou a fitar-me sorrindo.
—Agora que o noto, Fonz. As parecenças são extraordinárias.

* * *

Foi a última vez que vi Sinder Val. Entretanto, o caso foi encerrado e o nosso “fantasma” voltou para o lugar dos vivos com uma nova identidade. Aleguei no meu relatório que ele não constituía perigo para a sociedade. Não consegui resolver o caso. Haveria alguma anomalia na periferia dos planetas gémeos? Teria sido tudo falseado para extinguir a missão? Estaria a dizer a verdade, Sinder? Teria sido, efectivamente, vítima de um complot? Mas agora que já passaram alguns anos, penso: e se quando morrêssemos, o fizéssemos apenas numa dada instância ou dimensão? Continuaríamos a viver a nossa vida sem nunca nos apercebermos que tínhamos atravessado o umbral da morte. Enquanto que os nossos amigos e familiares nos prestam homenagem junto ao nosso sarcófago, num outro universo contíguo vivemos junto a eles sem contudo suspeitarmos o que estaria a ocorrer. Talvez Sinder, por algum motivo, não tivesse conseguido almejar a outra passagem. Viveu em dois mundos, sem nunca o perceber. Amou e foi amado nos dois mundos e a sua alma foi recuperada pelo corpo neste mundo.
Quanto ao segundo corpo presente na nave, por incrível que pareça, nunca encontrei registos nenhuns, nem nunca o questionei sobre o facto.

Reis Neutel

Poesia - Ex-Homo e outras

Ex-Homo
Estendes as asas
E declinas o rosto sobre a colina
— podem os anjos apaixonar-se?

Fomos outrora homens
Anunciando o retorno ao céu,
Sentinelas dormitando
na cegueira do desejo.

Somos tecto no mastro dos astros,
A frincha de um instante
Entre os galhos do Outono.

Sobre as nuvens sujas da cidade,
Alimentamos magoados a ferida
de quem regressa jamais

— ou a dor de quem pode
Esquecer nunca.

À Memória que fomos
Fomos ecos sonhadores de uma mesma memória.
Tocámos o céu com nossas asas
Vagámos sobre o clarão dos mundos
E os nossos lábios beijaram o éter do Sonho.
Éramos o que sonhávamos
Éramos o clarão que alimentava o ópio do tempo
O intervalo das pálpebras arqueando
O sonho ante as sílabas impronunciáveis
Ensinámos a linguagem do amor
E a melodia da criação.
Às vezes mantínhamo-nos entre as gotas de chuva
Escutando o movimento dos visionários
Adormecíamos felizes.
Agora
Somos homens sem sombra
Lembramos gestos pairando no contorno dos sentidos
Imprecisos traços não podendo ser definidos.
Assomámos ao parapeito dos pensamentos
Tentando olvidar a cor do Éden,
Os jardins de néctar
E subitamente deixamos de sorrir
Pois
A solidão apoderou-se dos nossos olhos
E as nossas bocas secaram por não saber falar.
Já nada é como o sonhámos.

*

Nos dias de outros dias,
Quedámos por vestígios da memória,
De quando fomos homens
Na revelação da madrugada.

Também fomos anjos submersos
Na dispersão da inocência
Ou remetentes surdos
Entre o nascimento e a morte.

Não despertamos, senão, no dorso da escuridão,
No diálogo com a solidão dos passos,
Suspeitando que o nosso derradeiro suspiro
Se dilui nas reminiscências do que nos resta.

*

Ao penúltimo dia da Era
Tornámo-nos nascentes
Ou corpos desaguando na claridade
Fomos outrora homens que cambiaram
o corpo pela alma,
signos ao compasso das estrelas.
Fomos a ponte de um pensamento,
Espíritos na face deste instante oblívio.
Somos as últimas horas
Flutuando entre o levitar do coração
À beira-mar do sono lento
Suspeitamos que o nosso último suspiro
Seria elevado no anoitecer da memória
Ou nos dias de outros dias,
Enquanto atravessarmos o véu de silêncio,
E o olhar esculpir um sorriso de despedida.

Adentro o corpo no calor do quarto,
No quarto fechado, onde não há tempo para a ponte
Com a nossa morte,
Nem com a ilusão do espelho no limiar da noite.

Para mim todo instante é uma peça teatral
De um só acto,
Ímpeto de não poder fugir de mim,
Nem do limiar da minha ausência.
Sede como a angústia que aperta
O seu punho na limiar de tudo existir.
Vêde a labareda entremeando o seu beijo
Com o veneno depurando
As suas garras
No desdobramento da eternidade
Que rasteja de dentro para fora de mim.

Que procuram os sentidos
—A face do silêncio,
Ou a margem de tudo?

A lembrança a partir,
O sinal de este mundo que
Jamais passa por mim
E se aloja na espiral do coração
Algures, perdido na memória de amanhã.

À sombra dos enforcados
Florescem palavras ao som do piano,
Melodia ardendo entre as pétalas do suicídio,
Tons ou versos-de-lágrimas,
E morremos
Por fim
Nos intervalos de aquém,
Perante a Alma de Ninguém.

Aos Poetas, Aos Sonhadores
Também eu, irmãos
Tenho saudades de mim
Também sonho
Com as palavras que não possuo
Ou as miragens
Sótãos profanos de música
Escutando a claridade
E o poeta exalta
Os delírios da sua própria grandeza.
Pobre! Não sabe o que o espera.
Antes morresse,
Enforcado, abandonado, inútil.

Oh lamento o disfarce do momento
O céu turvo que minhas mãos acolhem
Docemente
Fiz os lábios vazios tocarem o verniz do tempo
E a minha língua soltar-se
Beijei o firmamento dos sentidos
Beijei a elipse de qualquer oblívio contemplamento
No seu rosto de marfim
Chorei
Chorei pela minha morte
Por não ter escapado a tempo

Não há sombra mais funesta
Do que aquela em que zarpamos.
Meu irmão, se ao menos
Fôssemos outros,
Intérpretes de tédio
Navegando sob a ponte da morte

Vi tantos como nós
Extinguirem-se para lá do exílio destes olhos
Almas ténues soprando seus versos
Não as quis despedir
Não poderia suportar a dor de os ver partir.

Sou eu e não sou nada,
Intervalo incógnito
Entre mim e o eco
Da voz que se arrasta
Em segredo
Serei, talvez, (sim)
O desígnio de Deus
O anónimo cipreste erguido em toda esta paisagem,

Ou a sombra que se esquece
Do seu inconfesso ser de amar

Não, não
Sou o compasso
A trespassar a madrugada
No Intempore sonho da alma.

Reis Neutel

Poesia - Cor e outras

Cor
(prelúdio a uma emoção)


Coração é uma teia
Vive lá uma serpente
Seu sangue é uma corrente
Enrolada em cada veia

Vive pobre coração
Nada tem que o contente:
Se diz que é feliz, não mente;
Pois mente, foge à ilusão

Não tem razão no que fala
E não na tem no que sente
Coração estando quente
Diz demais quando se cala

Entretem-se e entretece,
Gira de pião a mente,
Nada há que o contente
Em cada volta esmorece

Não há triste coração,
Que a alegria não o tente;
Em espiral a maçã rente
Acalenta a escuridão

Ao morder, o coração,
Nessa teia a mosca sente
Enroscar-se de repente,
Inventar a pulsação.

*

dois entreactos de presunção para ler sem respeito.
(com intervalo)

2.1

O Poeta é um amador,
Ama tão desesperadamente
Que chega a fingir que é amor
A dor que incompleta sente

E ninguém vê o que ele escreve,
O amor lido é de ninguém,
Não há amor que se tenha,
Que ninguém tenha também.

E assim em roda da alma
Morde, sem olhar a razão,
Esse monstro de chama
Que engole o coração.

2.2

O Poeta é um amador,
Ama tão inesperadamente
Que desejaria fingir que é dor
O amor que com surpresa sente

E quem vê o que ele escreve
do amor que nunca se tem,
nunca vêem seu amor
sem o quererem ter também

E assim em roda do ser
Venta no fundo a razão
de apenas ousar querer
Dar um uso ao coração.

*

Procissão

Quero de ti o que sente a escuridão
quando num arremedo de repente
se te inventa a criação

Quero de ti o que não se dá,
o espaço sem emoção, o riso ausente,
quero de ti sentir sem mediação

Quero de ti só o que só eu busco,
de ti um mais que imenso crepúsculo
numa aurora de vibração

Quero de ti o mais que querer,
o que no canto da alma não se vê.
De ti o todo quero que num grito se perder

Quero de ti todo o momento,
e de todo o instante em cada ausência
Quero de ti ser o que não tens
Mas de nós quero o que sente a escuridão
quando num arremedo insistente
se nos inventa a criação

Quero a alma que se faz carne
- em ti o respirar - a paisagem imensa quero
dum suspiro sem despertar

Quero de ti pétalas desfeitas
na tardia boca dos sóis de verão
Quero de ti cristais de vento, de ti essa ilusão

Quero de ti o pulsar apenas - em nós, forte, estala a emoção -
e neste instante, que tudo alcança,
de ti quero essa sensação.

(ao longe gabam-se corações, enquanto dura a descrição;
o mundo todo é uma espiral)

Rui Gonçalves Miranda

Poesia - Linhas e outras

Linhas
Linhas de permeio na velocidade atroz que só sabe cegar
Ideias materializadas no gesto vão e inútil que se segue
O séquito invisível das vozes de Além a querer chegar
A sombra da escuridão ausente que só na luz me persegue

Incessantes ruídos de mãos caídas me isolam na rua
Escurecido pelo cair da noite que só é noite em mim
Olho em volta mas de olhos fechados e vejo a estrada nua
De transeuntes motores e peões que se perdem assim

Procuro o que de procurar e se encontrar em mim é alheio
Imagens tangentes de quereres, razões e vontades distantes
Orgulho em brasa de gelo queimado no mais perdido meio
Desprezo abandonado quebrando as correntes perdidas, errantes

Alma a sentir - Essência a reconhecer
Nós envoltos em gritos surdos e mudos espasmos
Toda a verdade é inegável hipocrisia e sarcasmos
Toda a juventude se ri do seu próprio envelhecer

A palma, o louro, a prata, o ouro
Odes à ilusão de se Ser e ser alguém
De se achar que se é não se sabe quem
De se esperar um falso passado vindouro

Questões são ilusões
Respostas são impostas
Não saber não é viver
Querer saber é enlouquecer

João Tavares

*

Medo?

Medo é coisa que não tenho
Medo é algo que me ultrapassa
Está muito para além de mim
Não importa o que eu faça

Vivo os dias sem saber
O que é ter medo a sério
Como se fosse Napoleão
Na véspera do fim do Império

Não sei o que é temer
Não lutei em Waterloo
Não escondi o meu medo
Bem no fundo do baú

Nem o escondi também
Num figo de capa rota
Nenhum arrepio na espinha
Me afectou em Aljubarrota

Lá não fui combater ninguém
Por isso ninguém temi
Fiquei sentado à lareira
Por isso não arrefeci

Receio é palavra estranha
Não defendi nunca el-Rei
Lutar até à morte
Foi o que nunca jurei

Mas lutar pela minha vida
Faço-o sempre sem temer
Apesar de dia a dia
Não saber se vou vencer

Medo de me perder não tenho
Não tenho medo de acabar
Talvez encontre, talvez, quem sabe?
O meu medo de chorar

João Tavares

*

HOMENAGEM

1. Opiário Revisitado, parte 36

Tarde eu acordo
Para o dia já começado
Encontro-me a bordo
E sinto-me tão cansado

Tarde para o dia
Mas cedo para mim
Que dormido estar podia
E não desperto, pr’aqui assim

Volvo uma vontade
Um quase querer erguer
Aperta-me uma saudade
Do meu doce adormecer

Deixem-me descer
De bordo deste navio
Nem todo o sol a arder
Me tira o meu frio

Abro as escotilhas das retinas
De escuridão estou cercado
Retiro, enfim, as densas cortinas
Que me amarram a todo o lado

Ergo o corpo, ergo as mãos
Faço tudo com muita calma
Mas cai-me por todos os chãos
De bem alto a minha alma

Que dor me fere os olhos
Que luz me violenta cega
Preciso de sombra aos molhos
Da escuridão que em mim refrega

Todo este tão vivo mal-estar
Todo este ao contrário de mim
Dia após dia, deitar, levantar
Isto há-de ter um fim

Saio finalmente a duras penas
Uma nova dor me vem acometer
Um desejo me invade apenas
Só quero ver o sol morrer
(...)

2. Frio
Frio. Está frio. Estou frio.
Estou frio por fora e por dentro
Eu, que sou o meu centro
Deste Mundo em que crio

Esperanças e ilusões
Sonho com o Futuro no Passado
Sinto-me cada vez mais isolado
Mártir das minhas frustrações.

Canto para mim num choro triste
As penas de minha alma
Eu ter sossego e calma
É tudo, menos o que existe.

Quero ser simples, enfrentar o mundo
Sem fugir. Quero sentir o que sei
Ser muito, mas em mim Lei
Que pouco a pouco me leva ao fundo.

Frio. Está mesmo frio.
Que importa? P’ra isso há aquecedores
Daqueles eléctricos, de muitas cores,
Vistos com terror no estio.

Aquecedores do corpo, fáceis de encontrar
Mas e da alma? Há? Onde estão?
Algo que diga ao coração
Que desligue o seu fio do de pensar.

Faço sempre as mesmas cenas
E não digo nada de jeito
Mas para todo o efeito
Eu sou só eu: apenas.

Não sou nenhum génio
E será que queria sê-lo?
Descanso não poderia nem vê-lo
Mas ele está aí, com o novo milénio!

Triste como tudo
Sem razões para o estar
Neste campo-mundo a lavrar
O meu silêncio, quedo e mudo.

Queria ter forças para lutar
Seguir em frente com a vida
Sem saber tê-la já perdida
Só à espera de acabar.

...Ter algo que me diga
Que vale a pena lutar...


3. Sou só eu...
Sou só eu, só um
Que me vejo e me sinto
Ao dizer a verdade, minto
Por saber não ser nenhum.

O Infinito, o Impossível,
Sabê-los, sonhá-los, não os ver
Com a Alma, com o Ser
Que em mim é invisível.

Dia após dia, a espera prevalece
É só uma questão de tempo...
Um desperdício de sentimento...
A vida desaparece.

Querer desejar, porém saber
Que de tudo o que é sonhado
De ter o mundo conquistado
É nada disso poder ser.

Um calar, um pranto
Por entre lágrimas murmuradas
Que logo são caladas
Mas que ainda choram tanto...

Se me fosse permitido
E a meus olhos chorar
E só um pouquinho aliviar
A tristeza onde sou perdido...

Mas não. Esperanças leva-as o vento
Desejos consomem-se e desaparecem
Quereres, enfim, todos desvanecem
E dão lugar ao tormento
De saber que o Fim é certo
E cada vez está mais perto.

Dedicado ao Mestre que, onde quer que o Coração doa
É sempre mais que ele-só, nunca só Fernando Pessoa


João Tavares

Letras sobre Letras – Italo Calvino

Um olhar quase académico sobre "Se numa Noite de Inverno um Viajante", de Italo Calvino
(e porque não?)

1. Bastidores

No âmbito da Literatura dita canónica, versão depois de Cristo, os leitores e a leitoras em potência ou de facto (e mesmo de gravacta) têm à sua disposição uma série de textos que podem escolher, com o fim de presentear os seus olhos, as suas mentes, a sua curiosidade e até mesmo aquela ida mais demorada ao WC. No entanto, muitos desses textos possuem uma característica muito particular, que é a de serem pouco acessíveis a muita gente, quer seja por estarem no alto da mais alta estante da biblioteca, porque sempre ouvimos dizer que eram chatos, ou simplesmente porque temos mais que fazer da vida. Certo, é justo. Mas há – digo eu, que ainda acredito que o Coelhinho da Páscoa é, com certeza, um cavalo marinho disfarçado (pois se ele põe ovos!!!) – também aquelas pessoas que se calhar nunca leram um texto porque nunca lhes passou pela cabeça fazê-lo. Tendo isso em conta, e não querendo obrigar quaisquer olhos a ter absoluta necessidade de invocar Leibnitz para conseguir não desesperar (leia-se, não ter de ler sobre a mesma coisa repetidamente), optei por vasculhar uns textos que tinha – e curiosamente ainda tenho – perdidos no meu domicílio e escolhi reler, anos e anos depois, o que se segue: “Se numa Noite de Inverno um Viajante”, do cubano Italo Calvino, e decidi partilhar aqui um olhar sobre ele. Se quiserem podem ficar por aí porque, apesar de não estar contemplado na selecção (que não Nacional) de textos para a típica conversa de café de todos os dias, estou em querer – porque querer é poder – que desta escolha não advirão tão grandes males ao mundo como os que afligiram Cândido, o Dr. Pangloss ou a menina Cunigundes…
2. Cenários

Muito boa noite, caros espectadores. Sejam bem-vindos a mais um – esperamos – interessante exercício de conjugação de ideias com o intuito de fazer com que façam algum sentido quando ligadas entre si. Já agora, se para si não for de noite, não se preocupe, algures em Hades há-de sê-lo. Temos hoje reservada, especialmente para si, uma magnífica justa oratória, bem ao estilo de Pico della Mirandola e Savonarola. No entanto, em vez de dois gladiadores orais, dispomos de nada menos de sete – os sete leitores! Hum? Hm...bom, lamentamos imenso, mas acaba de nos chegar a notícia… sim, bem, infelizmente já não nos vai ser possível realizar a justa oratória, pois parece que dois dos oradores foram contactados por Stanley Fish e estão a tentar mostrar-lhe que a história do Califa Harún ar-Rashíd afinal é um poema… um outro foi raptado por Roland Barthes e, como fora autor da frase “Quem sois vós?!”, acabou por morrer e a sua alma repousa agora com Platão no mundo perfeito das Ideias… o quarto descobriu, tal como Schopenhauer, que “o mundo é absurdo” e foi-se embora. Os quinto e sexto foram procurar Borges e o seu “Eu”. O sétimo ficou em casa à espera das doze badaladas e da “Doce, doce Leonor”. Sendo assim, e já que pagámos pela transmissão, convidemos antes o leitor principal do texto “Se numa Noite de Inverno um Viajante” e conversemos com ele. Alguma objecção? Não? Então vamos lá…

3. Palco – uma mesa de café, duas cadeiras, duas canecas com café, ideias

“Olá caro leitor principal, seja bem-vindo”.
“Olá. Obrigado pelo convite. É um prazer estar aqui”.
“Por favor, conte-nos um pouco da sua experiência no papel de leitor nesta obra.”
“Com certeza. Tudo começou na página inicial, com o princípio, o alfa, o génesis…”
“Aham… pois, não é bem isso que eu quero dizer. Por favor fale-nos do texto em si, do papel dos intervenientes, do propósito do texto, das intenções…”
“Muito bem, porque não? Olhe, acima de tudo este é um texto que conta uma história; essa história ilustra uma realidade múltipla, que é a da elaboração (escrita) de textos e a sua leitura. O próprio texto tem uma configuração peculiar, uma vez que se vai progressivamente construindo uma narrativa sobre os processos de construção e de leitura de textos, afastando a tradicional abordagem da narrativa linear”.
“Diria então que este revela a interacção entre obra escrita e obra lida?”
“Mais do que isso, slurp (sorve café), eu diria que revela a relação íntima e indissociável entre autor, leitor e texto.”
“Poderia explorar melhor essa ideia?”
“Tentá-lo-ei. Vejamos, eu desempenho o papel de um leitor interpelado por um narrador, levando-me a dirigir-me a uma biblioteca na qual interajo com mais sete leitores.”
“Sim, nós sabemos. Aliás, só não estão aqui hoje por razões de força maior.”
“Foram recrutados por Homero para ajudar a resgatar a bela Helena?”
“Não, não obedecem a Heitor nem a Agamémnon! Simplesmente tiveram mais que fazer.”
“Compreendo. Bom, voltando à nossa conversa, slurp, o texto é uma espécie de fábula sobre a leitura, na qual o meu diálogo com os outros leitores acaba por ir mostrando quão complexo e diversificado é o processo de leitura. Cada intervenção é uma peça no todo de uma reflexão acerca de como se deve ler uma história. Sabe, antes do diálogo a oito, eu tinha a ideia de que ler era um processo com princípio explícito, um desenvolvimento sustentado e um fim final, concludente e definitivo. Pensava que cada livro era uno e totalmente diferente de todos os outros. Julgava que cada livro continha em si uma história que me seria contada. Acreditava que em cada livro eu juntaria naturalmente todos os pormenores e veria o todo do conjunto. Mas afinal não é bem assim. Há histórias que, tendo exactamente o mesmo corpo gráfico, são diferentes de cada vez que se lêem, por ser também diferente a disposição de quem lê – e assim a forma como absorve a leitura.”
“E só foi isso que descobriu?”
“Longe disso. Slurp, pode pôr-me mais café, por favor? Obrigado. Não, à medida que os outros leitores falavam, fui-me apercebendo de que a ideia com que eu cresci, de que a leitura assentava na linearidade da narrativa, que era algo de virginal, genésico, algo que naturalmente se impunha, afinal não é assim. Afinal parece-me que agora só existem no mundo histórias que ficam em suspenso e se perdem pelo caminho. A leitura é um processo, podendo até ser um labirinto. E o patrão, o Sr. Calvino, usou-me como leitor modelo para mostrar isso mesmo.”
“Deduzo das suas palavras que o seu papel é o de aluno, de aprendente…”
“Sem dúvida, mas sou também um ensinante, já que pelo meu exemplo se aprende a ser leitor. Eu sou como um capitão de mar que vai navegando pelos oceanos sem fim – tal como o leitor pode navegar pela imensidão das possibilidades de leitura. No entanto, toda a navegação que não acabe no fundo do mar, deve acabar num porto. O meu porto foi a biblioteca municipal. Nela fui procurar, em metáfora, os dez barcos que queria capitanear: os livros. Mas não os encontrei. Encontrei, sim, os sete leitores de que já falámos.”
“E como foi que encetou conversa? Houve uma cena de pugilato por baixo da janela, como a que é descrita no prefácio do livro do ajudante de guarda-livros Bernardo Soares?”
“Não, slurp. Cada um deles começou a falar à vez, como em qualquer Fédon ou Banquete, simplesmente expondo a sua perspectiva. O primeiro leitor abordou-me quando os nossos olhos se cruzaram. Ele vagueia pelo ar com o seu olhar – que não é por acaso – azul. Para ele, a leitura reside essencialmente no estímulo que um par de linhas injecta à sua imaginação e ler verdadeiramente é encontrar elos para além do que propõe o texto. A leitura permite-lhe ler muito para além do livro, permite-lhe encetar um itinerário de raciocínios e fantasias que (percorre) até ao fundo, afastando-se do livro até perdê-lo de vista, pelo que o livro mais não é que a mola que o projecta para uma leitura do mundo.”
“Muito interessante. E depois?”
“Slurp, depois pronunciou-se o segundo leitor, que tinha olhos de cera e rosto avermelhado, invocando uma imagem de cansaço, que poderia advir-lhe do facto de a sua leitura lhe exigir um esforço ininterrupto. Ele achava que à leitura deve dispensar-se toda a atenção e mais alguma, não se devendo deixar escapar nem um pormenor, por mais mínimo que seja, nem os segmentos mínimos, aproximações de palavras, metáforas, nexos sintácticos (…). Segundo a sua concepção de leitura, veiculada através de vocabulário ligado à física, o importante é verificar como as partículas elementares constituintes do texto se relacionam e formam um todo. Da necessidade de colher cada pormenor advém a impossibilidade de desviar o olhar do livro; este funciona como um sistema, cujos elementos se inter-relacionam plenamente. Tem de haver uma unidade que congregue toda a heterogeneidade, qual máquina que gira sobre um eixo nas palavras de Edgar Allan Poe. A leitura deste leitor nunca tem fim, já que de cada vez que lê parte sempre à descoberta de um novo pormenor, de uma nova revelação, uma iluminação por entre as dobras das frases, das quais diz que "não posso distrair-me se não quero descurar nenhum indício precioso" – reler o texto é conhecê-lo cada vez mais.”
“Acha que ele era um fanático adepto de Álvaro de Campos? Digo-o pela aparente militância obsessiva pela vertente maquinal e industrial do texto.”
“Não me parece. Talvez fosse bem mais um adepto das histórias de detectives, esse expoente máximo do Realismo, nas quais toda a acção e narração se processa como se de um sistema lógico e científico se tratasse, no qual a lógica impera e a atenção ao pormenor é vital – ou mortal, se falarmos de Agatha Christie ou de Sir Arthur Conan Doyle… mas tudo isto são suposições, certo? Adiante, slurp. Já que falamos de adeptos, permita-me avançar a hipótese de ser o terceiro leitor um adepto de Todorov e da sua Poetique, na qual ele diz ser toda a leitura de um texto uma reescrita do mesmo, dado que ler um texto é construir um sentido para o mesmo. Digo isto porque o próprio terceiro leitor confessa sentir uma necessidade de reler os livros que já leu, mas em cada releitura parece(-lhe) ler pela primeira vez um livro novo, o que equivale a dizer que quanto mais lê um livro, menos o conhece – pelo que contraria totalmente a posição do segundo leitor. Duas leituras de um mesmo livro jamais serão iguais, pois as emoções que o leitor procura sentir novamente com a releitura, não as encontra. A sua experiência já é diferente, as suas expectativas também, assim como as suas emoções e conhecimento. Desta forma se pode concluir que para o terceiro leitor o mais importante na leitura, que é sempre diferente, é o processo em si, e não o objecto, que é inalcançável. O grande desafio, o grande prazer reside na própria leitura, não no objecto da leitura.”
“Muito bem. E daí para diante, que mais ouviu dos seus interlocutores?”
“Olhe, sluuurp, o quarto leitor avança uma posição assaz curiosa, segundo a qual toda e qualquer leitura nova que ele faça mais não é que um acréscimo ao grande livro que resulta da soma de todas as leituras que ele já fez. Ele acha que cada um de nós contém em si um livro geral, que resulta de uma auto-composição progressiva e constante. Quando se lê uma obra nova, todas as anteriormente lidas se alteram na nossa memória literária e se ajustam ao novo somatório, sendo que, desta forma, cada leitor é por si mesmo autor da sua própria tradição literária – afirmação que muito gosto faria a T. S. Eliot se a pudesse ouvir/ ler. Cada parte do livro geral é necessária para entender o todo, como se de um sistema se tratasse. A acumulação de leituras funciona de forma centrípeta e não centrífuga, uma vez que a acumulação se faz de fora para dentro, já que cada livro novo (que vem de fora) se incorpora no núcleo do todo. Dir-se-ia até que ele poderia chamar ao seu grande livro um composto.
“Um composto? Mais ou menos como esta mistura solúvel de café que não paramos de sorver?”
“Bom, eu diria mais como a Enciclopédia elaborada por inúmeros iluminados da época das luzes… mas passemos ao quinto leitor, que me expôs o seu conceito de leitura dizendo que também ele comunga da ideia do leitor anterior no que à existência de um grande livro diz respeito. No entanto, este é mesmo o único ponto que ambos têm em comum. O quinto leitor acredita que cada nova leitura que faz é um eco do texto original que existe para lá do tempo, que mal aflora nas (suas) recordações. Segundo ele, existe um texto primordial, um arquétipo, do qual derivam todos os textos que existem. O objecto da sua leitura consiste em aproximar-se mais e mais da pureza da primeira história, da qual mais não restam do que vagas e difusas recordações – um pouco à semelhança do que sucede na Alegoria da Caverna de Platão, segundo a qual vivemos num estado de recordação do sítio de onde provimos antes do nascimento. Durante a infância ainda temos memória desse local arquétipo, mas com a idade as recordações tornam-se cada vez mais vagas e difusas, ficando nós apenas com os ecos longínquos da nossa génese, tal como este mundo no qual vivemos não passa de uma cópia de ecos esbatidos do mundo perfeito, onde residem as Ideias. Dessa mesma forma o quinto leitor procura sem alcançar o livro da sua infância, reconhecendo que o que dele me lembro é demasiado pouco para o reencontrar. Para sempre viverá na nostalgia da essência, da história perfeita da sua infância, que agora está perdida. Reparei ainda que este leitor, lá na biblioteca municipal, estava sentado atrás duma pilha de volumes encadernados, como se esses livros o emparedassem, à imagem do que fazem as paredes da caverna da alegoria platónica, aprisionando-o enquanto perscruta as sombras fugidias do livro original.”
“Algo tenebroso, esse quinto leitor. Confesso que me deu alguns arrepios ouvir falar dele.”,
“Sluurp, acredito que lhe daria mais arrepios visitar certas províncias da Roménia pela mão de Bram Stoker… mas isso são estacas para outros corações. Podemos passar ao sexto leitor? Era o que estava em pé passando em revista as estantes de nariz levantado e para quem a promessa de leitura é o mais interessante; para ele o que importa é a acumulação de expectativas, a promessa de aventura, o antes da leitura, não tanto a leitura em si. Eu compará-lo-ia a um Huck Finn que parte à descoberta não porque precisa de fugir, mas porque quer abandonar-se nas asas da imaginação, quer deitar-se na sua jangada ao descer o Mississipi e olhar o céu, vendo nos desenhos das nuvens apenas pontos de partida para nuvens maiores e mais recortadas, antevendo o mar, antevendo navios, antevendo as ruas da grande cidade de Nova Orleães, antevendo encontrar os tesouros de piratas, e tudo isto sem ter ainda saído das margens do Mississipi.”
“Esse sexto leitor é, portanto, um sonhador, um construtor de castelos nas nuvens. Quer mais café?”
“Não, obrigado. Sim, algo do género. Totalmente o oposto do sétimo leitor, para quem o fim é o mais importante, mas o fim último, o verdadeiro, (…) o ponto de chegada a que o livro quer levar, o telos. Este é um leitor com uma posição muito pragmática. Contrapõe-se também ao segundo leitor, para quem, relembramos, não havia qualquer fim. A concepção de leitura deste sétimo leitor é utilitarista e transitiva, e pode equivaler a dizer que o processo de leitura em si não valeu de nada. Sem pudor, atrevo-me a dizer que a posição do sétimo leitor poderá levar a certos perigos dela inerentes, sempre e desde que se perca a noção de equilíbrio e equidade do que se lê e do que se quer ler para lá do fim. Relembro com alguma apreensão o que sucedeu a tantos incautos que beberam das palavras de von Clausewitz a ponto de acreditarem que a guerra tinha mesmo um carácter higiénico e que era absolutamente necessário despoletá-la, achando que esse era o fim último que o autor advogava. Temos na nossa História a Primeira Guerra Mundial para provar que "Da Guerra" tiramos todos os monstros escondidos na Caixa de Pandora e que, tal como nela, também a Esperança fica lá dentro bem escondida.”
“Pois, dito assim… mas diga-me, como é que acaba a história?”
“Ora bem, depois de ter acabado de ouvir todos os sete, expus aquilo que considero ter sido a minha aprendizagem, isto é, opus a minha crença original do que era a leitura à minha nova visão, reconhecendo que não é possível separar uma história de outra, de ler um livro de princípio ao fim e ficar por aí. Parece-me que agora só existem no mundo histórias que ficam em suspenso e se perdem pelo caminho. Para o provar pode ver-se que o final da história assinala o início de outra, a do Califa Harún ar-Rashíd, à qual se segue ainda outra, da qual apenas se conhece o início. Todo o texto é composto por histórias que começam e logo ficam em suspenso, dando lugar a outras. Este texto bem pode ser uma metáfora do mundo e mesmo das nossas vidas, nas quais histórias se sucedem a histórias sem nenhuma delas alguma vez ter um fim definitivo.
“Mas o fim foi, digamos, do mais tradicional possível, não?”
“Tem razão. No fim casei com a Ludmilla e isso veio funcionar como o deus ex machina que resolve todos os conflitos pendentes e remete para o final característico das comédias, sendo que ao universo da obra são devolvidos a harmonia e o equilíbrio. Desta forma se perpetua a vida e se admite a inevitabilidade da morte.”
“Pronto, muito obrigado pela sua inestimável presença aqui no nosso programa. Aceite desde já os meus parabéns pelo seu papel e boa noite.”
“Pois, o problema agora é que não vou conseguir dormir nada, sabe? É que para além de ter bebido quase um litro de café, estão a começar a nascer os dentes ao Ludovico Segismundo e hoje é a minha vez de ficar a tomar conta dele. Ainda assim, obrigado pelo convite e boa noite.”

João Tavares

Pensamento / Sugestão

Pensamento do mês:

“O mais belo momento da vida, o mais rico, o mais carregado de futuro é o minuto presente. Aproveite-o!”
Lemoine


Devemos lembrar-nos que o passado poderá ser um facto consumado. É no momento presente que devemos começar a traçar o futuro. Neste mesmo instante em que lemos esta citação, detenhamo-nos a pensar que ainda vamos a tempo de concretizar o(s) nosso(s) sonho(s). A sabedoria destas palavras está no modo optimista em encarar a vida, não desistir e recomeçar outra vez no encalço dos nossos objectivos; desfrutar da vida e do que ela nos oferece a cada singular instante. Não aproveitar o momento é desistir de lutar por nós mesmos.

Entre nós, pensamentos e palavras
Sugestão da leitura do mês:
(clicar na imagem para visualizar capa do livro)


O que terão em comum um locatário lisboeta, um guarda-florestal, uma adolescente ciumenta e uma noiva em fuga? O autor, João de Mancelos convida o leitor a perscrutar as suas fantasias perversas e inconfessáveis pelo olhar focal de um voyeur. Um livro muito bem escrito, com um agradável pendor humorístico, a não perder de vista. Publicado pela editora Nova Vega.
Reis Neutel