domingo, janeiro 07, 2007

Número Três

Editorial

O recomeço do cosmos

O princípio é o caminho para algo. Todos nós caminhamos com o intuito de chegarmos a algum lado. Todos os anos voltamos à página da nossa existência e projectamos a loucura dos nossos anseios no degrau aparente de um mundo insano, governado por instintos — qual deles o mais selvagem?
Chegamos, sem nunca termos partido, sem muitas vezes nos termos apercebido do que deixámos para trás. Voltamos, então, atrás, procurando encontrar o nosso lugar abandonado no banco do jardim. Todavia, não é um banco qualquer, é o banco no qual permanecemos quietos, mudos, entretidos a ler o mundo com os nosso olhos peregrinos. Deliciamo-nos, entristecemo-nos e somos indiferentes às folhas manuseadas de um mundo por descobrir.
Chegámos, mas nunca partimos. Pensamos: — é este o momento de começar do zero e decifrar tudo aquilo que nos rodeia. É um novo recomeço do fluxo inexorável do tempo, ávido por nos ser revelado. E no entanto, estamos exangues de compromissos, de não poder alterar nada. Acreditemos. O caos e a ordem, a convergência e divergência do universo imutável ata-nos. Desatemos — já — os nós que nos apertam. Dêmos uma oportunidade para nós mesmos. Em nós o pessimismo não é o fim em si mesmo, mas apenas um estado que nos leva ao conhecimento das coisas. Então, assim seja. Caminhemos, partamos, arquitectemos, sonhemos e sejamos criadores de novos mundos e da nossa própria existência.

A todos um fecundo ano em sonhos e criações.


Editor Três — Reis Neutel

Coluna de Opinião

Por entre aspas: “Qual é a cor do medo?”
— Sebastianismo e Quinto Império


“Qual é a cor do medo?”
Esta foi a pergunta que D. Sebastião ousou colocar um certo dia a seu tio, D. Filipe II de Espanha. O destemido e irreverente rei luso parecia indiciar desde muito novo um destino incomum. Mal sabia que o seu fado estaria irremediavelmente ligado a do seu povo. Tinha nascido como o “Desejado”, o prometido herdeiro da nacionalidade, que nos mantinha fora do alcance dos castelhanos. Cresceu imbuído por estórias gloriosas dos feitos dos portugueses, que mais pareciam ter como palco um mundo não terreno.
Quando falamos de D. Sebastião, recordamo-nos do jovem rei que desapareceu tragicamente na Batalha de Alcácer Quibir, a quatro de Agosto do ano de 1578, ao lado de outros dois reis mouros — Mulei Moluco e Mulei Mohâmede — e da mais fina e iluminada aristocracia portuguesa. Lembramo-nos, igualmente, do mito de D. Sebastião, “O Encoberto”, que regressaria, numa manhã de nevoeiro, para libertar Portugal do jugo dos espanhóis e liderar de novo o povo rumo a um destino superior. Todavia, nunca regressou, pelo menos, assim o reza a matriz da História. O povo ficou órfão e entregue aos estrangeiros. Acalentou a esperança de um dia ele chegar. Em vão esperou e desesperou. O passado tinha sido glorioso; a saudade era enorme. Nunca mais seriamos grandes. O tempo não perdoa e as ruínas de pó surgiram naturalmente. Eram agora as reminiscências do grande império, que D. Sebastião, se o acaso não tivesse reinado, teria engrandecido.
O que teria sucedido se D. Sebastião tivesse ganho em Alcácer Quibir? Seria certo que teria como plano conquistar todo o Norte de África e, seguidamente, marchar sobre o Império Otomano? Com certeza teria o apoio dos grandes reinos da Europa e, sobretudo da Igreja Católica, que via com bom agrado o ressurgimento em todo o seu esplendor do antigo Império Romano do Oriente.
Uma vez ter conquistado a actual Turquia, surge a pergunta: qual o seguinte passo a tomar? Novamente, muito se especula sobre o assunto. Talvez a incerteza se resolva através de uma outra questão. Por que motivo não se teria ainda casado D. Sebastião? Investigadores e historiadores defendem a tese que o nosso malogrado rei ambicionava tornar-se um dia Supremo Pontífice da Igreja Católica, daí a sua postura perante o casamento.
Neste momento, é legítimo perguntarmo-nos: pretenderia D. Sebastião ser rei e pontífice de toda a cristandade? Seria este o seu plano do Quinto Império — como proclama Fernando Pessoa —, um império baseado na fé em Deus e arreigado na(s) cultura(s) da velha Europa, tendo como centro nevrálgico Portugal?
D. Sebastião, deu origem à lenda de um projecto que ele presumivelmente aspirava e de uma tese que é conhecida como Sebastianismo. Os detractores da mesma tese apelidam os apoiantes daquela de “saudosistas e de Velhos do Restelo”. Porém, enquanto Sebastianista não me revejo nestas considerações. Tenho muita admiração, respeito e afecto pelo passado de Portugal, mas tal como D. Sebastião sou ambicioso. Sou Sebastianista porque também acredito num Portugal farol, arauto de toda a humanidade. Desde que momento a ambição se tornou nostalgia? O rei menino era um sonhador, um visionário e um conquistador. O jovem rei lutou para que os seus sonhos vissem a luz do dia. Tinha projectos para Portugal e um ideal para cumprir. Se não logrou cumprir a sua missão, quer fosse por ingenuidade ou, irreverência da sua juventude, por maus conselhos dos seus oficiais, quer fosse por insanidade, não me parece que isso seja muito relevante. Ninguém ousaria fazer uma guerra, sem ter um plano de vitória. Havia muitos que acreditavam ser possível. E tudo indica que D. Sebastião tivesse esse plano. Parece-me que os sonhos - projectos só se podem almejar num patamar futuro do presente e nunca no passado, por isso mesmo creio que o Sebastianismo tem toda a razão de permanecer ainda nos nossos dias. Fernando Pessoa foi dos primeiros a descobrir as verdadeiras raízes do Sebastianismo e pôde no seu tempo inferir que o sonho de um Portugal maior não era coisa do passado mas sim do futuro. Cabe-nos a nós, procurar o sentido do plano d'El-Rei D. Sebastião e esperar que “Deus queira, o homem sonhe e a obra nasça”.

Filipe Monval



Sós Auspício

I

A demanda do espírito
Me fez sobressaltar durante o meu sono
Em outras memórias virgens e silenciosas
De terras aspergidas
Em preludiais promessas inauditas
E me impeliu a caminhar sob o signo da espada
Despregando, sem medo,
Minha Lusíada Alma
No fátuo sonho de Deus.


II

Por quem moves tuas mãos, tão acinte, para escrever, poeta?
Non, esquece tudo que vai.
Nada de grandioso resta, por lutarmos
Nada mais há para escrever
Do que já foi entoado na canção das cinzas.
Quis ser o iluminado,
Tornei-me o encoberto.
Lembro-me como banhámos com sangue
A alvorada do destino.
A conquista ardendo
Nas Quinas suspensas d’um coração alado.
Por três rios, três reis cruzámos,
Para fazer da glória nosso altar.
Já nada vale a pena. Esquece.
Meu Deus, talvez, em vão partimos
Para alcançar o horizonte da criação.
Oh senhor, quantas almas ancoraste,
Quantos pelo fogo demente pereceram
Para salvar da quimera o sonhador?


III

Nada esperes do destino,
Vã cobiça humana.
Atearei de fogo os espectros
Vogando nos corredores escuros:
Abnad, meu tio, meus patrícios
Que infligiram maior dor no peito meu.
Em arauto da cristandade me diziam galardoar
Em “O Encoberto” me converteram
Antes me tivessem esquecido ou mesmo matado.


IV

Vislumbro agora,
Por entre um quasi-assombrado desterro
Como se precipita o mundo para o seu julgamento.
Ó Moribunda Europa,
Num abismo colossal
Vos haveis tornado
E meu Lusíada peito
No teu leito jaz.


V

Ergue-se perplexo
O Destino
E eu amargo e severo
Prossigo em sonho o Quinto Império.
Sou o Quinto Império,
O rosto de Ontem
Encoberto pela sombra da própria pátria,
Memória de uma raça errante
Absolvida pelos compassos do tempo
Que noutras margens subliminais repousarás
E que a Morte não pode inaugurar jamais.


VI

Ó Sonho de Deus
Que quis que eu fosse teu arquétipo – mor.
Sou o último,
Serei o primeiro?
Rei e Pontífice do Novo Mundo
Que a Cristandade ousou esquecer,
Apesar das lágrimas que percorreram suas faces,
Lá longe numa terra árida de afecto.
Ó sonho por sonhar
Que me encarceraste na contemplação
Irrealizável de toda a criação
Deixa-me imaginar as reminiscências do porvir.
O meu sonho apenas termina
No despertar da visão de outrem.


VII

Ainda, latente o sonho por minhas veias corre.
Vede o trono de São Jorge vazio.
Depressa, pega numa espada e segue-me
Ou, segura na tua pena o ideal que vos transmito,
Ó vassalos — poetas da minha herança
Levantai a voz para que almeje os quatro cantos do mundo,
Segui o rumo dos astros,
O contorno descrito pelas marés.
Ó Admiráveis Antepassados,
Nobre povo Lusíada
Erguei-vos da vossa tumba
Estai presentes para quando Portugal se faça.
Ai Portugal Português
A quanto aspiras sem o saberes,
Recorda que do sonho
Nasce a criação de Deus.


Filipe Monval

Conto

No Fim do Mundo

São 04.31 horas MZ. São horas de ser noite. São horas de estar a dormir. São horas de não estar a trabalhar. Um dos monitores mostra em tons de amarelo suave os dígitos que atiram à cara de quem para eles olha que esta não é hora de estar a trabalhar, que esta é hora de estar a dormir. O brilhozinho esbatido e ténue da luz do monitor onde se vêem as horas é tão débil que mal se dá por ele; é preciso dirigir mesmo os olhos na sua direcção para se ter uma percepção exacta do que aquilo é suposto ser – um relógio. Sim, um relógio. Um relógio é um objecto deveras singular e extraordinário. Um relógio mostra o tempo, aliás, mostra uma parcela de tempo a que se chama presente, a que se chama agora. Um relógio serve para uma pessoa se situar na dimensão mais estranha e alienadora que existe no Universo, o tempo. Essa é, sem dúvida, uma grande vantagem para as pessoas – saber situar-se é sempre bom, seja no tempo, no espaço, na mente, nos sonhos, no conhecimento, ou em qualquer outra coisa. Mas os relógios também servem para dividir o tempo. Mais do que dividir, servem para esquadrinhar o tempo. Um relógio que esteja em pleno desempenho das suas funções mais não faz que dizer-nos que o tempo avança, que não recua, que não fica quieto, que não hesita, que obedece sempre à mesma mecânica: para a frente, sempre para a frente, arrastando consigo toda a matéria do Universo, engolindo no seu voraz apetite a sua própria essência, pois tudo o que existe a ele obedece e lhe está sujeito. Já na Antiguidade, nos primórdios da Civilização Humana, as pessoas inventaram mecanismos para medir a passagem do tempo: desde o simples balde de água com buraquinhos por onde aquela fluía regularmente, o vulgar pau espetado no chão cuja sombra indicava a hora à medida que o Sol se deslocava pelo céu, o primordial dispositivo de corda com um mostrador de ponteiros, o posterior mostrador digital de cristais líquidos, enfim, todas aquelas geringonças de que uma pessoa ouve falar nas aulas de História, apenas para se aperceber que o Ser Humano há muito tempo que se deixou escravizar, não pela passagem do tempo, mas pela medição do tempo, impondo a si mesmo as noções de horários a cumprir, horas de entrada, horas de saída, tabelas cronológicas, linhas temporais, datas-limite, horas de espera, atrasos, pontualidade, enfim, toda uma série de conceitos que derivam única e exclusivamente da extraordinária capacidade que temos de medir o tempo, de o enquadrar, de o isolar, de o encaixar, de o dividir, de o racionalizar minuciosamente ou mega-gigantescamente no seu fluir cadente e inevitável. Olhando para um qualquer relógio que funcione correctamente podemos saber o que é suposto estarmos a fazer no momento em que olhamos para ele. Neste momento são 04.31 horas MZ. São horas de estar a dormir, não são horas de estar a trabalhar.

* * *

04.34 horas MZ. O brilhozinho ténue do monitor onde se vêem as horas não ilumina nada aqui dentro, só permite mesmo tomar conhecimento do ponto em que se situa a passagem do tempo no preciso momento em que se olha para ele. E provavelmente é isso que continuará a fazer durante milénios e milénios, até que o próprio tempo acabe, até ao dia do fim do Mundo... Aqui dentro a única luz que engana a escuridão da noite eterna é a proveniente dos painéis de controlo e dos monitores de imagem. Lá fora a noite é ainda mais escura que aqui dentro. Apenas o brilho distante das estrelas engana por momentos os olhos atentos e concentrados de quem os usa para trabalhar. Até há 17 minutos atrás ainda havia a luz do sol. Ou melhor, a luz de um sol, que não o Sol, que não o da Terra, que não o do Sistema Solar. Não, a luz do sol que havia há 17 minutos atrás era a da estrela CTRV, uma amarela de tamanho médio, muito parecida com o Sol, mas a milhares e milhares de anos-luz de distância. Na verdade, este era precisamente o ponto mais distante da Terra que algum Ser Humano alguma vez tinha atingido. Que grande glória! Que grande feito! Que grande... trabalho. Pois, trabalho. Nada mais que trabalho. Nada de feito glorioso, nada de grande aventura; uma simples missão de rotina enquanto batedor-prospector do Ministério dos Recursos Minerais. Já tinha feito isto dezenas... não, centenas de vezes, certamente. Já perdera a conta ao número de luas e planetas que batera à procura do tão precioso taranídeo, metal que alimentava e mantinha a Civilização Humana em toda a sua magnificência. Essa era, aliás, uma questão muito curiosa que lhe ocorrera quando ainda estudava na Academia de Classe Beta: o Ser Humano procura taranídeo para expandir o seu domínio; mas por outro lado expande o seu domínio para encontrar taranídeo. Já andamos a vasculhar o Universo há mais de dois séculos e ainda não encontrámos qualquer sinal de vida superior onde quer que fosse, somos provavelmente a única espécie pensante de toda a existência, estamos provavelmente sozinhos no Mundo e nos mundos que colonizamos e exploramos...

* * *

04.38 horas MZ. Até há 21 minutos atrás ainda havia aqui luz do sol, deste sol longínquo e perdido nos confins do Universo explorado, no lugar mais remoto possível do conhecimento humano, na extremidade do alcançado, no inaudito da distância, no inimaginável da lonjura, no fim do Mundo. Neste momento, Eliano Suznar tripula o seu módulo espacial em órbita da única lua do quinto e último planeta do Sistema Estelar CTRV. O seu objectivo, como sempre, é garantir que o computador da sua pequena nave faz uma correcta e exaustiva telemetria da superfície da lua CTRV-5/1, assegurando também que as sondas de prospecção directa da superfície são lançadas para os locais certos e no momento certo. O seu emocionante trabalho resume-se a isto: orbitar um planeta ou uma lua onde haja indícios de poder ser encontrado taranídeo, fazer o mapeamento mineralógico da superfície, ler os dados recebidos pelo seu computador e enviar umas poucas sondas irrecuperáveis até à superfície do planeta ou lua em questão sempre que considerar haver necessidade de analisar mais minuciosamente algum ponto em especial. Depois é só compactar todos os dados recebidos e fazer um relatório que leva até à nave-mãe com uma resposta de “sim” ou “não” a uma questão muito simples, mas que é a questão mais importante que qualquer pessoa pode fazer hoje em qualquer lugar do Universo conhecido: “há taranídeo?”. É claro que se a resposta for “não”, não há mais questão nenhuma a que ele tenha de dar resposta no seu relatório. Com muita naturalidade limitam-se a dar-lhe as coordenadas de um novo planeta ou lua sabe-se lá em que recanto perdido da imensidão do Espaço e lá vai ele tentar responder mais uma vez à primordial questão. É claro que se a resposta à questão for “sim”, então o seu relatório já terá de ser bem mais elaborado, pois de seguida ser-lhe-ão colocadas mais duas questões – também elas muito simples – mas que lhe requerem um maior grau de elaboração da resposta: “onde?” e “quanto?” são as questões que imediatamente se seguem a uma resposta de “sim, há taranídeo naquele monte de rocha a flutuar ali no Espaço”. Depois é vê-los a encaminhar para o dito local duas ou três enormes naves cargueiras cheias de material de exploração mineira. Tudo para garantir que continua a haver matéria-prima para os túneis espaciais, de modo a garantir que continua a ser possível encontrar matéria-prima...

* * *

“...e foi assim, completamente por acaso, que a Guerra acabou por nos proporcionar este bem tão precioso, os túneis espaciais. Ainda se lembram de algum outro exemplo em que uma guerra tenha contribuído para um grande avanço científico?”

“Sim, por exemplo, na Segunda Grande Guerra do Século Vinte, quer dizer, quase no fim, conseguiu-se a fusão atómica!”

“Exactamente, bom exemplo, obrigado...”

* * *

04.42 horas MZ. Há quase uma hora que chegou à lua CTRV-5/1. Mas que nome tão... quê? Que nome tão quê? Isto nem sequer é um nome. É um número de série. Há já um bom par de décadas que ninguém tem paciência par inventar nomes para estrelas, planetas, luas, asteróides, cometas e sabe-se lá bem mais o quê. Hoje em dia põe-se um número de série a tudo e acabou. CTRV é o nome de “catálogo” da estrela. Depois, os planetas que a orbitam: CTRV-1, CTRV-2... até CTRV-5. E a seguir, obviamente, as luas de cada planeta: CTRV-1/1, CTRV-1/2... até à primeira e única lua do planeta número cinco e último do sistema: CTRV-5/1. Fantástico, não? Simples, eficaz.

Este sistema foi descoberto pelos super-telescópios de Andrómeda-Delta há duas semanas. Depois foi só inaugurar mais um túnel e enviar para cá uma companhia para investigar isto tudo mais a sério. A nave-mãe está estacionada ao largo de CTRV-2/7, uma lua média e rochosa do gigante planeta gasoso com dezasseis luas. Aliás, à excepção do primeiro planeta, pouco maior que a Terra e com uma atmosfera muito mais densa e infernalmente venenosa que a de Vénus, os restantes quatro planetas são gigantes gasosos. É óbvio que não é nos planetas que reside o alvo da atenção, mas sim nas suas luas, quase todas elas rochosas. Ao todo, este sistema acumula 49 luas. Curiosamente, o último planeta tem apenas uma.

* * *

04.49 horas MZ. Para combater a mais que óbvia monotonia que se abate sobre todo e qualquer batedor do Ministério dos Recursos Mineiros que tem de mapear minuciosamente uma lua a cerca de 950 milhões de quilómetros do ser humano mais próximo de si (provavelmente essa honra deverá caber ao Galique Muniyox, que ele conhece bem e que é o controlador do tráfego aeroespacial de entrada e saída dos hangares de acoplagem da nave-mãe – como para isso ele tem de ficar num compartimento “tipo varanda” a mais de 20 metros do corpo principal da nave e como este está virado para a parte externa do sistema, logo...), o Ministério resolveu criar um serviço que mantém o fiel seguidor actualizado através de regulares boletins noticiosos, entretém com a divulgação de curiosidades e novidades simpáticas (como daquela vez em que um túnel foi aberto com base em cálculos errados e a nave batedora que o atravessou foi parar a meia dúzia de metros de uma supernova acabadinha de explodir) e, acima de tudo, faz calorosa companhia a quem tem de aturar emergido em solidão a vastidão infinita do Espaço. Aliás, os responsáveis pelo serviço, conhecido como RUI (Rede Universal de Informação) gabam-se de conseguir fazer chegar a sua onda a todo o lado, mesmo que lá ainda não tenha chegado nem sequer uma sonda batedora. O seu lema é “Consigo até ao fim do Mundo!”. Eliano tem reservados sempre dois monitores para as diversas estações da RUI. Por hoje, a informação mais importante vai sendo ainda a da captura da última bolsa de resistência dos Hereges, em Sagan 4. Nas imagens, o líder deles a ser levado para a Tribuna do Conclave, onde serão executados todos com a maior brevidade possível. Até que enfim, já não era sem tempo que se acabava duma vez com a raça destes desgraçados! No monitor, Eliano fixa a face enraivecida do líder Herege, que se debate inutilmente contra os guardas que o encaminham para o seu fim, enquanto grita aquelas que serão as suas últimas palavras públicas: “Dizeis que assim eliminais uma ameaça, mas não! Pelo contrário, estareis a concretizar vós mesmos, assassinos, a pior de todas as ameaças! Assim que tombar em martírio e sacrifício o último cordeiro do Povo do Senhor, as trombetas do Juízo Final soarão!... e darão lugar ao Fim do Mundo, ao Fim dos Tempos, ao Apocalipse, ao Armagedão!!! Estais preparados para condenar as vossas almas ao fogo eterno? Estais...” – e depois já não disse mais nada. O boletim informava que a loucura terrorista dos Hereges tinha o seu fim programado para as 06.00 horas MZ. Os últimos Hereges detidos... curioso...

* * *

“Q.I de 186, o que quer dizer que será encaminhado para a Academia de Classe Beta... Não, não, entre 170 e 210 é Classe Beta, não há outra hipótese... Claro que sim, há muito futuro na exploração mineira... Nem toda a gente pode ser engenheiro, minha senhora... Eu? Não senhora, como qualquer outro professor na minha posição, devo salientar que a Classe Beta garante a melhor instrução a todos os seu alunos... Sim? Ah, pois... O pai esteve na Academia Alfa e... Q.I de 253?... Lamento, não sou eu que faço as leis, minha Senhora, ele tem mesmo de ir para a Academia Beta... Sim? Pronto...Óptimo, óptimo, Senhora Suznar, então esperamos mais duas semanas até o pequeno Eliano cumprir o requisito mínimo dos doze anos de idade e pode começar a fazer as malas dele... sim senhora, igualmente. Para si também, até lá.”

* * *

04.55 horas MZ. Na solidão das estrelas, o vazio. Na escuridão do lado nocturno desta lua longínqua, o silêncio. Na ausência de interlocutores, um pensamento surge, por entre cálculos instantâneos de telemetria e navegação orbital: a Humanidade iria finalmente ficar livre duma vez por todas de loucos que acreditam na existência duma divindade criadora do Universo. Mas como teria isso alguma vez sido possível? Como é que pessoas racionais e saudáveis podiam acreditar que existe um plano metafísico paralelo à realidade palpável? Como é que alguém se pode recusar a aceitar o óbvio – que não há mais nada para além do que podemos perceber com a Razão? Como é que se pode preferir acreditar que existe Algo ou Alguém que determina o funcionamento das coisas, que é um só com o Todo, que é um poder absoluto? Como é que se pode condicionar o comportamento mediante uma expectativa de castigo ou recompensa dessa entidade omnisciente e justiceira? Como é possível que culturas inteiras e até civilizações se tenham regido de acordo com princípios dogmáticos sem sentido nenhum, baseados em supostas forças sobrenaturais às quais deviam obediência, reverência, temor ou respeito? Como se pode compreender que durante milénios se tenha obstruído e bloqueado com desprezo a Razão, agente único superior de toda a mecânica universal? Como? Não consegue compreender. Ainda por cima quando a crença cega e doentia na divindade levou a Humanidade à guerra fratricida incontáveis vezes e chegou mesmo a colocar em gravíssimo risco a sobrevivência da espécie... Isso aconteceu na Grande Guerra do Século XXI, em 2041 para ser mais exacto...

* * *

“Então, já estudaste tudo para a ‘minação’ de História?”

“Não, Eliano, ainda não. Falta-me ver ainda a parte do Século XXI”.

“Eh pá, isso é fácil. Não tem nada que saber. É só falar da Guerra das Religiões e das suas consequências.”

“Sim eu sei, mas é que tenho ‘minação’ de E.T. amanhã de manhã e de História à tarde. Acho que não vou ter tempo de ver tudo.”

“Olha lá, não achas que bem podias ter ido preparando a matéria ao longo da semana, meu mandrião?”

“Ah, para ti é fácil dizer isso, mas não te esqueças que na terça-feira de manhã acordei com supergripe-infecciosa-hemorrágica e tive de ir ao Núcleo de Curas da Academia para me aguentar vivo. Depois já se sabe como é, com uma doençazita daquelas, não me deixaram sair da quarentena até quarta-feira à tarde, para garantir a recuperação total. Assim, perdi logo um dia e meio de estudo!”

“Pois, tens razão. Olha, fazemos assim: porque não conversamos aqui um bocadinho sobre a matéria de História? Assim eu também revejo os meus conhecimentos. Pode ser? Depois podes ir preparar a ‘minação’ de Estudos de Túneis”.

“Parece-me bem. Em três anos nunca faltei a uma única Examinação Global Semanal, e não queria começar agora...”

* * *

4.59 horas MZ. Duas das sondas de superfície já lançadas enviam o seu relatório instantâneo para a pequena nave em órbita. Parece que há taranídeo lá em baixo. Oh sim, decididamente há mesmo taranídeo lá em baixo. Pelo menos, duas jazidas enormes no que de superfície foi analisado até agora. Dois enormes depósitos do metal mais precioso de todo o Universo já foram encontradas no que até agora foi batido da superfície deste pedaço de rocha escura e sem atmosfera a girar em volta dum monstro gasoso e gigantesco. Aliás, dizer que a superfície foi ‘batida’ é mesmo a palavra certa, tanto para dizer que foi vasculhada, fotografada, medida, testada, observada e analisada pelos instrumentos de prospecção, como para dizer que já foi atingida vários milhões de vezes por corpos celestes erráticos atraídos pela sua força gravítica ou simplesmente em rota de colisão com ela. Sim, poderiam ser suposições, caso não ostentasse de forma bem visível todas as cicatrizes em forma de cratera que lhe cobrem completamente a superfície poeirenta e pedregosa. Mais ou menos como a face de um adolescente antes de se submeter à intervenção genética que lhe limpa definitivamente a face do tormento do acne. Sim, há taranídeo lá em baixo, pelo menos o suficiente para abrir à volta de dez a quinze túneis. Se há garantias neste mundo, então uma delas é que ele ainda vai explorar áreas mais, muito mais remotas e distantes deste vasto deserto sideral desprovido de tudo menos de um ou outro lapso no vácuo eterno, chamado matéria. Por sorte, vá onde for, sabe que as calorosíssimas emissões da RUI estarão sempre lá, “consigo até ao fim do mundo!”. Reconfortante, sem dúvida...

* * *

“Então, percebeste?”

“Sim, agora acho que sim.”

“Pronto, então as causas e as consequências da Guerra das Religiões foram...?”

“As Causas da Guerra das Religiões foram religiosas, e as consequências foram más.”

“Sim, concretiza...”

“Então, a guerra começou porque quase toda a gente era Herege naquela altura, só que ainda não sabiam que o eram, então dividiram-se em dois blocos e mataram mais de metade da população da Terra. As consequências foram que descobriram que eram Hereges e foram reconhecidos como tal. Ah, outra consequência importante foi o acidente ao largo de Marte que abriu o primeiro túnel do espaço! Certo? É isto não é?”

“Bem... pois, sim... é mais ou menos isso. Acho que sim. Mas acho que te falta limar uma ou duas arestasinhas pequeninas para seres aprovado na ‘minação’ de História amanhã... Vamos rever isto um bocadinho melhor, pode ser?”

“Sim, suponho. Vá, começa lá, então...”

* * *

05.02 horas MZ. É verdade, as famosas Examinações Globais Semanais, ou ‘minações’. Na Academia de Classe Beta eram rigorosos com as avaliações regulares do ensino ministrado. Exigiam sempre um acompanhamento regular da matéria, sob pena de se ter de repetir o semestre inteiro em caso de insucesso numa única examinação. Mas verdade seja dita, ninguém ousava não aprender realmente o que era ensinado. Ainda hoje, tanto tempo depois, os arquivos da memória armazenados no córtex cerebral lhe mostram com notável vividez os factos e feitos que fazem a História da Humanidade, tal como ficarão para a Memória do futuro os acontecimentos que terão lugar hoje, daqui a pouco menos de uma hora, quando os últimos Hereges forem silenciados de vez. Hereges... as suas ideias loucas e descabidas, a sua irracional crença numa entidade divina, a sua tendência para negar as suas próprias teses de amor e tolerância que quase varreram a vida da Terra... Como havia sido possível?

... No início de século XXI a Terra estava povoada por pessoas que, na sua esmagadora maioria, tinham uma qualquer crença em divindades e existências sobrenaturais. Por essa altura havia dois grandes blocos antagónicos e rivais, que o eram apesar de ambos apregoarem a fé num Deus único, bom, misericordioso, omnisciente, omnipresente e omnipotente. O antagonismo e a rivalidade entre esses dois grandes blocos religiosos tornaram infrutíferas todas as tentativas levadas a cabo pela comunidade mundial para tentar apaziguar a crescente tensão que alastrava pelos continentes fora, à medida que o Século XXI avançava para os seus meados. Conflitos de pequena dimensão começaram a surgir um pouco por todo o lado, sempre as culpas inexplicavelmente atribuídas ao rival. A situação começou a tornar-se insustentável quando as pessoas se aperceberam que os dois exércitos mais poderosos do mundo estavam sob as ordens de fanáticos religiosos de dois blocos que faziam uma interpretação bem acalorada dum termo inventado no século XX e que se adaptava perfeitamente ao status quo vigente até meados de 2040: Guerra Fria. Essa “Guerra Fria” das religiões começou na segunda década do Século XXI e arrastou-se durante mais de vinte anos, durante os quais nunca houve um conflito armado aberto entre ambos, mas durante os quais as armas também nunca tiveram um único momento de descanso. O crescente temor de uma aberta beligerância entre ambos, cujo número de partidários somados superava os seis biliões e meio em 2036, levou a que se constituísse nesse mesmo ano um Comité de Arbítrio Multilateral, um movimento cívico independente formado a partir de outros movimentos de menor expressão que queriam aliviar a tensão latente entre os blocos, sendo o seu único objectivo tentar sentar à mesa das negociações as duas partes do iminente conflito e ajudá-las a chegar a um acordo geral sobre os termos definitivos que fizessem com que a paz podre que minava o chão pisado por toda a gente na Terra passasse a ser um bem reconhecido e defendido por todos – todos sem excepção! Uma, duas, três, dez, vinte, trinta cimeiras, reuniões, encontros, conferências, até serviço de pombo-correio o Comité promoveu, mas nada – o fanatismo e a intolerância simplesmente falavam sempre mais e mais alto. Num mundo com quase oito biliões de seres humanos, dos quais cerca de seis biliões vivem abaixo do limiar da pobreza, se calhar é fácil as pessoas deixarem-se levar por ideias irracionais e crenças numa qualquer entidade sobrenatural que as vai recompensar pela sua pobreza, pelo seu sofrimento, pelo seu sacrifício mais tarde ou mais cedo – com muita probabilidade, o mais tarde possível: depois da morte. Oh, e como é fácil arrastar essas pessoas para as hordas da loucura quando se usam esses mesmos argumentos para lhes pôr à frente um inimigo que não só põe em causa a veracidade das suas crenças, como ainda por cima lhes “rouba” ideias e as torna extremamente parecidas com as suas para delas fazer leis, princípios, dogmas, postulados, mandamentos, preceitos a cumprir para o bem, não das pessoas e do seu “aqui e agora”, mas sim para o bem da divindade que adoram e que se sente ofendida pela existência do grupo religioso rival – que, obviamente, urge destruir, para assim aplacar a sede insaciável de sangue da sua perfeita divindade do amor e da tolerância...

Os esforços do Comité foram hercúleos, mas em vão. O facto de ambos blocos terem começado os seus próprios projectos de colonização de Marte e de “levar a sua fé até à imensidão dos céus e para lá dela, até ao próprio Deus” para uns e para os outros “expandir a luz da Palavra pelos quatro cantos da Criação Suprema”, causou imenso atrito entre eles e, não raras vezes, escaramuças no espaço ainda pouco explorado e, decididamente, pouco seguro. Muito pouco seguro. E foi precisamente um recontro pouco amigável entre dois módulos espaciais que transportavam colonos para Marte, aliás, para a mesma área de Marte, aliás para exactamente o mesmo ponto de aterragem e precisamente ao mesmo tempo em Marte (mais que logicamente cada um com milhares de obedientes ovelhas de cada um dos dois grandes rebanhos religiosos), que deu início ao mais que aguardado (e mais que muito temido) desastre: a 16 de Janeiro do ano 2041, quando os relógios indicavam as 09h47 naquele que viria ainda a ser conhecido como Meridiano Zero, a Guerra das Religiões foi deflagrada. Guerra pura e dura, total e mundial, desapiedada e descontrolada. Nada nem ninguém lhe ficou imune, não só as ovelhinhas dos dois blocos beligerantes, como também os que tinham optado por se juntar ao falhado movimento pacificador do Comité e todos aqueles que nunca tiveram qualquer tipo de opinião nem interesse sobre o que quer que fosse que estava em disputa entre os dois grandes rivais religiosos.

* * *

05.14 horas MZ. Mais um relatório instantâneo enviado por uma das irrecuperáveis sondas de superfície, mais uma jazida de minério identificada. Mas desta vez o aval é negativo. Não se trata de taranídeo, mas de um outro metal que não apresenta qualquer tipo de valor, apesar de, no passado, já ter tido uma grande procura na Terra. Chamam-lhe ouro. Curioso, esse era o nome do primeiro túnel espacial aberto depois do acidente com o cometa, como é que se chamava? Ah, sim, Lemur! O acidente ao largo de Marte, no fim da Guerra...

...Foi em Outubro de 2042, exactamente um ano depois do fim da Guerra das Religiões, que o primeiro túnel espacial foi oficialmente inaugurado. Deram-lhe o nome de “Novo Portão de Ouro”, o que vem provar que o ouro deveria mesmo ter muito valor naquela altura. O facto de a inauguração ter tido lugar no dia 3 de Outubro de 2042 esteve muito longe de ser obra do acaso. É verdade que os cientistas (que pelos vistos na altura ainda não eram formados na Academia de Classe Alfa... se calhar porque ainda não existia a Academia de Classe Alfa...) demoraram quase um ano a perceber como funcionava o túnel aberto acidentalmente no episódio com o cometa Lemur, mas as autoridades fizeram questão de adiar a inauguração cerca de três semanas para esta coincidir com a data do fim da guerra. O fim da Guerra das Religiões, a mais mortífera que alguma vez assolou a Terra... ou melhor, a Humanidade, porque esta guerra começou e acabou fora da Terra. Mas foi na Terra que causou mais devastação. Foram levados a cabo ataques maciços com armamento biológico, de resto o tipo de arma mais usado em todo o conflito. As armas atómicas, que poderiam perfeitamente ter aniquilado toda a vida em questão de horas, foram muito bem anuladas pela acção do Comité que, durante o conflito, desempenhou um papel importantíssimo no que ao atenuar das suas repercussões diz respeito. Conseguiram desenvolver um programa pirata que impedia as armas nucleares de explodir. Ainda assim, cerca de uma dezena foram bem sucedidas no seu intento explosivo e cumpriram o seu objectivo assassino. O que não foi feito por doenças geneticamente manipuladas nem por detonações atómicas, foi-o por ataques aéreos, bombardeamentos pesados, chuvas de mísseis convencionais, incursões terrestres de infantaria, barragens de fogo naval e até mesmo pela luta corpo a corpo, quando não por ataques suicida. A fome encarregou-se do resto. Ao fim de quase oito meses de conflito, quando as condições de sobrevivência na Terra obrigaram os grandes chefes dos blocos beligerantes a procurar refúgio e campos de batalha no espaço, especialmente entre a Lua e Marte, quando já se contavam cerca de cinco biliões de mortos, vítimas directas do conflito, descobriu-se que o cometa Lemur, que estava a atravessar a Cintura de Asteróides, iria colidir com Marte e, inevitavelmente, destruir o último local de esperança para a sobrevivência e reconstrução da espécie humana, sempre e desde que se conseguisse furtar à ceifa da Morte empunhada pelas mãos assassinas dos fanáticos religiosos alguns exemplares para continuar a história...

Com o conflito à vista, o Comité fizera os possíveis para enviar tanta gente quanta pudesse para a suposta relativa segurança das, ainda assim, pouco seguras colónias marcianas. É claro que, no princípio da guerra, apenas queriam ir os que não estivessem directamente envolvidos no esforço bélico do conflito, pelo que, se fossem trezentos milhões de refugiados os que debandaram para Marte, já não era mau. Curiosamente, ou talvez não, o planeta vermelho onde a guerra tinha começado acabou por se tornar no local mais seguro para se estar no decurso das hostilidades, porque as duas colónias marcianas de religiosos em vias de estabelecimento haviam ficado desertas, pois os seus ocupantes haviam rumado de volta à Terra para aí melhor defender a carnificina exigida pela sua fé. Lógica distorcida a todos o níveis, não haja dúvida! Mas por volta de Setembro de 2041 assistiu-se a uma debandada geral para o espaço. A febre homicida dos envolvidos assim o impunha. Curiosamente, o momento da transferência do conflito para o negrume do espaço e a perspectiva de transformar Marte, também ele, num possível campo de batalha, coincidiu quase perfeitamente com a descoberta da trajectória do cometa Lemur, em iminente rota de colisão com o planeta vermelho. Isto foi, para grande espanto e surpresa do Comité, que se preparava para tentar resolver sozinho este dificílimo desafio, tido por grande parte dos radicais religiosos como um sinal da entidade divina (cada bloco com a sua) de que o Fim do Mundo se aproximava, o que lhes exigia, ou o sacrifício máximo da própria vida para garantir a continuação da Grande Obra do Senhor (entenda-se, continuação da espécie humana enquanto conjunto de seres vivos), ou a revelação de que apenas o seu grupo sobreviveria a este ‘santificado e sagrado’ conflito, sendo que a aniquilação do ‘inimigo’ seria levada a cabo pelos próprios crentes e a divindade levaria a cabo a extinção dos que nem eram crentes, nem eram inimigos, em Marte. Ora, como em pouco mais de oito meses já lá iam mais de cinco biliões de mortos e nenhum dos lados se via particularmente protegido dos ataques do inimigo pelas asas invisíveis mas indestrutíveis da justiça divina (verdade irrefutável que cada um dos blocos jurava ter-lhe sido adiantada em primeira mão pela própria entidade – se bem que uns diziam tê-la recebido numa sexta-feira, os outros num domingo), uma muito pouco esperada epifania fez luz nas obscuras mentes dos líderes de um e outro lado. Assim, cada um dos blocos resolveu meter os seus mais altos dignatários – e mesmo os seus mais amados líderes! – dentro de naves suicidas que lançaram de encontro ao cometa, sem dizer nada a ninguém, com a esperança de que a sua divindade se compadecesse do seu rebanho mediante tamanho auto-sacrifício e lhe outorgasse a vitória final. O que nenhum dos lados sabia era que, por um lado, o Comité tinha conseguido desenvolver um projecto eficaz que consistia no bombardeamento cirúrgico do cometa, fazendo com que este se dividisse em 15 pequenos bocados e que, fruto do impacto das explosões, acabariam por assumir uma trajectória diferente; por outro lado, os que sobrevivessem iriam ter tanta ajuda da sua divindade para derrotar o inimigo como a que um tubarão tem de uma foca para pôr a toalha de jantar na mesa... Resultado: no dia 3 de Outubro de 2041, num espaço de apenas três quartos de hora, duas naves, cada uma delas recheada até à escotilha da ‘crème de la crème’ dos Senhores da Guerra, estatelaram-se violentamente contra o cometa Lemur, arruinando grande parte do plano do Comité para resolver o problema. Em vez disso, o bombardeamento acaba por provocar uma reacção de explosões em cadeia no interior do cometa e, no lugar dele, aparece um estranhíssimo buraco com uma tonalidade avermelhada, aparentemente flamejante, mas sem qualquer indício de combustão. Epílogo: os religiosos que sobram decidem que a guerra já não faz sentido e dão-na por terminada, tendo inclusivamente uma boa parte deles acabado por renegar os seus ideais religiosos e aderido ao que viria a ser conhecido como Filosofia da Razão; os restantes continuaram a abraçar a sua fé, mas a fé que sobreviveu à guerra foi uma só – os anteriores inimigos abraçavam-se agora como Irmãos, unidos na glória misericordiosa do Deus único que os havia salvo por igual da grande matança. O Comité, por seu lado, assumiu o Governo, não só da Terra, mas de toda a Humanidade. Assim que foi possível, estabeleceram numa das áreas do Planeta Azul menos afectadas pela devastação do conflito aquela que é ainda hoje a sua capital, Pangaea, a cidade onde se encontra o Conselho Global e por cima (ou por baixo, tanto faz) da qual passa o Meridiano Zero, geralmente conhecido como MZ. A hora do Meridiano Zero é, aliás, a hora oficial em todo o Universo, independentemente da hora local seja onde for – assim sabe-se sempre o que era suposto uma pessoa estar a fazer se estivesse em casa, em vez de estar a milhões de anos-luz à procura de jazidas de taranídeo. Se por acaso fossem 05.14 horas MZ, por exemplo, seria suposto estar a dormir e não a trabalhar. Enfim...

* * *

“...Ah, então a caça aos Hereges só começou mais tarde, não foi logo no fim da guerra!”

“Exacto. Aliás. No fim da guerra ainda não se lhes chamava Hereges. Na verdade, não se lhes chamava nada em especial; eles é que se auto-intitulavam ‘Os Crentes’. Imagina só!”

“Realmente, é preciso ter lata...”

* * *

05.36 horas MZ. Já falta pouco para acabar de circum-orbitar esta esfera flutuante no espaço cada vez mais parecida com um rebuçado recheado de taranídeo. Depois já pode recolher à nave-mãe, a 950 milhões de quilómetros. Nada de especial, uma viagenzita para duas horitas. É verdade que o seu módulo espacial está feito essencialmente para flutuar e fotografar com calma, precisão e paciência, não para andar pelo espaço fora feito carapau de corrida (há séculos que se usa esta expressão, mas subsistem sérias dúvidas que alguém fora do círculo das elites científicas saiba sequer o que é um carapau...). Aliás, até se pode considerar uma velocidade altamente razoável, tendo em conta que é uma deslocação real através de uma distância real, e não um salto dimensional através dum túnel do espaço. Mas sem as dobras nas três primeiras dimensões da realidade proporcionadas pelos túneis, nunca teria sido possível chegar tão longe em tão pouco tempo. E pensar que tudo começou acidentalmente, quando o cometa Lemur explodiu ao largo de Marte...

...O cometa Lemur era um cometa exterior, que detinha uma órbita estranhíssima e totalmente desconhecida. Descoberto apenas em 2040, concluiu-se que apenas fazia uma aproximação ao Sol a cada 65 milhões de anos, ignorando-se totalmente por onde andaria entre aproximações. O facto é que quando se provocou a explosão do cometa, este acabou por sucumbir a uma série de reacções em cadeia que o volatilizaram completamente, aparecendo no seu lugar o que viria a ser conhecido como o ‘Novo Portão de Ouro’, o primeiro túnel do espaço. Aparentemente Lemur continha milhões de toneladas de taranídeo no seu interior – mais tarde veio a descobrir-se que este é um mineral bastante comum no Universo; inexplicavelmente, no Sistema Solar apenas se encontra em Plutão e Ceres – que, ao atingir a exacta temperatura de 1.099,7ºC e encontrando-se numa proporção de 9 átomos para 1 de hidrogénio, abre-se uma fenda no contínuo espacial, na qual as dimensões de altura, largura e comprimento sofrem uma espécie de ‘dobra’. Esta dobra pode ser manipulada – como, só os cientistas formados na Academia de Classe Alfa é que sabem – e abre-se, algures no espaço (sendo que esse ‘algures’ pode ser pré-determinado através de cálculos exaustivos) uma outra abertura que funciona como saída do túnel. E assim o Ser Humano tem ocupado grande parte do seu tempo nos últimos dois séculos, lançando-se nas profundezas do Espaço com o intuito de descobrir se estamos ou não sozinhos nesta existência. E para garantir que vai poder continuar a procurar vida cada vez mais e mais longe, mobiliza-se uma quantidade enorme de meios para encontrar taranídeo cada vez mais e mais longe, para poder abrir túneis cada vez mais e mais longe, para continuar a procurar vida cada vez mais e mais longe...

Para além da caça ao taranídeo que permita ir procurar vida, houve uma outra questão que manteve as mentes pensantes ocupadas durante mais de cem anos – até hoje. É claro que a questão em causa é a da caça aos Hereges, não para procurar vida nova, mas para executar a pena de extermínio a que foram condenados todos os criminosos religiosos do Universo, depois do atentado terrorista de 2113...

* * *

05.55 horas MZ. O trabalho está quase concluído. Pelo menos, este trabalho está quase concluído. Mais cinco minutos e o módulo acaba de circundar a face nocturna da lua ‘depósito de riquezas minerais’ que tanto vai agradar à incansável, imparável e insaciável indústria expansionista da Terra. Já só falta receber o relatório de uma sonda de superfície e ‘adeus a este fim de mundo’. Entretanto, num dos monitores, a RUI vai lembrando que a execução dos Hereges está agendada para daqui a breves minutos. Enquanto se espera, surge no monitor uma vez mais a face sisuda mas sorridente do orgulhoso coronel que levou a cabo e com sucesso a missão de captura dos terroristas, explicando na primeira pessoa a incrível aventura que custou a vida a três dos seus melhores operacionais, e outros pormenores de índole psico-geo-estratégica, com interesse apenas para quem sofre de paralisia cerebral há um par de dias. Quem vai sofrer de paralisia cerebral para a eternidade, não tarda nadinha, são os terroristas. Assassinos! Estúpidos criminosos! Mais uma vez, a crença religiosa numa entidade divina a ditar comportamentos...

...No fim da Guerra das Religiões, em 2041, instituiu-se a nível global uma doutrina completamente assente nos postulados básicos dos Princípios da Razão, chamada Filosofia da Razão. Os Princípios da Razão são muito simples, e vigoraram vitoriosos até hoje: “não existe metafísica; as práticas religiosas são uma expressão inferior de doutrina social; o único Ser Superior em todo o Universo conhecido é o Ser Humano, por ser senhor duma consciência inteligente e insuperável. A crença em divindades é errada e perigosa, pelo que é largamente desaconselhada e combatida intelectualmente”. Os crentes religiosos que sobreviveram à guerra reuniram-se num só grupo e denominaram-se ‘Crentes’, por oposição a todos os que abraçassem a Filosofia da Razão. À medida que o tempo foi passando, os ‘Crentes’ foram-se fechando no seu círculo, isolando-se do resto do mundo. Um clima de desconfiança e descrença foi ganhando terreno entre os defensores da Razão, que tinham muito presente os horrores provocados pelos religiosos ao longo dos tempos. Essa descrença foi-se transformando em desprezo, até ao ponto em que os ‘Crentes’ deixaram de se sentir bem-vindos na Terra e partiram em busca de uma nova casa. Até aqui tudo bem. O problema surgiu quando os religiosos, crescentemente fanáticos, ameaçaram imiscuir-se nos assuntos da Terra se a equipa de cientistas do Doutor Karkary continuasse as suas experiências com o genoma humano. Indiferentes às ameaças, os cientistas anunciaram em triunfo que tinham acabado de ‘corrigir a anomalia natural que acompanhava cada Ser Humano desde a sua concepção’ e que o impedia de viver naturalmente mais de 100 anos; com base na sua descoberta, a ‘correcção genética’ iria permitir a toda a gente viver até aos 200 anos! Estava-se então em 2113 e não durou muito até que os fanáticos religiosos fizessem sentir bem sentido o seu repúdio pelo que consideravam ser a ‘manipulação suja e pecaminosa da obra divina perfeita’. Assim, dotados de um elevadíssimo sentido de corrigir o que está mal e provando que a História se repete sim senhor, lançaram um hediondo ataque terrorista sobre Marte, matando milhões de colonos e destruindo grande parte das infraestruturas do planeta. Não havia defesa possível porque não havia razões para acreditar que se fosse dar semelhante ataque. A resposta não se fez esperar: o Conselho Global declarou unanimemente todos os autodenominados ‘Crentes’ como ‘Hereges da Razão’, por renegarem a verdade irrefutável da lógica racional e por incorrerem em actos beligerantes e belicistas contra inocentes desprevenidos. Além disso, considerou a sua heresia como um perigo eterno, se deixado livre e por combater. Desse modo se aprovou o decreto que condenou inapelavelmente ao extermínio todos os Hereges da Razão, para evitar que alguma vez voltasse a haver um conflito motivado pela intolerância de cariz religiosa, já que ficara mais que provada a impossibilidade de coexistência entre adeptos da Razão e ignorantes fanáticos religiosos, perpétuos fomentadores de conflitos. Se não era possível levar até eles a verdade de que Deus não existe, então acaba-se com a sua heresia duma vez e assunto arrumado. Hoje, finalmente, após quase cem anos de caça pelo Universo fora, os últimos seguidores da mentira divina vão desaparecer...

* * *

Acordou repentinamente do seu sono acordado, do refúgio dos seus pensamentos abstractos, no qual estivera perdido nos últimos minutos. Olhou para os monitores da RUI e franziu o sobrolho quando reparou que um estava todo negro, sem qualquer imagem, e o outro tinha uma imagem congelada, parada, na qual estava o líder dos Hereges, imóvel, no momento em que proferira há minutos atrás as suas últimas palavras. Que se passa? As transmissões nunca tinham sofrido qualquer tipo de interrupção, fosse onde fosse – “Consigo até ao fim do mundo!”. Seriam interferências de algum tipo? Ataque terrorista a danificar a rede de retransmissores? Impossível, os terroristas estão todos presos e vão ser executados daqui a... Olhando para o relógio, são 06.01 horas MZ. Olha, então quer dizer que eles já foram executados. Isso quer também dizer que o módulo espacial acabou de sair da face nocturna da lua CTRV-5/1 há cerca de um minuto... mas então, onde está a luz do sol? Ter-se-ia enganado nos cálculos de órbita? No monitor da RUI que ainda semifuncionava, por baixo da face raivosa congelada do Herege aprisionado, numa legenda lia-se: “...assim que tombar o último servo do Povo do Senhor, as trombetas do juízo Final soarão...”. A imagem no monitor apagou-se de vez e, depois disso, só teve mais três segundos para se aperceber que a estrela CTRV já não estava onde devia e exclamou, pela primeira e última vez na sua vida, antes de o gigantesco buraco negro engolir tudo à sua volta: “Oh meu Deus...!”


João Tavares

Conto

A Pique

Hoje acordei, ouvi um barulho lá fora, ou ouvi um barulho lá de fora e acordei, talvez o tenha ouvido enquanto acordava ou mesmo acordado sem o ter ouvido ainda que soado tenha por certo. Ou quase. Que pena tenho de fazer a cara de sempre sempre sentindo a mesma alegria por no mesmo lugar de sempre sempre o ver fazer os mesmos gestos. Não me importa. A repetição não me aborrece. Repetir o aborrecimento de nunca repetir nada do que não é aborrecido, isso sim me aborrece.

Nasci vendo o chão de perto e tenho pela terra um gosto que não vejo nos outros, a terra é como quem diz, até porque molhada é chata… e fria e… pegajosa e… molhada! Sim, molhada, por isso não gosto dela a não ser quando é fresca. Inexplicavelmente, ora é fresca ora é molhada, o que é uma chatice pois nunca sei com o que conto. Há pedaços de terra muito duros, não faço ideia porque assim são, mas nem parecem irmãos dos outros, têm uma textura diferente que me dói na pele e o meu velho olfacto não lhe reconhece cheiro a coisas boas. Ala com eles ou ala deles que para mim são corpo estranho.

Começou o dia, vivo num rodeio de coisas que em grande parte não entendo, reajo dando-me e aceitando tudo o que ele me dá. Porquê não sei, mas também não me interessa, tenho tudo o que quero, mais não quero porque os outros também têm direito. Vejo tanta gente a querer mais do que precisa para estar bem. Percebia se lhes visse sucesso, mas não vejo nada disso. É tão simples ser feliz, se me perguntassem o que é preciso para o ser dizia logo, é isto, isto, isto e isto, se bem que às vezes até gosto quando a coisas se passa assim, assim e assim. Sou simples, simples é o mundo se não olharmos para ele com os olhos trocados que é como eu olho muitas vezes para o que me mostram entre mãos em frente ao meu nariz sem que lhe possa tocar até ordem em contrário.

O dia escureceu, nem dei por ela, é possível que tenha adormecido neste canto que é meu, talvez por ninguém o querer exceptuando eu. Não é que tenha o vício do sono, apenas gosto de ver as pálpebras por dentro. Vejo igualmente tudo, quanto mais não seja com os ouvidos. Alto! Orelhas a pique que alguém chegou, abro os olhos para ouvir melhor e bota dançaria até a língua estar devidamente pendurada ao peito! O cansaço deitou-me outra vez, é estranho como não me passam cartão mas, por saber que aqui estão, estou bem e confortável. De vez em quando lá vão falando para mim de uma maneira de que gosto ainda que não entenda o que dizem. Acho que é sempre o mesmo, mas quem sabe um dia compreenda. Este dia é como aquela pratada. Sempre igual, sempre boa, sempre novidade. Às vezes penso “se eles sentissem o que sente meu coração quando os vejo não estariam tantas vezes tristes e de pensamento no que aqui não está. A alegria é agora e com o que se tem, que é muito comparando com… quem assim não o pode dizer. Gosto tanto de ver as pálpebras por dentro que muitas vezes até as vejo mesmo que não queira, como está a acontecer agora. Acho que me vou, rápido, rápido para amanhã ouvir um barulho lá fora…


André Faia

Um pequeno texto

Morte, prematura Morte.

Vi a morte esboçada no parapeito da janela. Sentei-me um pouco, ao de leve na cama, desconfortável, talvez, com a improvável esperança que a sombra das paredes do quarto me resguardassem da luz. Virei o rosto, impelindo o olhar a atravessar o chamamento do reflexo que cobria o espelho. Lamentei a ausência da alma em mim, dos sentidos que escorriam, preguiçosamente, no meu pensamento. Rebusquei, então, as palavras, as ideias, os sons, os tons certos com os quais prestar atenção. Tu, imóvel, limitavas-te a examinar os meus gestos.
Caminhei sobre o manto desprendido pela morte. Apenas pressentia a sua sombra, um pouco mais adiante. Ali, ali mesmo no canto. Sente-la? Dos teus lábios fendidos notei um leve rumor de medo. Silenciosa, pálida, sequestravas o pêndulo das horas inadiáveis. Aproximei-me. O gelo tinha-se apoderado do teu corpo. Estremeci. Tentei acalmar a tua face, em lágrimas. Mas a angústia tinha já nidificado no teu jovem retrato. Esperei sentado a teu lado, até que o esquecimento se recompusesse. Eminentemente sós, abandonados à ignorância de que o fim nos espiava dissimuladamente. De repente, um vulto balanceou do nada sobre nós e apartou-me de ti para sempre.


Reis Neutel

Poesia

O que eu quero
- É sair deste círculo
De saber nada saber
Não saber sequer tal
Quero a ignorância vã
Aquela que não sabe de si
Não aqueloutra que pensa saber
O que os outros anuem irreflexo
O que eu quero
- É sair dos métodos
Nem sequer do não ter método
O rumo incerto e dúbio da dança
Mais do que isso – além do além
Do salto do bailarino
Mas sem o grafar, sem o pensar sequer
Sem palavras ocas
Não…
Não quero impressões estéreis
Quero fingir insciente
O que eu quero
- É aguçar ângulos
E vértices de pensamento
Ao não saber absurdamente nada
Quero as ancas daquelas meninas
Não os cérebros prodigiosos
Não os filósofos cheios de França
Não os velhos jarretas e bafos de livro
O que eu quero
- É sair d’aros d’entendimento
E recolher-me a espirais de tédio
Um mundo de gente a rir
Dos meus opróbrios, do meu Álvaro de Campos
E do seu «Arre, estou farto de semideuses!»
Eu
- Do que estou farto
É de estar farto de me enfartar
E de m’obstruir orbes que não conheço
É porque eu não quero ser o outro
Mas também não quero ser eu
Que não quer ser o outro
Outrossim
Quero tudo ou nada
E nada e tudo simultaneamente
O que nos leva à velha e escatológica questão do Sr. Domingos
«Mas, afinal, o que é que tu queres, caralho?»


Leonel Ferreira



PONTO DE EBULIÇÃO

E se houvesse o ribombar de foguetes
Do outro lado do universo?
Uma festa para a qual não fomos convidados
E se, sem que nós o soubéssemos
Todas as ideias nos não pertencessem
Mas fossem ideias dum outro?
E se nós próprios, em carne e espírito
Fôssemos não mais que ideias d’ outro
E essoutro fosse uma ideia entre ideias
Todas pensadas por outro
Um ente existindo entre biliões
Ínfimos entre o cosmos
Microrganismos dançando num pedaço de madeira
É que nós podemos ser pensamentos
Pensados por um pedaço de madeira
Não a nossa madeira
Porque nada seria nosso
Mas a madeira que não conhecemos
Porque, afinal, nós nada podemos conhecer
Que não seja tão-só vontade da madeira
E isto nem sequer é absurdo.
Porque somos nada,
Distantes da necessidade e da contingência.
E o Ser é deveras tudo?
Se fôssemos pensamentos d’ outro
Que consolação encontraríamos no Ser
No ser o pensamento d’outro?..
E se o outro nos pensa
Acaso quer que nós o saibamos?
Eu próprio tenho pensado entes
E tenho-lhes dado consciência de pensamento
E tenho fingido que eles acreditam existir
Amanhã destrui-los-ei em ficção
Quando vou ao café
Entretenho-me a fazer música
Entre a colher e a chávena
E isto é tão nada quanto pensar
A Lógica e a Dialéctica
É tão nada quanto a Revolução Francesa
E aquele amor que tivemos na adolescência
É tão nada quanto a Mecânica Quântica
E o foguete que estala nas festas de verão
Nem sequer é relativo
Porque não há relatividade num pedaço de madeira
Que nos pensa a relatividade
Por isso me não incomoda o sofrimento alheio
Nem me comove a música de Beethoven
Nem me ofende a barbárie e o inumano
Nem quero ser Médico Sem Fronteiras
Nem me indispõe a pneumonia
Nem que eu morra e morram todos comigo
Nem sequer o eu ser um pensamento
Pensado por um pedaço de madeira
Me tira o sossego de ser nada
Nada me incomoda
Porque não sou senão pensamento
Dum pedaço de madeira
Deus não nos há-de consolar
Não nos há-de pedir contas
Apenas a madeira é filha de Deus
E se Ele acaso sabe de nós – porque Deus tudo sabe
Sabe-o como nós sabemos dos invólucros de açúcar
D’abrir e deitar fora
Nada me importa
Entre eu que não existo
E o outro que me pensa que finjo existir

Leonel Ferreira




POEMA QUE NÃO APETECEU VERSEJAR


Quando acordo, dou graças por não encontrar na cómoda um revólver. É que, sob o pérfido e cáustico som do despertador, cativo do entorpecimento físico, adoentado dos olhos e vergastado pelo frio orvalhado de Janeiro, a vida deixa, completa e magistralmente, de fazer sentido.

A tristeza é de tal modo grandiosa que se constrói em mim a certeza de consciência nas coisas, as quais, até então, eu absurdamente ignorava. Nascem-me certezas de estar infeliz. Invejo a sorte daqueles cobertores que hão-de permanecer, bem-aventurados, narcotizados pelo sono cálido das manhãs; os sonhos que aqueles anjinhos de porcelana hão-de fantasiar, enquanto me abandono, aos tropeções, pelas escadas das ruas da cidade; a sorte dos tapetes, estendidos ao comprido enquanto atino angústias de permanecer vertical. Chego a invejar a sorte dos cadáveres, pelo menos de olhos fechados e não sentindo esta dor – sim, porque de uma dor física e absurdamente material se trata – que me flagela a carne e o pensamento.

É que se me dessem um revólver naqueles momentos em que acordo…

Morre-se muito neste mundo. E se a morte bafeja a tanta gente que não quer morrer, porque não cai sobre mim, implacável e súbita, para que eu, enfim, possa continuar dormindo? Isto é absurdo, bem o sei. Mas mais absurdo é o acordar não dar vontade de morrer. E se não se encontra já o sentido que baste no estar feliz, o despertar para a vida é a nulidade metafísica, o choro do bebé que acaba de nascer porque o tiraram dos cobertores da natureza. O trauma da nascença não é a vida nem o mundo, nem o mar nem o infinito; é o ter que deixar os cobertores…


Leonel Ferreira

Poesia

Sem a cor dos dias

Debruço-me sobre a longitude deste mar infinito
Desvio o olhar sobre o embalo do esquecimento
Retendo a imagem daquele menino
Lançando-se, distraído, num arremesso contínuo.
Por mim — entre mim
Nada existe que eu já não conheça
Ou, pelo menos sobre a qual
Eu já não me tenha cruzado anteriormente.

Às vezes penso que nada vale o sacrifício,
Que a ordem das coisas,
Que o desígnio de Deus
São imutáveis
E a minha pena já mais nada pode colorir
Senão a máscara da minha ausência.

Possivelmente, sou, apenas, uma projecção de mim mesmo,
Um grito a esvair-se no atrito do palco
Um pedaço do mundo
— da minha máscara rasgada
Desvendando o rosto desfigurado
No vórtice da incerteza.

É tudo que eu tenho
As lembranças adiadas,
Sonhos interrompidos,
Olhares clandestinos sobre os contornos da existência.
Sou tudo que possuo
E que algum dia repousará no silêncio do palco.

Mas, quem me dera poder achar o caminho
Sem deixar de tropeçar mais — em mim.


Reis Neutel



O Último Delírio Rosa

Entre nós e a sombra muda a vertigem do rosto,
O olhar sobre as coisas,
O derrapar das mãos sobre o papel de ausência,
Um quase segredo por descobrir nas sílabas átonas do amor.
Todas as palavras nuas a transbordarem no limiar da página
À espera de sermos nós mesmos
Na estância de cada verso anónimo
Que ficou por escrever
A poesia é essência da alma
Arte da palavra
Prolongar o silêncio antecedendo
A margem do destino.
Acordas retendo o perfume dos suspiros
Escondes a lâmina com que comprimes
os dias de outros dias,
margens decalcadas da alma num sonho por sonhar
Os dias de sempre ao arrasto de uma oportunidade
Seremos os delatores do plano de Deus?
O amanhã matou-nos
Em elucubrações fatais
E os teus lábios lembram-me o acordar do mundo,
O ardor de quando trespassamos o real das coisas
Nos tornamos os amantes à beira-rio,
A essência lírica
Dos instantes distantes
Que se curvam na palma da alma
Perante a silhueta de um beijo.
Lembro-me daquele tempo
De equiláteros desejos
Da geometria dos lábios
Do perfume ao qual cedi
Para puro deleite dos sentidos
Sonhávamos despertos nos contornos de fronteiras ideais
Éramos vertigem espargindo as cinzas no espelho,
O espelho da nossa existência
Fluíamos trespassados no gume do tempo
A centímetros da presença ausência
De vozes erguendo-se no limiar da dor
Somos alquimistas do amor
Astros entoando
A luz do firmamento
Anjos peregrinos ao alcance das estrelas
inextinguíveis na brecha da memória.
Seja-nos pemitido a vida
Que a morte — essa — já não nos escapa.


Reis Neutel



The chamber of God

It’s easy to dream,
To reach the heart
Still sleepin’ tight
And keep us far off the ground.
Imagine...
If God should part
Quiet and witty
And I was only His prey
To play.


Reis Neutel

Poesia

( poema de um embarcadiço a uma ilha de azul flutuante )))))

que império este tão raro
mundo império que olhar meu contempla.
me goteja do ser toda ilusão
e nascem espinhos – no chão – de sua criação.
Vibram sonoras, canoras,
trombetas de instante final
e o que senti - tudo aquilo -
se me despiu perante um níveo isto,
singelo de perene emoção.
e a ti me dou, em ti me encontro
meu viver foi esperar por ti –
- só aqui, apenas assim,
de ti arde meu coração

Rui Gonçalves Miranda


] ] acho da morte uma surpresa infantil / como de ser nos estranha o respirar –

. coração estrangeiro / coração de brincar [ [


E num instante contínuo
meu corpo já não o é
- estas mãos, estrangeiras,
olham, absortas e fundas,
do que sob o transparente
emerge sem o fitar.
falo. meu coração tem o nome
de águas que morrem,
e o que era sangue partiu já,
de sobre para nenhum lugar.


Rui Gonçalves Miranda


irmãos são os cães da estrada / que se alimentam do que acontece - irmãos são os vãos de escada / porque suportar é esconder - irmãos não são pr’ aqui chamados / irmãos só no morrer.


Rui Gonçalves Miranda



queixas a um bárbaro escravo


Porque vi que te amava por fim
sei já que amar não é para mim
e que amar só pode ser - como assim -
de maneira singular amar-te a mim
Porque de mim sei no amor e pela dor,
o que dado é ao provido amado;
sei o ter no amante um só criado
pelo esforço grande de o criar.
Amar-te não preciso porque o amor to dou.
mas amar só a mim me amo,
- de amar-te estou abdicado -
Porque o que ama saindo de si
p’ra casa volta desalojado.


Rui Gonçalves Miranda



romanceiro

O amor não sabe o que fazer
coloca as mãos nos bolsos e finge não saber por quê
Assobia devagar,
e um piano morre lento o seu tocar
e o amor crê-se enfim vibração infantil
dessa morte tão sempre igual
e o amor invade a janela e recolhe o mundo
(os joelhos suportam o seu olhar)
O amor sussurra um encolher
e o amor adormece devagar
O amor finge não procurar_o amor finge não acordar_o amor não sabe o que fazer
O amor retira as mãos dos bolsos
sem moedas para a solidão
e o amor, que está cansado,
encosta-se por um pouco
no peitoril da imensidão
e o amor não tem pousio
barbeia-se num pautado trautear
O amor não tem idade
mas a amar morre devagar
O amor esquece o antigo
quer ser novo e multiplicar-se
quer-se menino e, de soslaio,
cria um manjerico no seu gotejar
e de rimas e cantigas
nos bolsos cria um cantar
Um que lhe finja a mentira
outra a que o entoe pelo ar
E das asas, onde as pôs
do corpo desiste devagar
e engole-se na solidão
em dedos que tacteiam pelo ar

Rui Gonçalves Miranda

Poesia

Infócono

Alguém viu a sombra?
Onde a deixei pendurada?
A gravata que não condiz
Com os sapatos
E o dia que se estende
No Planalto Abissínio.

Desfila a auto-estrada
Cónica de murmúrios
Num céu opaco de estrelas pálidas.
As pupilas não saram o verde incessante das árvores
Nas faces mergulhadas
No vazio percepto
De um impulso
Que não cessa de fluir.

Um reflexo sobre a luz
O ângulo da chegada
O chapéu de sol
E o crepúsculo dissolvido
Nos ecrãs dispersos entre si.

Filipe Monval

Poesia

Lux non feras


Anjo maldito que te escondes na bruma do sono mal curado
Devora lágrimas aflitas de névoas turvas do passado
Acorda para dentro envolvido pela frieza do vazio
E parte, quieto e parado, na estrada deserta de ti e de tudo

Maldiz com palavras de cera a luz invisível de montes ocos
Onde resplandece entornada a alvura do esquecimento
Adivinha com todas as estrelas a eternidade do momento
Em que a vida é só o que nas profundas cavernas hiberna

Caído debaixo da roda do destino com um furo celeste
Te olhas cegamente ao espelho quebrado da inveja
Queres uma vontade que nunca conheceste em altura
Sendo que as ânforas milimétricas se sublimam em conteúdos só [de si

Segredo que te deitaram pela janela da floresta das nuvens sem [fundo
E não te deixaram saber o que nem sabes que há para saber
Anjo caído que acordas no mar do brilho profundo queimado
Desiste dos nadas que te pendem ao peito e te pesam como asas

Sic damno me, murmuras entre dentes de raiva e revoltas [cuspidas
Abdicas do paraíso que sabes em prol do negro desconhecido
Atiras para trás das costas do conforto a solidez da pluralidade [fugaz
E abraças em braços nus de esperança o calor falso da queda

Em pensamentos rachados de covardia derretida e duvidosa [certeza
Te lanças para sempre na órbita oblíqua do nada manchado de [torturas flamejantes
Pesadelo galopante a milhões de náuseas de abandono do lar [eterno por segundo
Estala-te na cabeça de seres senhor absoluto do pandemónio que [altivo reges

Serpenteante veneno que sibilas tentação à matriarca dos [monarcas deste mundo
Orgulho da repetição que fazes ecoar caidamente pelos cantos [jardinados
Promessas suspensas por fios de coração tingido de arbítrio [ofuscado
Ícone soturno de dores vomitadas por prazer em nove espirais [velado.


João Tavares




Constato

No quentinho da lareira de Morfeu
Durmo em cobertores de lã
Enquanto lá fora, no mundo acordado
O frio ou o calor,
Seja ele qual for,
Fazem do tempo
O que o Tempo quer.

Na alvorada da frescura orvalhada
Desperto em sorrisos de seda
Enquanto em volta, o mundo agitado
A pressa e os ditames do relógio,
Capatazes da Rotina,
Me dão a segurança de saber
Que tudo está bem
Porque está onde o deixei.

Seguro nas mãos devotas
O cajado da certeza
De cumprir com o destino
Que eu mesmo me vou fazendo
Dia após dia
Dia após dia
De acordo com as regras.

Espelho diante de mim
Porque me perguntas
O que não te sei responder?


João Tavares

Poesia do lugar

NOBRE CIDADE

Chaves, cidade linda e adorada
Que no coração tens tanto a dizer,
Pena é teres estado tão calada
Tantos anos sempre a empobrecer.
Mas quem teve a ideia abençoada
De tratar do comodismo vencer?
Nobre gente, como só aqui há,
Uma nova terra edificará.

Com uma história tão rica e marcante,
Tuas gentes se podem orgulhar
De terem sido uma peça importante
Para o reino se poder conservar
De qualquer invasão beligerante,
Ou meramente para conquistar.
Graças a Deus, tudo foi pelo melhor
Deste país, gozamos seu esplendor.

Antigos monumentos se levantam
Simbolizando dias de glória,
Onde todos os Flavienses proclamam
Momentos memoráveis de vitória,
Sobre os oponentes que aqui passaram
Incluindo os mais terríveis da História
E os próprios turistas ano a ano,
Agradecem a Flávio Vespasiano.

Tamanha fonte de Vida esperança,
Paz, sossego, liberdade, emoção.
As termas foram deixadas de herança,
As águas limpas do Tâmega já lá vão.
Nesta alegre e harmoniosa bonança
E com a gastronomia da região
São fontes do divino progresso,
Que nesta poesia enalteço.

Dos galegos vizinhos e irmãos
Chegam-nos muitas histórias de encantar.
Tamanhas façanhas com as próprias mãos,
Obras que fazem mortos levantar:
Camponeses viúvas e órfãos
Que fazem pelo conforto aumentar.
Assim, já está erguida a “Autovia”,
Coisa que aqui jamais se faria.

Por isso temos que tomar juízo
Que os horizontes são p’ra engrandecer,
Contudo, mais uma vez aviso
Do trabalho necessário a ter:
Terá que estar o povo conciso
Que iremos lutar até morrer:
Reivindicamos maiores facilidades
Mesmo às mais altas autoridades.

José Larouco

Citações

“A ciência é o grande antídoto contra o veneno do entusisamo e da superstição”.
Adam Smith (1723-1790); economista escocês.

Leituras



“Entre os lençóis” é um pequeno livro de contos da autoria do autor inglês Ian McEwan, publicada pela Editora Gradiva.
Nesta obra, McEwan, vencedor do prémio Booker Prize, em 1998, ao longo de sete pequenos contos, guia-nos pelos mais perversos corredores da mente humana, em complexas tramas que tocam, por vezes, a surrealidade, fundidas nos pesadelos e fantasias dos diferentes protagonistas.