domingo, janeiro 07, 2007

Poesia

O que eu quero
- É sair deste círculo
De saber nada saber
Não saber sequer tal
Quero a ignorância vã
Aquela que não sabe de si
Não aqueloutra que pensa saber
O que os outros anuem irreflexo
O que eu quero
- É sair dos métodos
Nem sequer do não ter método
O rumo incerto e dúbio da dança
Mais do que isso – além do além
Do salto do bailarino
Mas sem o grafar, sem o pensar sequer
Sem palavras ocas
Não…
Não quero impressões estéreis
Quero fingir insciente
O que eu quero
- É aguçar ângulos
E vértices de pensamento
Ao não saber absurdamente nada
Quero as ancas daquelas meninas
Não os cérebros prodigiosos
Não os filósofos cheios de França
Não os velhos jarretas e bafos de livro
O que eu quero
- É sair d’aros d’entendimento
E recolher-me a espirais de tédio
Um mundo de gente a rir
Dos meus opróbrios, do meu Álvaro de Campos
E do seu «Arre, estou farto de semideuses!»
Eu
- Do que estou farto
É de estar farto de me enfartar
E de m’obstruir orbes que não conheço
É porque eu não quero ser o outro
Mas também não quero ser eu
Que não quer ser o outro
Outrossim
Quero tudo ou nada
E nada e tudo simultaneamente
O que nos leva à velha e escatológica questão do Sr. Domingos
«Mas, afinal, o que é que tu queres, caralho?»


Leonel Ferreira



PONTO DE EBULIÇÃO

E se houvesse o ribombar de foguetes
Do outro lado do universo?
Uma festa para a qual não fomos convidados
E se, sem que nós o soubéssemos
Todas as ideias nos não pertencessem
Mas fossem ideias dum outro?
E se nós próprios, em carne e espírito
Fôssemos não mais que ideias d’ outro
E essoutro fosse uma ideia entre ideias
Todas pensadas por outro
Um ente existindo entre biliões
Ínfimos entre o cosmos
Microrganismos dançando num pedaço de madeira
É que nós podemos ser pensamentos
Pensados por um pedaço de madeira
Não a nossa madeira
Porque nada seria nosso
Mas a madeira que não conhecemos
Porque, afinal, nós nada podemos conhecer
Que não seja tão-só vontade da madeira
E isto nem sequer é absurdo.
Porque somos nada,
Distantes da necessidade e da contingência.
E o Ser é deveras tudo?
Se fôssemos pensamentos d’ outro
Que consolação encontraríamos no Ser
No ser o pensamento d’outro?..
E se o outro nos pensa
Acaso quer que nós o saibamos?
Eu próprio tenho pensado entes
E tenho-lhes dado consciência de pensamento
E tenho fingido que eles acreditam existir
Amanhã destrui-los-ei em ficção
Quando vou ao café
Entretenho-me a fazer música
Entre a colher e a chávena
E isto é tão nada quanto pensar
A Lógica e a Dialéctica
É tão nada quanto a Revolução Francesa
E aquele amor que tivemos na adolescência
É tão nada quanto a Mecânica Quântica
E o foguete que estala nas festas de verão
Nem sequer é relativo
Porque não há relatividade num pedaço de madeira
Que nos pensa a relatividade
Por isso me não incomoda o sofrimento alheio
Nem me comove a música de Beethoven
Nem me ofende a barbárie e o inumano
Nem quero ser Médico Sem Fronteiras
Nem me indispõe a pneumonia
Nem que eu morra e morram todos comigo
Nem sequer o eu ser um pensamento
Pensado por um pedaço de madeira
Me tira o sossego de ser nada
Nada me incomoda
Porque não sou senão pensamento
Dum pedaço de madeira
Deus não nos há-de consolar
Não nos há-de pedir contas
Apenas a madeira é filha de Deus
E se Ele acaso sabe de nós – porque Deus tudo sabe
Sabe-o como nós sabemos dos invólucros de açúcar
D’abrir e deitar fora
Nada me importa
Entre eu que não existo
E o outro que me pensa que finjo existir

Leonel Ferreira




POEMA QUE NÃO APETECEU VERSEJAR


Quando acordo, dou graças por não encontrar na cómoda um revólver. É que, sob o pérfido e cáustico som do despertador, cativo do entorpecimento físico, adoentado dos olhos e vergastado pelo frio orvalhado de Janeiro, a vida deixa, completa e magistralmente, de fazer sentido.

A tristeza é de tal modo grandiosa que se constrói em mim a certeza de consciência nas coisas, as quais, até então, eu absurdamente ignorava. Nascem-me certezas de estar infeliz. Invejo a sorte daqueles cobertores que hão-de permanecer, bem-aventurados, narcotizados pelo sono cálido das manhãs; os sonhos que aqueles anjinhos de porcelana hão-de fantasiar, enquanto me abandono, aos tropeções, pelas escadas das ruas da cidade; a sorte dos tapetes, estendidos ao comprido enquanto atino angústias de permanecer vertical. Chego a invejar a sorte dos cadáveres, pelo menos de olhos fechados e não sentindo esta dor – sim, porque de uma dor física e absurdamente material se trata – que me flagela a carne e o pensamento.

É que se me dessem um revólver naqueles momentos em que acordo…

Morre-se muito neste mundo. E se a morte bafeja a tanta gente que não quer morrer, porque não cai sobre mim, implacável e súbita, para que eu, enfim, possa continuar dormindo? Isto é absurdo, bem o sei. Mas mais absurdo é o acordar não dar vontade de morrer. E se não se encontra já o sentido que baste no estar feliz, o despertar para a vida é a nulidade metafísica, o choro do bebé que acaba de nascer porque o tiraram dos cobertores da natureza. O trauma da nascença não é a vida nem o mundo, nem o mar nem o infinito; é o ter que deixar os cobertores…


Leonel Ferreira