domingo, janeiro 07, 2007

Conto

A Pique

Hoje acordei, ouvi um barulho lá fora, ou ouvi um barulho lá de fora e acordei, talvez o tenha ouvido enquanto acordava ou mesmo acordado sem o ter ouvido ainda que soado tenha por certo. Ou quase. Que pena tenho de fazer a cara de sempre sempre sentindo a mesma alegria por no mesmo lugar de sempre sempre o ver fazer os mesmos gestos. Não me importa. A repetição não me aborrece. Repetir o aborrecimento de nunca repetir nada do que não é aborrecido, isso sim me aborrece.

Nasci vendo o chão de perto e tenho pela terra um gosto que não vejo nos outros, a terra é como quem diz, até porque molhada é chata… e fria e… pegajosa e… molhada! Sim, molhada, por isso não gosto dela a não ser quando é fresca. Inexplicavelmente, ora é fresca ora é molhada, o que é uma chatice pois nunca sei com o que conto. Há pedaços de terra muito duros, não faço ideia porque assim são, mas nem parecem irmãos dos outros, têm uma textura diferente que me dói na pele e o meu velho olfacto não lhe reconhece cheiro a coisas boas. Ala com eles ou ala deles que para mim são corpo estranho.

Começou o dia, vivo num rodeio de coisas que em grande parte não entendo, reajo dando-me e aceitando tudo o que ele me dá. Porquê não sei, mas também não me interessa, tenho tudo o que quero, mais não quero porque os outros também têm direito. Vejo tanta gente a querer mais do que precisa para estar bem. Percebia se lhes visse sucesso, mas não vejo nada disso. É tão simples ser feliz, se me perguntassem o que é preciso para o ser dizia logo, é isto, isto, isto e isto, se bem que às vezes até gosto quando a coisas se passa assim, assim e assim. Sou simples, simples é o mundo se não olharmos para ele com os olhos trocados que é como eu olho muitas vezes para o que me mostram entre mãos em frente ao meu nariz sem que lhe possa tocar até ordem em contrário.

O dia escureceu, nem dei por ela, é possível que tenha adormecido neste canto que é meu, talvez por ninguém o querer exceptuando eu. Não é que tenha o vício do sono, apenas gosto de ver as pálpebras por dentro. Vejo igualmente tudo, quanto mais não seja com os ouvidos. Alto! Orelhas a pique que alguém chegou, abro os olhos para ouvir melhor e bota dançaria até a língua estar devidamente pendurada ao peito! O cansaço deitou-me outra vez, é estranho como não me passam cartão mas, por saber que aqui estão, estou bem e confortável. De vez em quando lá vão falando para mim de uma maneira de que gosto ainda que não entenda o que dizem. Acho que é sempre o mesmo, mas quem sabe um dia compreenda. Este dia é como aquela pratada. Sempre igual, sempre boa, sempre novidade. Às vezes penso “se eles sentissem o que sente meu coração quando os vejo não estariam tantas vezes tristes e de pensamento no que aqui não está. A alegria é agora e com o que se tem, que é muito comparando com… quem assim não o pode dizer. Gosto tanto de ver as pálpebras por dentro que muitas vezes até as vejo mesmo que não queira, como está a acontecer agora. Acho que me vou, rápido, rápido para amanhã ouvir um barulho lá fora…


André Faia