quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Conto

Atitude

A vida passava e passava, e ele nada podia fazer para impedir que a vida passasse e passasse. A vida ia passando ao de leve por ele e ele nada fazia que fosse digno de nota perante a fugacidade da vida. A vida ia tomando o seu curso e ele não tomava curso nenhum na vida. Ele chamava-se Asdrúbal Maciel e não era propriamente o tipo de pessoa que se mexe muito para o que quer que seja – normalmente o ponto alto da sua movimentação ao longo de um longo dia alapado num sofá ou num cadeirão, era o totalmente involuntário Movimento Rápido de Olhos que tem lugar durante o sono. Dizem que ele é um inútil. Dizem que ele não serve para nada. Dizem que ele é um mandrião, um preguiçoso, um passivo, um vegetal, um burro. Dizem-lhe muitas coisas, quase todas elas com o intuito de o fazer reagir, revoltar-se, mexer-se, levantar-se, explodir, arrancar, viver, sair por aí fora, mundo fora, vida fora, e fazer da sua vida algo que seja digno de se chamar vida. Outras vezes dizem-lhe isso só para o insultar. Mas quê, ele limita-se a fingir que não é nada com ele e fica-se na soleira da quietude impávida e serena do seu sedentarismo militante. Dia após dia, noite após noite, lá está o Asdrúbal Maciel muito entretido a fingir que a vida não é nada com ele, que o facto de ele estar vivo mais não é que um mero acidente de percurso do Universo. Ele dorme, e dorme, e dorme, e depois, quando já está cansado de dormir, vira-se para o lado e descansa um bocadinho. “Ah”, pensa ele, quando está suficientemente desperto como para articular pensamentos, “que fadiga esta de ir sendo enquanto se vai sendo qualquer coisa na existência”… A fadiga é, provavelmente, a companhia mais certa que Asdrúbal Maciel vai tendo desde o dia em que teve aquela trabalheira toda para vir ao mundo. Pfui! Só de se pensar nisso, até já escorre em catadupa uma fiozada de suor pela cara abaixo. E depois, é claro, lá tem ele de se virar para o lado e dormitar mais um ou dois dias seguidos para se recompor do choque.
No outro dia, no entanto, o senhor Aristides Telles, farto de ver o Asdrúbal Maciel a desperdiçar toda a vida alapado no sofá sem fazer rigorosamente nada de proveitoso nem de útil, disse-lhe uma coisa que lhe ficou a ecoar na cabeça durante muitas e muitas horas de torpor e de sono: “Asdrúbal Maciel, meu rapaz, não podes continuar a desperdiçar assim a tua vida. Tens de te levantar daí e fazer algo por ti. Tens de tomar uma atitude!” As palavras não lhe saíam da cabeça. Pensou nelas, sonhou com elas, teve pesadelos com elas, viu-as a voar à roda da sua cabeça, sentiu-as impregnar-lhe os sentidos, viu como elas se lhe apoderaram do seu ser, como tomaram conta de todas as horas da sua existência. E foi assim, num belo dia de manhã bem cedinho – aí pelas 14h45 – que Asdrúbal Maciel resolveu operar a maior revolução de toda a sua vida: decidiu que iria tomar uma atitude! Assim, ainda um pouco aos tropeções, levantou-se do sofá e arrastou-se até à porta, junto da qual descansou – mas sem adormecer!!! – uns trinta minutinhos. Mas estava decidido a não desistir, iria tomar uma atitude, a primeira da sua vida. Nada o faria desistir do seu propósito. Depois de se recompor do titânico esforço de chegar à porta da rua, abriu-a e saiu. Foi com um estoicismo sem igual em toda a sua experiência de vida que calcorreou os mais de vinte e cinco metros que o separavam da porta do café da Dona Bertilde Alecrim, no qual entrou, ofegante, encharcado em suor, o seu corpo a gritar por cada poro da sua pele que parasse, que desistisse, que se deixasse cair onde quer que fosse e dormisse umas vinte ou trinta horas para recuperar do esforço sobre-humano a que o sujeitara, ao passo que na sua mente um único pensamento, firme e inabalável, o impelia a avançar sempre mais um bocadinho, pé ante pé, um passo a seguir ao outro, sem vacilar, sem desistir, contra tudo e contra todos, ele está decidido a tomar uma atitude na sua vida e é isso mesmo que vai fazer aqui e agora, tomar uma atitude! Assim, quando a Dona Bertilde Alecrim vê o moço sentar-se na primeira cadeira que encontra, com o corpo completamente ensopado em suor, os olhos cercados dumas olheiras do tamanho de bolas de ténis, as mãos trémulas e a língua dependurada até ao queixo, vai ter com ele e pergunta-lhe:
“Então, Asdrúbal Maciel, vais querer tomar alguma coisa?”
“Vou, sim. Era uma atitude, se faz favor…”

João Tavares