quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Prosa

A “NUBE”

Os motores rompem o ar em reviravoltas trémulas e fazem-na subir ao ponto mais alto da aldeia, aos altos onde ninguém põe a vista, à excepção daquele ditosa semana em que por ali se apeia a máquina dos céus. Os motores são o orgulho daquele homem que passeia olhando o alto, sempre enfadado com as cores azuis do altíssimo, sempre dulcificado pela alegria dos seus clientes ao romper a atmosfera nos anis dos céus; no sopro multicolor que engelha os cabelos das adolescentes, lhes levanta as saias, lhes destapa as barrigas; o mesmo hálito da tarde que descompõe o cabelo dos homens de idade, que faz lacrimejar os olhos dos pequeninos; o mesmo turvo éter como se fracturado aos pedaços e aros de cristal.
Os miúdos juntam os tostões ao cobro das pastilhas elásticas que não mascaram semanas a fio, roendo as unhas durante a décima quarta jornada, a décima quinta jornada, a décima sexta jornada, a décima sétima jornada – entorpecidos pelo folar dos padrinhos, acorrem à maquina astral, de mãos estendidas para a bilheteira e afirmam que foram os primeiros a chegar, que dinheiro não é coisa que lhes falta, ameaçam que não ousem porem-lhes as patas em cima, caso contrário não respondem pelos seus actos, pela autoridade do folar. Já se imaginam no escritório do advogado da cidade, com o folar dos padrinhos sobre a secretária, puxando dum cigarro pago com o mesmo capital, demandando a justiça, a razão, a equidade, a igualdade, a máquina etérea rompendo as nuvens dum final de tarde.
Os motores continuam a fustigar o ar em polvilhos sonoros que se estendem asperamente, numa zoada aguda que se expande em espectros e espirais voláteis dançando pelo ar, pousando nos sentidos dos transeuntes. Só os miúdos dos folares dos padrinhos sobre a secretária do advogado da cidade observam a engrenagem do aparelhamento, pensando que há-de chegar o dia em que serão donos de algum automóvel sussurrando safanões mecânicos pelos trilhos da aldeia. Talvez nem fosse má ideia saltar da máquina etérea e exigir o reembolso do folar, poupá-lo durante as trinta e duas jornadas da próxima época e juntá-lo aos folares que aí virão, no intuito de comprar um automóvel usado e abusado, daqueles que o Carlos leva para as corridas de ferro-velhos e sucatas, excitando a voz das meninas mais crescidas. O Carlos haveria de ver quem conduz melhor. O Carlos arrepender-se-ia daquele ar pimpão a levantar a taça patrocinada pelo salão de cabeleireiros da freguesia. O Carlos baixaria a bola nas conversas de tasca; já não apoiaria um cotovelo no balcão, não mais esquecido da cerveja na mão esquerda, não mais levantando o indicador da mão direita, não mais arranhando propositadamente a voz, não mais balindo ao imitar a voz do segundo classificado, não mais as pausas no discurso para emborcar um gole de cerveja e molhar a garganta até os olhos se lhe gotejarem numa vermelhidão ébria.
Os miúdos dos folares dos padrinhos sobre a secretária do advogado da cidade esquecem as corridas dos ferros-velhos, sucatas e chapas quando atingem o cume da aldeia, acima do sino da torre da Igreja, e lhes é dado ver o deslumbramento mecânico que se espraia numa fila interminável de automóveis; a uns oitocentos passos diz um, a uns oitocentos e dois passos diz outro, a uns seiscentos e trinta e quatro passos diz ainda um terceiro. Quando o maquinismo desce, apertam todos a barriga, puxam e repuxam o rosto, adivinhando as rugas que hão-de vir, se Deus quiser. E ao atingir de novo o topo do mundo, apontam para aquela muralha de chapa viva, de chapa ardente. Não lhes sai palavra alguma num momento, falam todos ao mesmo tempo num outro. Primeiro a face de espanto, depois o rosto retorcido que leva as mãos à barriga – parece que o estômago fica alojado na garganta ou vai alternando de lugar com o esófago. O cheiro das folhas das árvores infunda-se pelos narizes no momento da descida, emaranhando-se no polvilho desprendido pelo sapatear estrepitoso da multidão.
Chamam-lhe «a Nube». Uma nuvem que desenha círculos no ar, esboçando aros etéreos. É uma das atracções da feira, embora se não possa dizer que é a «grande atracção», pois, tradicionalmente, os Carrinhos de Choque conquistam os cuidados da grande parte dos foliões. Não quer isto dizer que, num ou noutro ano, as coisas se não acomodem de tal forma que uma outra distracção seja considerada a mais popular, devendo-se essa reputação a causas desconhecidas e, quem sabe, fruto da contingência. Mas «a Nube» é, desde há alguns anos, uma inquestionável atracção da feira.

***

Enquanto aquele ponto negro, desenhado no Sol, ameaça vir na sua direcção, traceja o rosto assustado e une as mãos para se proteger não sabe se da luz se da possibilidade do embate. Ouve-se depois o tinir dos ferros no chão e a réplica estusiástica da plateia.
«Ao poste!»
Surpreendido com os caprichos da Física, limpa o suor que não tem na testa e bate com as mãos em sinal de protesto. O ritual, herdou-o nas tardes de domingo, a apertar as mangas do casaco do pai para não se perder no meio da multidão e a ouvir-lhe a voz grave, gravíssima, a entoar contra as mesas, cadeiras e guarda-sóis das esplanadas por onde passava:
«Não, não, o Gomes sim, o Gomes é que era!»
O Gomes poderia ter sido, mas quem o levava ao estádio era aquele guarda-redes a bater com as mãos, a esfregá-las e a cuspir-lhes, como o avô, quando dava uso à gadanha. Aliás, o som da bola a ferir as redes lembrava-lhe o desbastar das ervas sob a inclemência da lâmina; e quando estava com o avô, impunham-se, sempre, no espírito, duas possibilidades: a gadanha ferir, num impacto súbito, um qualquer animal escondido no resguardo das ervas; e o cheiro do campo de futebol ser uma reprodução muito aproximada daquele que se instilava no corpo e que levava para casa no verdete denunciador dos joelhos das calças.
A baliza da escola, essa, não tinha rede, de modo que cada equipa mantinha sempre um rapazola, metade espião metade instigador, a vigiar os alvos. Isto apesar de a utilidade destes fiscais ser mínima, visto a equipa contrária desconfiar sempre dos seus cálculos e intuitos quando gritavam:
«Entrou, entrou que eu vi!»
No caso, toda a gente viu e ouviu o lance. Bola no poste, pontapé de baliza.

Na papelaria não havia cliente mais criteriosa do que a Joaninha. Os papéizinhos amarelos e enfeitados com aqueles ursinhos grudados a um balão que nunca estoirava; as folhas balsâmicas cujo fundo camuflado desvendava, timidamente, uma menina com uma saia um pouco acima do joelho, levando o pai a exclamar sigilosamente: «Ah caralho!»; esferográficas concorrendo com a impetuosidade de bombardas napoleónicas, reunindo variadas cores emanando um odor que se lhe entranhava nos dedos; pisa-papéis cinzelados, esculpidos, esgravatados, imitando o sorriso obscuro de uma meia-lua; tesouras cujas pegas plagiavam olhos agigantados, embuçados por pestanas ameninadas e maquilhadas; anões risonhos escondendo um afia lápis cujo orifício, não se sabe se por virtudes caprichosas do destino se por lascivos intentos fabricadores, substituía o rabo em falta, levando os rapazes a rirem sempre que a Joaninha introduzia o lápis no anão sorridente; lupas com pálpebras pintadas à mão; porta-lápis desvendando complexos proscénios campestres; mil lápis de cores cuja existência o pai ignorava; marcadores, compassos, réguas, esquadros, lápis de minas e respectivos porta lápis de minas e porta minas, agrafadores, fita-cola, encadernações cintilantes e um mundo de objectos que transformavam o quarto da Joaninha num recanto florido, rivalizando, pelo menos na sua opinião, com os mais sumptuosos aposentos das mais excelsas rainhas.
E foi neste ingénuo éden-creche que a Joaninha escreveu a sua primeira carta de amor.
A importância da carta não se encontrava no ideal do amor, pois nem sequer passara ainda pela cabeça da Joaninha o esboço do primeiro beijo; nem tão-pouco o conteúdo reflexivo da carta preocupava o seu ainda cândido entendimento. A essência da carta, mais do que a ontologia, era o grafismo propriamente dito. A caligrafia, o perfume e o desenho da folha figuravam a grande inquietação da Joaninha. O texto, em si, era curto e incisivo; uma única frase desvendando todo um coração
«Gosto de ti»
E depois, evidentemente, a hipótese de concordância ou refutação. Uma simples questão:
«E tu, gostas de mim?»
Seguida de dois quadradinhos meticulosa e pormenorizadamente desenhados, sobre um dos quais o seu herói teria que assinalar a sua sentença «Sim/Não»

Sob o ressoar exaltado da multidão, bate no ombro do seu defesa central
«Bamo’ lá, caralho!»
E o professor de Educação Física olha-o de esguelha, leva o apito à boca e assinala grande penalidade.
Multidão indignada com o juízo do desajuizado juiz sem contudo expelir palavrões, que o Director Executivo tem por hábito desafivelar as calças para flagelar as carnes pudibundas dos alunos.
«O que é que eu fiz?» pergunta um
«Foi casual!» afirma logo outro
«Disseste um palavrão» retorque peremptoriamente o árbitro
«Vai buscá-la ao fundo da rede» já exclamam reflexiva e reflexamente os oponentes.
«Quem é que disse o palavrão?» perguntam todos em uníssono ainda que não métrica e matematicamente uniformes.
«O Eduardo» aponta o dedo acusador do árbitro.
«O que é que eu disse?» questiona esganiçadamente o Eduardo.
«Aquilo que acaba em alho» avança o pudor lustroso do árbitro.
E todos riem timidamente da sílaba, subitamente arguida num julgamento que lhe é insensível.
«Querem matar a nossa equipa!» ecoa numa voz aflautada e longínqua.
«Disseste “caralho”?» pergunta o Manuel
«Tino!» adverte o árbitro enquanto faz a sinalética ameaçando o cartão amarelo.
E o Eduardo, de braços pendendo já sem o vigor do herói e semideus do Estádio cheirando à erva desbastada pela gadanha, tomba diante da culpa
«Disse-o inconscientemente e sem pecado…»
E gera-se um silêncio de absurdo a palmilhar a consciência de todos quantos assistiam ao jogo. O árbitro deixa escapar o apito da boca, olha entre dúvidas o rosto magoado do Eduardo e toma a última resolução
«É pontapé de baliza»
E a multidão responde com o rumor habitual de uma plateia de raparigas e rapazes envaidecidos com as suas equipas, como se nada tivesse acontecido, como se a voz da Joaninha não tivesse silenciado ante a sentença abrupta e despropositada do juiz de jogo.
A Joaninha grita por cima dos ombros das amigas e o Eduardo responde com uma cuspidela meticulosa sobre as luvas de guarda-redes profissional; a Joaninha suspira a cada defesa do seu herói e o Eduardo limpa o nariz à manga da camisola com o patrocínio dum Stand de automóveis; a Joaninha vibra a cada remate e não adivinha a determinação com que o Eduardo há-de desenhar a cruz na opção «Não», sem sequer ter cheirado o perfume, sem ter contemplado o desenho do ursinho e as cores garridas da carta, apressado que estava em participar num simples jogo de dois contra dois, constantemente interrompido pelos passar apressado dos automóveis na rua, mas onde podia bradar a pulmões cheios
«Bamo’ lá, caralho!»

***

A toalha sobre a mesa
o prato, os talheres, os copos, o jarro da água, a cestinha do pão, o pão de centeio, os guardanapos
uma nota de dez euros sobre um pires
eu sem apetite
a dar estalinhos no copo, a ver a água revolvendo em pequenos afluxos serpenteantes
eu sem apetite
a atirar as migalhas do pão contra o jarro da água
as migalhas do pão ricocheteando para o chão, pisadas por mil pés no frenesim da festa

aquela frase ressoando nos meus sentidos:
«Tem cara de pobre»

Eu sem apetite
A não ver os rostos dos outros anos, a não malquerer a estupidez humana, a não responder a pergunta alguma, sem dar indicações, sem responder a comentários sobre a corrida de cavalos.

«Mas também há que admitir, são as que melhor se ajeitam na cama»

A Joaninha,
de mãos agarradas às correntes do baloiço nas tardes sem aulas. O seu laço vermelho, ainda o não sabia, era a curvatura do universo, a cúpula do céu, o meu primeiro pequeno sinal de pequena consciência cósmica. Não a vi ler a carta que sofregamente escrevi sobre o balcão da carpintaria do meu pai. As lascas de madeira a enfiarem-se pelo envelope, o cheiro a serrim a enfaixar-se nas cartas e a caneta que tirei da orelha do meu pai a esborratar o papel com a tinta azul que me sujava a ponta dos dedos.

O empregado da tasca leva a nota de dez euros sem perguntar se estou satisfeito. Leva o prato ainda com o bife, ainda com as batatas fritas pintadas pelo sangue esparrinhado com o garfo, ainda com o ovo na borda, desfeito, esfrangalhado, ainda com folhas de alface esparsas, secas, com montículos de sal cumulados na brincadeira do ócio. A multidão que passa sem que eu a oiça. A multidão que sei que passa por me repetir todos os anos, por estar nesta mesma mesa, a repetir a minha história, a fracturar o meu tempo, a suspender o hálito e as pulsações da vida. Se não a mesma camisa, uma camisa muito parecida; se não as mesmas calças, umas calças muito parecidas; os mesmos sapatos com toda a certeza; o mesmo gel porque receio que os outros não sejam melhor. Sou arquétipo de mim mesmo.

E era como se o empregado me estivesse a dizer, a jurar
«Tem cara de pobre»
E era como se o empregado me estivesse a dizer, a jurar
«Mas também há que admitir: são as que melhor se ajeitam na cama»

A Joaninha, de livros debaixo do braço, óculos de haste prateada sobre o nariz delgado, o sorriso da resposta pronta nos exames, os dedos maculados pelo giz que mexia sem o meu nervosismo, e eu sem conseguir dizer-lhe que não comia por sua causa, que não dormia pelos seus cabelos, que não estudava pelos seus olhos, que me mantinha estático, deitado no sofá, de auscultadores nas orelhas a imaginar que me queria e que me não queria, a gostar que me não quisesse, a desejar que me quisesse. As férias do natal a aproximarem-se e eu sem conseguir dizer-lhe
«Tenho reparado em ti»

e a ouvir músicas que nem digo

vivendo duas semanas na aflição, contando os dias e achando-lhes eternidades em todos os instantes e pontos do espaço. Aqueles dias distendidos pelo universo, e outra vez um pequeno sinal duma pequena consciência cósmica, um sorvedouro entre mim e o tempo, sem escolha, o eleito, o ungido, o homem fracturando o tempo.
Enquanto todos carpiam pelo regresso das aulas, ali estava eu, no corredor, encostado ao cacifo, rindo dos professores, rindo do giz misturando-se com o suor da minha mão, rindo das matemáticas,
e sem coragem para lhe dizer que não dormia
a escrever cartas e a soprar-lhes para tirar as lascas de madeira, a atirá-las para o cesto de papéis, a arquitectar uma forma de o dizer, cheio de coragem, cheio de mim mesmo, e no dia seguinte
encostado ao cacifo, com vontade de vomitar, as mãos suando sem giz, a voz tremendo sem os números da matemática no quadro
era como se eu já pressentisse
«Tem cara de pobre»
era como se estivesse a ouvir o twist às voltas, os carrinhos de choque que nunca repetem um percurso na sua longa marcha restrita

O empregado da tasca está à porta
de braços cruzados,
e é como se tivesse giz na ponta dos dedos
como se tivesse tinta azul na ponta dos dedos
como se fosse ele a escrever as cartas
como se fosse ele a tirar a caneta da orelha do meu pai
como se ele fosse eu
como se eu, sendo ele, lembrasse ao arrumar a loiça:
«Tem cara de pobre, não achas, Eduardo? Aquilo não engana. Quenga até à medula. Diz que é a “biciclete” do bairro. Não sei. O que dizes?»
e é como se o empregado não tivesse conseguido dizer
«Tenho reparado nela»
e é como se o empregado não tivesse conseguido dizer
«Tens razão, tem cara de pobre»
e é como se o empregado lembrasse o silêncio quebrado pela voz do Paiva
«Mas também há que admitir, são as que melhor se ajeitam na cama»

Oiço motores de automóvel incorporando o polvilho da tarde, como de resto sempre acontece à excepção do ano em que, garante o empregado da tasca, o Augusto pertenceu à Comissão de Festas.
«Isso é que foi um bom ano! Bófia à porta de casa, sinais de sentido proibido pelas ruas, calmeirões passeando pela festa de walkie-talkie na mão. Categoria! Mas este ano não, cada um faz o que lhe apetece e aí está o resultado: pandemónio.»
Três buzinas entre o ajuntamento de automóveis, depois quatro, depois três e finalmente a indefinição. Eu sou o número de buzinas ressoando agora pela rua.

«Vais para a corrida de cavalos? É que diz que não aceitam inscrições de burros»

Irei à festa porque sei que ela está lá. Como quando ia à festa procurar a Joaninha; os carrinhos de choque vazios, sem a Joaninha aos encontrões, as cadeirinhas voadoras sem a Joaninha, arremessadas contra o vento de Abril, os vagões do «Twist» sem a Joaninha, os carrosséis apinhados de meninas que eu conhecia, de rapazes que me mostravam o polegar apontado para o alto, e eu sem conseguir discernir a Joaninha, a esticar o pescoço por cima da multidão, os sapatos agarrados ao alcatrão derretido sob o Sol que não me acalorava
as músicas que nem conto a martelarem-me a cabeça
e que me faziam associar a Joaninha aos nomes mais estranhos das mais extravagantes celebridades dos arraiais
o rebate dos carrinhos de choque
as faúlhas dos carrinhos de choque
a voz aciganada a apregoar as voltas ao mundo
e no poço da morte esvoaçavam dois motociclistas, agarrados ao meu coração e arrebatados à minha dor de a não ter
porque a festa é o meu arrependimento e a «nube» é o refúgio absurdo que não encontro na vida
não se volta ao mesmo lugar
não há solução
não se volta atrás
não se anda em círculos

e para além disso

absurdamente

não há mistério

não há círculo
mas também não há mistério

não há
na vida
mistério

só na nube

só na nuvem…
Leonel Ferreira