quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Poesia

da morte não acreditamos alguns.
eu acredito. eu. sei o que a morte traz
por entre as bandeiras no espaço
contido do estourar de foguetes . ou
entre os passos das crianças, entre o pousar
e o voo das aves de tanta certeza.
eu sei do que a morte existe
eu sei no que ela insiste

[tenho traído os ideais todos, vendi as pratas, a honra e a paixão, sou estrangeiro num país por desenhar]

talvez te incomode com a certeza,
mas de outra coisa não disponho
e pelo parque, à hora absurda em
que as pessoas estão felizes,
faz-me falta sentir o que devia,
estou indisposto,
acredita que não o queria, nem o cria tampouco

[acreditei em deus nas dobras do tempo, na vida nos outros e em mim, em coisas e ideias, mitos e razões]

vive um homem tantos anos,
e nos anos todos o mundo corre,
nem que parado pois que o mundo se move.
e de tudo isso, de tanta coisa, só morre.
Eu sei eu sei e que sei e que se há-de fazer é a vida

[faço que me esqueço e olvido-me que não me recordo, e um dia, quando eu morrer, não digas a ninguém que te amei]

tenho colhido as flores.
agora já não acredito em jardins
e ao longe pressinto: nunca caminhei
por onde não podia e por isso nunca por onde devia
já que ao cabo é para morrer.
branco ou tinto, é para morrer.

Rui Gonçalves Miranda



do que eu te queria ter dito e não consigo

nada de real nada tem
é postiço este sofrer
e não é real sequer
o que hoje aconteceu

adio a palavra, travo,
o mundo, acredito,
e insisto nisto porque sei
que só pode ser postiço.


eu sei que não é verdade
[como pode? quem o pode?]
que nunca mais, sem mais,
que o irreal a si se descobre.

Rui Gonçalves Miranda



por entre o esplendor da luz perpétua

Entre ambos fingimos
que o mundo não acabou
e no intervalo de um café
saboreamos o torrar do nulo

de horas e partidas
de deuses fados e vontades
nestas mãos porque respiram
sentimos ainda os cravos

como calha. Pertenço
Pretenso à mentira dos capazes.
Talvez durma, viver cansa
sempre e nesta dança

calho de olhar para ti
levante-se esta mesa final.
Para de onde daqui? Desreal

]-e crocodilos de capô escamoso aspiram a ser
cobra engolindo os latejantes-[

entre nós ambos o fim

Rui Gonçalves Miranda



Quem trará, de entre
os passos que se avizinham
insuspeitos [mas onde estão?]
as ofertas da lembrança?
- Os deuses nos roubaram
em crianças, para um mundo
no qual se não deve acreditar-
. Descortina-se nesta peça
que alguém se esqueceu de fazer
de Deus, numa história que um
de nós ficou por contar

Alvoreasse em mim o desejo
de um voltear. Alvíssoras,
Terra à vista, capitão!
- E é tudo tão mentira
um sentir de papelão-
. Perdemos as ilhas todas dos amores
aumentámos a imensidão
e do que procurámos encontrámos
só o ficar por encontrar

Trouxemos do mar o impossível
baptizámos o inenarrável
- e calámos, por entre os interstícios
da carne, nossos demónios.



mas já não há quem nos aguarde

Rui Gonçalves Miranda



sem fim

não tenho garantia, estou, sem o estar
(como poderia?) vazio.
mas não é isso, acontece
estar do lado de fora do curso das coisas
[não oblíquo, de lado]
eu [que quando digo eu, digo eu]
predigo porque o vou sentir
que o pião gira deslocado
estou de lado
nem num lado nem noutro
corda sem brinquedo
talvez rio sem leito
onde me sento? onde me canto
agora que me desfasei?
quem me conserta,
caveira breve sem fim?

Rui Gonçalves Miranda



sopro


eu, que quando digo eu,
digo eu. não quero dizer
coisa outra. não digo outra coisa.
Eu. E eu sou eu e nem
tudo é eu nem eu tudo
nem eu me projecto em tudo
nem tudo está em mim
nem sou nada, coisa nenhuma,
não me lembra de onde vim
não me interessa para onde vou.

Eu digo eu. Plena justificação
da existência de cada estrela
por si e no conjunto porque
sei que sou eu porque
não quando nem porque
nem se nem ao. Digo eu.

Digo

eu, que não nasci nem
de deuses nem de diabos
nem de puta que os parisse
que não pertenço a nada ou ninguém
nem a todos e a toda a gente,
eu, este eu, coração de bufar.

nem princípio nem fim
nem intermédio ou pilar
nem nação nem o outro
nem outro nem perdido
nem fodido, fora de mim ou
despreocupado e sem compromisso

plena pulsão vital de dizer
eu
instinta distinta força. eu
que nem sequer sou,
mais, além, aquém,
demais, a menos,
talvez, porém, e tu
também?


Minha voz não é uma voz
minha não é. Eu

Rui Gonçalves Miranda