quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Prosa

Máximo Expoente: a partida

A música é a suprema arte, a arte pela qual rezo todos os meus dias.

O palco. Olhamos uns para os outros. Fitamos o público. Sinto-me nervoso. Respiro fundo na ânsia de um alívio, nem que efémero seja. Nem uma única cadeira vazia contemplo. O burburinho… trocamos olhares e rimos ao ritmo da afinação das cordas. Estou pronto. O que sinto? Meu estômago aperta-me na clausura da minha condição. O auditório cala-se. O maestro dá sinal.

— “Nunca serás ninguém!”

— “O que procuras tanto no mar, filho?”
— “O mar impressiona-me, mamã. Às vezes, enquanto dormito dialogo com as ondas e silencio a minha dor da partida.”

O que é para ti o mar ? O que nele vês? “O Mar de Debussy”, alegre e sinfónico ou, o desespero melódico de Chopin, ou será antes a nostalgia de Mahler que te trespassa? Flecti as cordas com os dedos hirtos, pesados, alheado do mundo em volta. Era eu, somente eu que girava os contornos do mundo, a partir do meu violino. Ao mesmo tempo era palco e auditório da minha própria agitação interior. Fazia deslizar a crina do arco suavemente. Com pressa por não deixar exaurir a recordação. Não só as cordas vibram, mas também meu corpo, meu pensamento.
— “Meu filho! Assusta-me a ideia de poderes seguir a vida do teu pai. Não quero que vás para o mar. Promete-me.”
Não podia prometer, o que não podia controlar, o que já nascera comigo.
O mar viu-me nascer. O mar era tudo para mim. Nas suas águas desdobrei meus sonhos e meus desânimos. Agora a melodia vibra nas cordas do meu violino. A música palpita-me no coração. O mar da tranquilidade, a música do contentamento unem-se no meu coração soltando um grito mudo em uníssono.
Ofereceste-me aquele primeiro violino, singelo e doce. Debrucei-me sobre ele como se de um bicho magoado se tratasse. Como o faria funcionar? Teria uns oito anos. Não tardei muito a desafiar a firmeza das cordas, a testar a minha ignorância, perante tal artefacto enigmático. Mal sabia eu no que haveria de acontecer. Querias que ele fosse o ponto de partida para uma nova existência. De certo modo, aquilatavas a esperança de um afastamento do mar. O novo brinquedo rugia feroz. Exasperava-me. Mas não desisti. Acreditavas convictamente que eu não seguisse os passos de meu pai. Lembro-me que cada vez que tentava soletrar o meu mundo, através do brinquedo, ele me ordenava para estar quieto. “São horas do noticiário! Pára com essa mariquice, se não... Irra não tem jeito para nada.”
Meu pai... . Em mim não há indiferença. Nunca fui indiferente à vida, sobretudo à minha.
— “Não serves para nada. Nunca serás nada porque és inútil, és indiferente. Jamais vingarás, jamais.”
Eu cerrava os olhos para não chorar. Queria manter-me forte, mas era um fraco. E fraco fui até muito tarde.
Quando era criança perdia as horas esboçando as ondas nas íris dos olhos. Debruçava-me sobre os penhascos e abraçava complacentemente o mar. Fingia mergulhar até ao derradeiro e silencioso sepulcro das marés. De repente, viria à tona, rompendo com estrondo as ondas de cristal. Enchia as palmas de areia escorregadiça e contava cada grão até me esquecer do número em que ia. Lembro-me de permanecer mudo esperando o por do sol. Imaginava histórias para os meus sótãos escuros. Esperava ansioso o regresso do meu pai. Ele era pescador, pescador como poucos. Todos os dias às cinco e meia da manhã adentrava-se na escuridão com o seu pequeno bote, na companhia de cinco amigos.
Mas um dia fartei-me de esperar, a minha sombra vazia foi acordada pelo passos rápidos e sôfregos do meu irmão. Pegou-me pela mão e levou-me para casa, sem palavras. Observei-o durante o caminho. Manteve-se calado o tempo inteiro. Não trocou nenhum olhar comigo. Estivera a chorar? Pressenti que algo não estava bem.
A nossa casinha parecia iluminada por uma áurea de tristeza. O meu irmão bateu ao de leve na porta. Ouvimos passos lentos e pesados. Algum burburinho, uma cadeira caiu. Finalmente a porta abriu-se, pude exalar um cheiro forte a rosas e tulipas. Entrei primeiro. A minha avó Maria desviou a face, um momento. Não quis olhar para mim. Era o fim. Lá olhou para mim, enquanto me apertava com força as mãos, ainda ásperas da areia e do sal. Levou-me para a sala, sem delongas. Virei a face ao encontro do meu irmão, que se mantivera agarrado ao fecho da porta. Vi lágrimas nos seus olhos. Na sala vislumbrei um grupo de pessoas que não conhecia. Alguns vizinhos. E lá estava a minha mãe, segurando ao colo os meus dois irmãos mais novos. Tinha estampado no rosto a cor do desespero. Desatou a chorar logo que me viu. Abraçamo-nos durante muito tempo. Não era necessário dizer o que acontecera. Os minutos tinham passado, o alento perdera-se. Sabia que o papá não voltaria.Regresso, agora, muitos anos mais tarde a um limiar da minha própria essência. Toda a minha infância atravessa-se à minha frente, perante o olhar de desconhecidos. O grande Vivaldi, reveza os “Caprichos de Paganini”, sou a alma do maestro, primeiro violino, e a chuva inunda o mar e eu reteso as cordas para pronunciar a água que volve do céu. Todavia, estas são as lágrimas impronunciáveis que velo por minha mãe.
Reis Neutel