quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Poesia

Retro-modernismo
(Ou – Dói-me a Cabeça)

1 – Sim…?

Retro-modernismo é acordar num dia normal, igual a tantos outros, dar uma volta pela cidade com a mesma abstracção côncava e desanimada de sempre, um pé atrás do outro só pela mera acepção mecânica de não cair para a frente – ou para trás – ao proceder ao movimento que permite locomoção física por meio de duas extremidades posteriores, é ir parar aos bairros suburbanos da mente onde as paredes estão grafitadas com slogans de paz e amor entre os elefantes e os ratos, é ver com os olhos fechados os giroflés que crescem como caveiras desbotadas por sobre a camada oleosa de desinteresse que ponteia o dever patriótico a rigorosamente nada dos semáforos, é virar para a esquerda e ir em frente numa ruela que não tem esquerda nem frente, é passar por uma cena de obscenidade gratuita protagonizada por uma loirinha licenciada em direito que prostitui com uma verborreia exaurida pela força jurídica os seus moribundos ideais de justiça e gelados de chocolate em prol dum dia mais sorridente do que este – mas se o dia lhe sorri mais do que este, os dentes vão aparecer todos manchados de gelado de chocolate – e um professor de educação física com óculos e um catálogo de apitos debaixo do braço, é meter as mãos nos bolsos e ficar na mesma com elas ao frio e à chuva apesar de não estar frio nem estar a chover, é ir parar a um beco que, apesar de ser beco, não tem saída, é passar pelos caixotes do lixo do beco e ver lá um cadáver abandonado a apodrecer mas vestido de azul escuro e verde mediterrânico, é não saber a diferença entre o sol que se esconde numa caixa de oleados e uma bolacha de canela torrada. O Retro-modernismo é isto tudo e não é nada disto, pelo simples facto de o Retro-modernismo não ser coisa alguma.


2 – Lenço de papel reciclado

O lenço é feito a partir de papel reciclado
Ou
O lenço de papel é que foi reciclado?


3 – E se eu fosse

E se eu fosse
Um deus que ninguém adora
Um poder sobrenatural
Que se perdeu mundo fora
O antigo clamor da oração
Que prece alguma recorda
A visão que visita em sonhos
Quem a esquece quando acorda

E se eu fosse
Um capitão sem navio
Um sábio velho comandante
Que adormeceu ao relento frio
O último a abandonar
A embarcação afundada
Uma lembrança de névoas difusas
Que padece afogada

E se eu fosse
Uma bala sem pistola
Um jogo de futebol
Que decorre sem a bola
E se eu aqui
Não fosse quem eu sou
E fosse apenas as sobras
Do sonho que se esfumou?


4 – Não

Não

Não é assim

Não é assim que se faz

Que mais querem que vos diga?

Não é assim que se faz

Não é assim

Não


5 – Em Sangue

Leque em sangue!
O sangue está vivo!
E escorre pelas ruas desertas do desespero!
O sangue…
Vivo…
Anjos com túnicas brancas
Erguem o leque em suas asas
E levam-no para o Paraíso…
O sangue…
Vivo…
Uma quadriga de Deus
Leva o leque vivo
De sangue
Para os corredores do Paraíso…
Tanta luz!
Tantos anjos!
Tanto sangue…
Vivo…
Vivo?
Vivo??!!!
Leque sem sangue!
O sangue já não está vivo!
Jaz seco nos corredores de entrada para o Paraíso
O sangue…
Lavado pelas senhoras da limpeza do Hospital…


João Tavares