Editorial
Um Deus Menino
No auge da Técnica, uma das últimas disposições humanas diz respeito ao gosto pela parcialidade. De actos criativos emergem instrumentos notáveis que parcializam actividades ordinárias, facilitando-as. Ainda bem para o homem e para uma urgente necessidade de esgotar o tempo diário dispendido com elas. A obsessão pelo método científico do especialismo desenfreado é, todavia, tanta, que o método varre mentalidades de áreas que sendo únicas, único modo de viver deveriam ter. O especialismo científico está a transformar-nos naquilo que estudamos. Que estudamos precisamente por nos julgarmos capazes de generalizações avaliadoras. Generalizações avaliadoras que fazemos por sermos mais do que aquilo que estudamos. Não gosto deste carrossel, é feio e tem bicho.
Um prato serve para comer, uma faca para cortar, uma caneta para escrever, uma cadeira para sentar, um bolo para comer e o homem não parece descansar enquanto não etiquetar exclusivos serviços e capacidades como estas nas pessoas.
O especialismo doentio a que hoje assistimos em tudo quanto cheira a humanidade, inclusivamente nas letras, mais não é do que sinónimo de um leviano desejo de incompletude. Não aceitação, nem admissão ou resignação, mas desejo. É a recusa do renascimento, do homem multifacetado, múltiplo. Destrói-se a totalidade que nos é intrínseca, com que partimos quando nascemos. Hoje quer-se não um ser que cria, mas um ser que realize particulares serviços com a mesma eficácia com que o Excel realiza aquilo para que estava programado. Eu sou o Excel e sou realizado pessoalmente, troque-se Excel por um humano nome e é para isto que aponta o dedo do progresso. A evolução da involução. Corro para trás pensando que corro para a frente, sonho atingir um topo que é topo porque o vejo de cabeça para baixo, vejo um topo que afinal é abismo. Urge redireccionar consciências. Não sendo uma máquina, o homem procura agir como tal, o mesmo sucede inversamente, ainda que por razões diferentes. A este desejo de cientificidade da vida lhe respondo de soslaio, a vitalidade tende a evaporar, a vida sentida com verdade é rejeitada por um dos seus filhos maiores.
Entre ser tudo de todas as maneiras ou ser um algo de uma só forma o Progresso acolhe o último. No dia em que o homem fechar as portas ao poeta inteiramente à solta, morre. Isso tenta o mundo hoje, isso tentaram filosofias europeias encerrando sentidos numa qualquer vesga perspectiva, baseada num qualquer vesgo método. A tradição especulativa portuguesa pode aí ensinar, pode ensinar a querer aprender. Pode porque se libertou das etiquetas, porque especula poeticamente, porque num nietzscheano movimento é poeta e filósofo, vivendo paradoxos ao ritmo de um verso. Pode porque não totaliza o que é parcial. Pode porque o seu Deus é menino! e é terra! e é espírito! e é sangue! e tudo quanto não exista!
O seu Deus, o Deus do poeta-filósofo, é tudo e é nada, e tudo não quer nem sabe não ser, sabendo que tudo nem ele é.
André Faia
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