quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Editorial


Um Deus Menino

No auge da Técnica, uma das últimas disposições humanas diz respeito ao gosto pela parcialidade. De actos criativos emergem instrumentos notáveis que parcializam actividades ordinárias, facilitando-as. Ainda bem para o homem e para uma urgente necessidade de esgotar o tempo diário dispendido com elas. A obsessão pelo método científico do especialismo desenfreado é, todavia, tanta, que o método varre mentalidades de áreas que sendo únicas, único modo de viver deveriam ter. O especialismo científico está a transformar-nos naquilo que estudamos. Que estudamos precisamente por nos julgarmos capazes de generalizações avaliadoras. Generalizações avaliadoras que fazemos por sermos mais do que aquilo que estudamos. Não gosto deste carrossel, é feio e tem bicho.
Um prato serve para comer, uma faca para cortar, uma caneta para escrever, uma cadeira para sentar, um bolo para comer e o homem não parece descansar enquanto não etiquetar exclusivos serviços e capacidades como estas nas pessoas.
O especialismo doentio a que hoje assistimos em tudo quanto cheira a humanidade, inclusivamente nas letras, mais não é do que sinónimo de um leviano desejo de incompletude. Não aceitação, nem admissão ou resignação, mas desejo. É a recusa do renascimento, do homem multifacetado, múltiplo. Destrói-se a totalidade que nos é intrínseca, com que partimos quando nascemos. Hoje quer-se não um ser que cria, mas um ser que realize particulares serviços com a mesma eficácia com que o Excel realiza aquilo para que estava programado. Eu sou o Excel e sou realizado pessoalmente, troque-se Excel por um humano nome e é para isto que aponta o dedo do progresso. A evolução da involução. Corro para trás pensando que corro para a frente, sonho atingir um topo que é topo porque o vejo de cabeça para baixo, vejo um topo que afinal é abismo. Urge redireccionar consciências. Não sendo uma máquina, o homem procura agir como tal, o mesmo sucede inversamente, ainda que por razões diferentes. A este desejo de cientificidade da vida lhe respondo de soslaio, a vitalidade tende a evaporar, a vida sentida com verdade é rejeitada por um dos seus filhos maiores.
Entre ser tudo de todas as maneiras ou ser um algo de uma só forma o Progresso acolhe o último. No dia em que o homem fechar as portas ao poeta inteiramente à solta, morre. Isso tenta o mundo hoje, isso tentaram filosofias europeias encerrando sentidos numa qualquer vesga perspectiva, baseada num qualquer vesgo método. A tradição especulativa portuguesa pode aí ensinar, pode ensinar a querer aprender. Pode porque se libertou das etiquetas, porque especula poeticamente, porque num nietzscheano movimento é poeta e filósofo, vivendo paradoxos ao ritmo de um verso. Pode porque não totaliza o que é parcial. Pode porque o seu Deus é menino! e é terra! e é espírito! e é sangue! e tudo quanto não exista!
O seu Deus, o Deus do poeta-filósofo, é tudo e é nada, e tudo não quer nem sabe não ser, sabendo que tudo nem ele é.
André Faia