terça-feira, novembro 07, 2006

Conto - Quem Procurais?

— Pode recordar-me como passou aquela manhã, a manhã da… do seu desaparecimento?
— Pede-me recordações da manhã da minha morte, Dr.
Prostrado numa marquesa, de olhar fixo entre o pestanejar de uma luz estroboscópica e um psiquiatra que lhe sorri, enquanto gentilmente lhe coloca a tal pergunta: o que tinha feito na manhã em que um estranho incidente aconteceu a bordo de um Albatroz, aquando este flutuava na cintura dos planetas gémeos?
— Doutor Fonz, já permaneci aqui tempo suficiente, não acha? Já respondi a essa questão mil e uma vezes, pode comprovar que a resposta foi sempre a mesma, suponho que as gravações, todos os registos estejam ao seu dispor, certo?
— Certo. Mas quero ouvi-lo pessoalmente. Só quero ajudá-lo, compreenda o meu…
— Vá para o diabo. Estou há vinte semanas encerrado e não tive direito a um único pedido. Vinte semanas! Foram mais de trinta anos que estive congelado. O que está a acontecer lá fora? Quero viver, diabos. Já me fizeram todos os testes que quiseram. Creio que todos sabem quem sou eu, excepto… eu.
— Tenha calma, eu sei o que deve sentir. Mas você é um caso único — disse o Dr. tentando amenizar a cólera do outro.
— Caso único!? Não era eu, não era eu, mas lá estava. Era evidente. No momento errado, no sítio certo, não? Faça um favor a si mesmo, Dr., pegue nas suas coisas e ponha-se lá fora.
— Não complique a sua situação. Quero mesmo ajudá-lo. Creio que sei como fazê-lo. Colabore comigo e vai ver que num instante…
— Por que o mandaram a si, Doutor Fonz? A sessão de ontem não foi suficientemente reveladora? O que aconteceu à Doutora Sheila? Ah, espere, vai ensinar-me uma nova habilidade, para depois me entregarem a um circo. Já consigo imaginar… um belo circo de atracções, desses que viajam pela Terra, pela Lua, por Marte e por Europa. Estou esgotado, onde está o meu almoço? Raios, onde está o meu almoço?
Nesse instante, a porta abre-se e um pequeno robot metálico flutua na sua direcção. Uma pequena comporta abre-se do seu peito e dentro dele sai um tabuleiro com uma refeição.
— Tem um aspecto delicioso, certo Dr.?
O robô desliza silenciosamente e retira-se. A porta da cela fecha-se. Vários feixes de laser bloqueiam a porta. O rosto do prisioneiro torna-se sombrio. O recluso deveria ter perto de trinta anos. O que mais impressionava o Dr. era o seu olhar magnético. Parecia que estavam em constante pesquisa. Entravam na alma, descortinavam a cor dos sonhos e o temperamento das vontades. Nem enquanto comia ferozmente, parava de observar os gestos precisos do Dr. Estudava-lhe a forma, o sorriso, o teor das palavras, atentamente. Era difícil dizer com certeza se os seus olhos eram cinzentos ou azuis. Sorria, de quando em vez, em menosprezo pela conversa do outro. Mas não era isso que lhe tirava o apetite.
Dr. Fonz respirou fundo. Estaria a ordenar os seus pensamentos, para formular uma nova questão, que não demorou muito a surgir.
— Sargento, lembra-se de ter conhecido uma auxiliar de hotelaria na Estação Centauros? Tente lembrar-se, por favor!
— Lamento Fonz, está na minha hora do almoço, a hora da visita terminou. Passe por esta cela daqui a vinte ou trinta anos, talvez já tenha aprendido algum truque novo. Ou melhor, talvez tenha uma habilidade nova para me ensinar.
— Pensava que desejava sair ardentemente da cela. Ah… antes que me vá embora deixo-lhe esta fotografia da Helena.
Erguendo-se e desviando a poltrona, introduz a mão no casaco e retira uma pequena fotografia. Agilmente coloca-a em cima da cómoda em frente à marquesa do paciente.
— Bom apetite — os feixes laser desligam-se — com certeza voltar-nos-emos a encontrar muito em breve.
Retira-se imediatamente. O outro fita-o com surpresa. Depois do Dr. Fonz sair, pega na foto. O seu rosto emudeceu. Levou as mãos à cabeça e exclamou:
— Oh meu Deus, é ela!

* * *

— Dr. Fonz aqui tem o arquivo completo do paciente.
— Muito obrigado, Carolina.
— Precisa de mais alguma coisa, Dr.?
— Não, é tudo por agora. Carolina, só mais uma coisa… não quero ser interrompido por ninguém, Preciso de concentrar-me neste dossiê.
— Com certeza, Dr. Fonz. Não permitirei que ninguém o perturbe.
— Obrigado.
— Com licença.
O Dr. Fonz permaneceu pensativo durante um largo período no seu gabinete. Alguns diplomas, retratos e uns quantos quadros emolduravam as paredes. Num deles, que sobressaia por apreciáveis dimensões chamado “As metamorfoses do sonho”, observava-se um homem atravessando um labirinto em chamas, do qual dezenas de pessoas e de todo o tipo de objectos pareciam ser engolidos por um insaciável vórtice, que resultava ser o seu próprio sonho. Por cima do homem pairava uma enorme ave pré–histórica vermelha e laranja, parecendo indicar o caminho. O homem vai-se diluindo na tela, enquanto o seu rosto denota confusão e perplexidade.
Fonz sentou-se finalmente na sua poltrona creme de pele macia. Pensava em como poderia ajudar o recluso. Com certeza devia estudar melhor o dossiê. Há sempre algo que escapa. Um pormenor interessante aqui, uma nova pista ali. Naquela tarde debruçou-se sobre o processo completo. O nome do processo: “O Fantasma da Estação Centauros”.
Começou por estudar os registos da conversação rádio entre dois pilotos: os Sargentos Thomas Jensen e Sinder Val. Ambos pertenciam à Companhia Aero-Espacial Centauros. Esta recrutou militares de científicos de todos os continentes terrestres. A nova missão tinha como objectivo analisar as condições para criar colónias em dois planetas gémeos, Gemini I e Gemini II, localizados a vinte e cinco anos-luz da Terra. Possuíam potencialidades apreciáveis. Mas era necessário fazer estudos minuciosos da área envolvente antes de analisar profundamente o terreno. As pesquisas já se estendiam há mais de dois meses. Os dois pilotos estavam a fazer uma viagem de reconhecimento em redor dos planetas quando um estranho acontecimento ocorreu.

— … Ok, vou dar só mais uma olhadela.
— Calma, V2. Vai com calma.
— Parece-me que estás com medo, Thomas. Respira fundo. Está-se tão bem na imensidão do Cosmos. Sinto o seu berço, o silêncio…
— Oh, cala-te. Não dormi bem, tive um pesadelo e agora estás-me a chatear com as tuas tretas.
— Vamos lá, Thomas, não…
— Sim?
— Oh não, não vejo nada. Não… uma luz… Não aguento. Ajuda…
— Sinder, chega de brincadeiras. Sinder?… Que se passa, Sinder?
— Não consigo… não…
— Fala comigo, amigo. Sinder, amigo, escutas-me? Fala por Deus. Amigo?
………………………

— Oh o que está a acontecer. Oh não, desapareceu, a sua nave explodiu. Merda, o que está a acontecer? Estação - Centauros, aqui nave de reconhecimento V1, escuto?
— Daqui Estação Centauros. V1, perdemos o contacto radar com V2, o que se passa? Informe.
— Hmm. Comunico que acabamos de perder…merda, perdemos o V1, a nave explodiu… à… à minha frente.
— Como diz?
— Vaporizou-se, não sei dizer mais nada.
— V1, retire-se imediatamente. É uma ordem, retire-se imediatamente.
— Não. Não posso ele é meu amigo. Sinder, amigo ouves-me? Responde, vamos lá.
— Sargento Jansen está a entrar numa zona perigosa, retire-se. Não pode fazer mais nada pelo seu amigo. Escuto.
— Daqui V1, volto para casa.
…………………………

No relatório da Equipa de Busca lia-se que tinham sido encontrados fragmentos duma aeronave e de um fato espacial. A conclusão era óbvia. O Sargento Sinder Val tinha morrido no decurso de um estranho incidente, cuja origem era ainda desconhecida.
Vários especialistas comentavam a morte do Sargento. Uns argumentavam que poderia ter sido ocasionado por um destroço incandescente de um asteróide. Outros falavam na possibilidade de um fenómeno sideral poder estar por detrás do incidente, propiciando uma intensa luz, que o fez perder a consciência. Havia ainda aqueles que acreditavam que um clarão de energia pura pudesse ter interrompido a missão do Sargento Val. Mas outra dúvida entrava em campo. O Sargento Jansen negou sempre ter observado qualquer luz. O que teria acontecido realmente? Ninguém sabia.
As investigações continuaram. Todavia, novas perguntas e novas possibilidades foram sendo levantadas, devido a relatos de várias pessoas que asseguravam ter visto o Sargento Sinder Val vaguear pela Estação. Uma delas era o próprio Chefe da Missão, o Comandante Evgueny Hayduchov. Dr. Fonz leu o relato. Ficou estupefacto. A sua idoneidade era reconhecida por todos. Teria sobrevivido, realmente? Teriam sido afectados os membros da Estação Centauros por uma alucinação colectiva?
O seguinte relato pertencia a uma hospedeira da Estação, Helena Belver. Fonz sabia que Sinder a conhecia. No dia anterior à sua última viagem, Sinder tinha marcado um jantar com Helena para essa mesma noite. Havia cumplicidade entre os dois. Helena ficou afectada pela morte de Sinder. Mas ainda, ficou mais chocada quando cerca de três meses após o fatal dia encontrou o piloto sentado numa poltrona dos seus aposentos. Sinder vestia um manto púrpura comprido. Helena, apavorada, gritou. O outro, calmamente, sem tirar os olhos dela, perguntou-lhe:
— Por que demoraste tanto?
Helena fugiu rapidamente do quarto, aterrorizada, incapaz de encarar o “fantasma” do seu amante. Mais tarde voltou ao quarto na companhia do melhor amigo do Sargento Val, Thomas Jansen. Contudo, não havia rasto de Sinder, em parte alguma.
Outros testemunhos como este, de outras pessoas, seguiam-se. Mas apenas Helena tinha escutado a sua voz. A sua voz clara e forte. Helena viu-o mais duas ou três vezes.
Numa das ocasiões narra uma outra experiência sobrenatural.
“Quando me preparava para ir trabalhar, no elevador que me transportava, havia mais alguém. Mas era suposto estar sozinha. Alguém estava comigo, sentia a sua respiração. Soube imediatamente que era ele.”
Passados alguns meses outra nave de reconhecimento teve um acidente, que quase resultou na morte de um jovem piloto. A nave entrou em estado de mau funcionamento, misteriosamente, precisamente na zona onde o Sargento Val tinha desaparecido. Anteriormente duas naves guias, não tripuladas, tinham perdido a rota. Inclusivamente, uma delas explodiu. As pessoas começaram a entrar em histeria. Falava-se de uma anomalia sideral ou uma maldição que cobria aquela área. A missão estava seriamente comprometida. O Comandante Evgueny Hayduchov não queria colocar a vida de mais de trezentas pessoas em risco.
A situação complicou-se mais quando foi encontrada uma nave de reconhecimento da Companhia. O relato foi o seguinte:
— Estação Centauros, daqui fala o Capitão Koriamy da Equipa Copérnico… encontrámos uma nave e é das nossas, repito é das nossas.
— … Impossível, Copérnico. Não há nenhuma nave nossa em voo, à excepção da vossa… mas… Espere um momento. Estamos a receber no radar a posição de um novo objecto com as coordenadas… Corresponde às suas coordenadas, Copérnico?
— Tem que ser das nossas. É um Albatroz. Usa o mesmo código de identificação que nós usamos. Aguardo instruções.
— Tente entrar em contacto com a nave, mas mantenha-se cauteloso e pronto para sair daí a qualquer momento. Vamos enviar uma equipa de salvamento e outra de assalto.
— … Centauros? O Albatroz não responde. Todavia registo sinais vitais. Mas não muito fortes.
— Copérnico, prepare-se para sair do local. Pode ser perigoso.
— Centuros, não me parece que haja perigo. Peço permissão para fazer abordagem directa à nave.
— Permissão não con…
— Como diz, Centauros?

Nesse instante ouve-se através das escutas da Copérnico uma voz sussurrando, quase imperceptivelmente:
— “Quem procurais?”
Era uma voz humana, algo distorcida. Mas era humana.
— Devemos ter perdido comunicação com a Central. Rapazes, façamos a abordagem. Não receiem. Temos o dever de ajudar um dos nossos — dizia Koriamy.
— Daqui Centauros, saia da área. Repito, saia da área. Entraram em zona de perigo. Saiam da área, é uma ordem. Escuto… Daqui fala o Comandante Hayduchov, escuto…

— Centauros, … acreditar…
— Daqui Centauros, fala o Comandante Evgueny Hayduchov, o que aconteceu? Perdemos o contacto durante alguns minutos. Qual é a sua situação?
— Centauros, deparámo-nos com dois corpos dentro do Albatroz…
— Há sobreviventes? Escuto.
— Apenas um. Nem vão acreditar de quem se trata.
— Que raio se passa? De que está a falar Koriamy?
— O Tenente Sinder Val, julgado morto há seis meses, está afinal vivo. Repito, está vivo.
— Não brinque comigo, Capitão.
— Senhor, o “fantasma” vive. Com todo o respeito, Comandante.
— Impossível. Devem estar a passar por algum estado de alucinação.
— Engana-se, Comandante. Estamos bem. A não ser que estejamos todos mortos e isto seja um encontro com o nosso destino.
— Como está a sua saúde?
— … debilitado, mas sobreviverá.
— Meu Deus, como é possível? Tem a certeza que é ele, Capitão?
— Conheço o seu rosto, espere… acaba de acordar. Posso fitá-lo nos olhos e dizer com total certeza que é mesmo ele. É o meu rapaz.
Diz-se que pediu algo.
—Quero ir para casa.
Todos a bordo da Copérnico riram. Diz-se que riram para afugentar o medo que sentiam. Apenas Koriamy e a sua adjunta, Melanie Kerpal não sentiam receio pelo reencontro com o “fantasma”.
— Calma, calma. Ainda não acredito. Estás vivo. És mesmo tu.
— Capitão, o que me aconteceu?
— Oxalá pudesse responder-te, rapaz. O que importa é que estás bem. Rapazes, ajudem-me a transportá-lo para a Copérnico. Depois, reboquem a nave.
Sinder disse mais tarde que nunca tivera nenhum acidente. Explicou que se encontrava numa missão de reconhecimento, acatando ordens do próprio Comandante. O Comandante não achou graça. Pô-lo de quarentena, atrás das grades. Estaria louco? Temeu pela sua sanidade. Apenas uns poucos privilegiados sabiam que o Sargento Sinder, ou o seu “fantasma”, estava de volta à nave. Quem revelasse a notícia seria severamente punido. Mas aquele homem não podia ter sobrevivido a tal acidente. Como poderia ter sobrevivido no espaço? O que lhe teria acontecido? Somente uma resposta acorria à sua mente: era o espírito do falecido Sargento Sinder Val alertando-os para saírem do local. Só havia uma solução. Aprisioná-lo, vigiá-lo de perto e transportá-lo em segredo de volta à Terra. Esperava, contudo, que a maldição do local não fosse também levada para casa. Era um dilema, não queria pôr em risco a tripulação, já tão esgotada e amedrontada. Mas haveria outra solução?

* * *

Falei com Sinder no dia seguinte na sua cela. Sentámo-nos à mesa, frente a frente. Corroborou tudo que lhe disse. Continuou asseverando que jamais tivera algum acidente com o seu Albatroz. Nunca tinha desaparecido. Continuava incrédulo com a história de ele ser um fantasma. Disse-me:
— Acredita mesmo que sou um espectro? Acredita que eu era o fantasma que assombrava a missão?
Não sabia como responder-lhe. Tudo era um enigma para mim.
Perguntei-lhe se no dia do seu suposto desaparecimento não viu a luz.
Ele riu-se.
— Sim, a luz quase me ofuscou. Mas consegui manter o controlo da nave e regressar para a Base. Mas segundo o processo eu perdi os conhecimentos e a nave explodiu. Estranho, não? Quem está por detrás deste esquema, Dr.? Eu servi de engodo e de bode expiatório. A missão terminou e eu fiquei retido numa câmara hibernando durante décadas. Perdi parte da vida em troca de quê? Não envelheci mas privam-me da liberdade.
— Mas a luz vinha de onde, Sinder? Como conseguiu controlar o seu Albatroz? Como… nunca perdeu a consciência em nenhum instante?
— Ocorreu-me pedir auxílio ao meu amigo, ao Sargento Jensen. Ele disse-me para me manter calmo. Foi o que eu fiz. Sinceramente, olhando-o olhos nos olhos, é possível ter perdido a consciência. Sim, de facto não me lembro como tudo sucedeu. A memória tem falhas que o tempo oculta, ou que Deus nos apaga. Mas não morri, creio. Já me fizeram duvidar de tudo, mesmo que tudo isto exista. Testes e mais testes. Aliás, julgo que vivo no purgatório, pois no inferno a comida não seria tão deliciosa. Não acha, Dr. Fonz?
Fitei-o. Apercebi-me nesse instante que o seu olhar era profundo e assaz perturbador. Sorria maliciosamente. Mantinha-se sereno, imperturbável, insondável. Um arrepio atravessou-me a espinha. Pela primeira vez acreditava que ele era de facto um fantasma. Senti-me atemorizado. Apenas lhe respondi com um encolher de ombros.
Observou-me de cima a baixo. O que me deixou inquieto. Olhei-o de soslaio. Sem pronunciar nada.
Ganhei coragem e questionei-o sobre a sua vida após o alegado acidente. Respondeu-me que nada de extraordinário tinha ocorrido, à excepção de uma ou outra anomalia nas naves ou receptores. Disse-me que procedeu a mais viagens de reconhecimento. Inclusive deu-me pormenores da sua aterragem a um dos planetas, Gemini I.
— Quando viajamos inclusos no coração do cosmos, deixamos de respirar com normalidade, não sentimos os membros responderem-nos com a prontidão necessária. Por vezes não cremos no que os nossos olhos nos mostram. Será tudo verdade ou estarei a sonhar? Perguntamo-nos, dadas as maravilhas que encontramos. Já assistiu ao desfalecer de uma estrela, ou a erupção de um manto de cores, como se de um arco-íris se tratasse, no meio do nada, Dr.? Bem, naquele dia, eu, o Sargento Jansen e o Tenente Gordon entrámos pela primeira vez na atmosfera de Gemini I. Do espaço era uma esfera quase esverdeada, ao mesmo tempo quase violenta, linda. Mas na verdade deparámo-nos com o latejar de um enorme véu índigo. A força da gravidade era ligeiramente superior à que presumíamos. O jet ganhou uma grande velocidade, a trepidação da entrada gerou quase a sua destruição e a nossa morte. Aterrámos em sobressalto. Perdemos um dos motores de propulsão. Perdemos o contacto via rádio com a Estação Centauros. Gordon… o Tenente Gordon era um homem impecável. O gajo tinha… digamos que era destemido. Nada o detinha no cumprimento de uma missão. Pior do que ele era mesmo eu. Sempre fui obstinado, Dr. Não havia obstáculos à minha impaciência. Mas aquilo era diferente. Havia algo de errado com Gemini. Observámos ao nosso redor uma atmosfera anil sob um denso manto de nuvens. A essência inóspita de tudo dava-me arrepios. Mantivemo-nos resguardados nos nossos fatos espaciais, apesar do clima ser respirável. O solo era rugoso, como areia grossa e de uma cor vermelha pálida, como em Marte. A Lua mergulhava os seus contornos no silêncio da noite eterna. Desejava ir-me embora, mas não podia. Não demorou muito a sentirmo-nos em perigo, quando sem nada que o previsse, uma chuva ácida irrompeu. Trovões gigantescos surgiram no horizonte. Uma terrível tempestade de areia avizinhava-se. Corremos de volta para a nave, amedrontados. Levantámos voo de imediato e abandonámos o planeta. Tudo aconteceu demasiado rápido. Foi um choque para nós. Quase não sobrevivíamos ao enfurecer daquele casulo.
— Então crê que havia uma maldição ligada aos planetas gémeos?
— Tenho ainda pesadelos sobre Gemini. Sonho que fico inconsciente, perdi o rasto da nave e observo como uma tempestade se aproxima. Procuro abrigo e fico preso numa rede. Grito, tento libertar-me e um colossal monstro assoma, pronto para devorar-me.
Fonz notou que o dedo indicador da mão direita de Sinder não cessava de bater no tampo da mesa. Indiciava estar nervoso.
Sinder forneceu-me informações precisas de todo e qualquer aspecto relacionado com o assunto da aterragem, da cor, do ambiente do planeta. Estaria a inventar aquilo tudo? Sabia de antemão que jamais nenhuma missão tinha ancorado no dito planeta. Mais um enigma a juntar a tantos outros. Aquele homem estava a dar comigo em doido. Resumiu-me os seis meses em quinze minutos. Quem era aquele homem?
De repente, lembrei-me de lhe perguntar por Helena Belver e do jantar marcado. A sua face escureceu. O sorriso desvaneceu e o seu olhar perdeu-se por entre as memórias do seu passado.
—A bela Helena — suspirou . Ele temia que alguma coisa de mal pudesse ocorrer. O instinto feminino, dizia-me. Nunca amei nenhuma mulher como a amei a ela. Estava tão bonita naquela noite. O seu cabelo de oiro exalava perfume de rosas. O olhar era doce, a sua pele cetim e os seus lábios eram seda. Não a poderei esquecer — calou-se.
De seguida, sem que nada o fizesse prever. Levantou a face e voltou a fitar-me sorrindo.
—Agora que o noto, Fonz. As parecenças são extraordinárias.

* * *

Foi a última vez que vi Sinder Val. Entretanto, o caso foi encerrado e o nosso “fantasma” voltou para o lugar dos vivos com uma nova identidade. Aleguei no meu relatório que ele não constituía perigo para a sociedade. Não consegui resolver o caso. Haveria alguma anomalia na periferia dos planetas gémeos? Teria sido tudo falseado para extinguir a missão? Estaria a dizer a verdade, Sinder? Teria sido, efectivamente, vítima de um complot? Mas agora que já passaram alguns anos, penso: e se quando morrêssemos, o fizéssemos apenas numa dada instância ou dimensão? Continuaríamos a viver a nossa vida sem nunca nos apercebermos que tínhamos atravessado o umbral da morte. Enquanto que os nossos amigos e familiares nos prestam homenagem junto ao nosso sarcófago, num outro universo contíguo vivemos junto a eles sem contudo suspeitarmos o que estaria a ocorrer. Talvez Sinder, por algum motivo, não tivesse conseguido almejar a outra passagem. Viveu em dois mundos, sem nunca o perceber. Amou e foi amado nos dois mundos e a sua alma foi recuperada pelo corpo neste mundo.
Quanto ao segundo corpo presente na nave, por incrível que pareça, nunca encontrei registos nenhuns, nem nunca o questionei sobre o facto.

Reis Neutel