terça-feira, novembro 07, 2006

Poesia - Linhas e outras

Linhas
Linhas de permeio na velocidade atroz que só sabe cegar
Ideias materializadas no gesto vão e inútil que se segue
O séquito invisível das vozes de Além a querer chegar
A sombra da escuridão ausente que só na luz me persegue

Incessantes ruídos de mãos caídas me isolam na rua
Escurecido pelo cair da noite que só é noite em mim
Olho em volta mas de olhos fechados e vejo a estrada nua
De transeuntes motores e peões que se perdem assim

Procuro o que de procurar e se encontrar em mim é alheio
Imagens tangentes de quereres, razões e vontades distantes
Orgulho em brasa de gelo queimado no mais perdido meio
Desprezo abandonado quebrando as correntes perdidas, errantes

Alma a sentir - Essência a reconhecer
Nós envoltos em gritos surdos e mudos espasmos
Toda a verdade é inegável hipocrisia e sarcasmos
Toda a juventude se ri do seu próprio envelhecer

A palma, o louro, a prata, o ouro
Odes à ilusão de se Ser e ser alguém
De se achar que se é não se sabe quem
De se esperar um falso passado vindouro

Questões são ilusões
Respostas são impostas
Não saber não é viver
Querer saber é enlouquecer

João Tavares

*

Medo?

Medo é coisa que não tenho
Medo é algo que me ultrapassa
Está muito para além de mim
Não importa o que eu faça

Vivo os dias sem saber
O que é ter medo a sério
Como se fosse Napoleão
Na véspera do fim do Império

Não sei o que é temer
Não lutei em Waterloo
Não escondi o meu medo
Bem no fundo do baú

Nem o escondi também
Num figo de capa rota
Nenhum arrepio na espinha
Me afectou em Aljubarrota

Lá não fui combater ninguém
Por isso ninguém temi
Fiquei sentado à lareira
Por isso não arrefeci

Receio é palavra estranha
Não defendi nunca el-Rei
Lutar até à morte
Foi o que nunca jurei

Mas lutar pela minha vida
Faço-o sempre sem temer
Apesar de dia a dia
Não saber se vou vencer

Medo de me perder não tenho
Não tenho medo de acabar
Talvez encontre, talvez, quem sabe?
O meu medo de chorar

João Tavares

*

HOMENAGEM

1. Opiário Revisitado, parte 36

Tarde eu acordo
Para o dia já começado
Encontro-me a bordo
E sinto-me tão cansado

Tarde para o dia
Mas cedo para mim
Que dormido estar podia
E não desperto, pr’aqui assim

Volvo uma vontade
Um quase querer erguer
Aperta-me uma saudade
Do meu doce adormecer

Deixem-me descer
De bordo deste navio
Nem todo o sol a arder
Me tira o meu frio

Abro as escotilhas das retinas
De escuridão estou cercado
Retiro, enfim, as densas cortinas
Que me amarram a todo o lado

Ergo o corpo, ergo as mãos
Faço tudo com muita calma
Mas cai-me por todos os chãos
De bem alto a minha alma

Que dor me fere os olhos
Que luz me violenta cega
Preciso de sombra aos molhos
Da escuridão que em mim refrega

Todo este tão vivo mal-estar
Todo este ao contrário de mim
Dia após dia, deitar, levantar
Isto há-de ter um fim

Saio finalmente a duras penas
Uma nova dor me vem acometer
Um desejo me invade apenas
Só quero ver o sol morrer
(...)

2. Frio
Frio. Está frio. Estou frio.
Estou frio por fora e por dentro
Eu, que sou o meu centro
Deste Mundo em que crio

Esperanças e ilusões
Sonho com o Futuro no Passado
Sinto-me cada vez mais isolado
Mártir das minhas frustrações.

Canto para mim num choro triste
As penas de minha alma
Eu ter sossego e calma
É tudo, menos o que existe.

Quero ser simples, enfrentar o mundo
Sem fugir. Quero sentir o que sei
Ser muito, mas em mim Lei
Que pouco a pouco me leva ao fundo.

Frio. Está mesmo frio.
Que importa? P’ra isso há aquecedores
Daqueles eléctricos, de muitas cores,
Vistos com terror no estio.

Aquecedores do corpo, fáceis de encontrar
Mas e da alma? Há? Onde estão?
Algo que diga ao coração
Que desligue o seu fio do de pensar.

Faço sempre as mesmas cenas
E não digo nada de jeito
Mas para todo o efeito
Eu sou só eu: apenas.

Não sou nenhum génio
E será que queria sê-lo?
Descanso não poderia nem vê-lo
Mas ele está aí, com o novo milénio!

Triste como tudo
Sem razões para o estar
Neste campo-mundo a lavrar
O meu silêncio, quedo e mudo.

Queria ter forças para lutar
Seguir em frente com a vida
Sem saber tê-la já perdida
Só à espera de acabar.

...Ter algo que me diga
Que vale a pena lutar...


3. Sou só eu...
Sou só eu, só um
Que me vejo e me sinto
Ao dizer a verdade, minto
Por saber não ser nenhum.

O Infinito, o Impossível,
Sabê-los, sonhá-los, não os ver
Com a Alma, com o Ser
Que em mim é invisível.

Dia após dia, a espera prevalece
É só uma questão de tempo...
Um desperdício de sentimento...
A vida desaparece.

Querer desejar, porém saber
Que de tudo o que é sonhado
De ter o mundo conquistado
É nada disso poder ser.

Um calar, um pranto
Por entre lágrimas murmuradas
Que logo são caladas
Mas que ainda choram tanto...

Se me fosse permitido
E a meus olhos chorar
E só um pouquinho aliviar
A tristeza onde sou perdido...

Mas não. Esperanças leva-as o vento
Desejos consomem-se e desaparecem
Quereres, enfim, todos desvanecem
E dão lugar ao tormento
De saber que o Fim é certo
E cada vez está mais perto.

Dedicado ao Mestre que, onde quer que o Coração doa
É sempre mais que ele-só, nunca só Fernando Pessoa


João Tavares