terça-feira, novembro 07, 2006

Prosa - Sancho

“O Povo Completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos.
Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades”

Almada-Negreiros

Era a hora depois do jantar. O pai, D. Afonso, sentou-se confortavelmente na sala, como fazia sempre, depois dum estafante dia de trabalho. Virando-se para o seu primogénito, Sancho, de oito anos, perguntou-lhe que tal lhe tinha corrido o seu dia de brincadeiras. O pequeno, que estava de férias, respondeu que lhe tinha dado vontade de ir passear pelos campos depois do almoço. Contou ao pai como foi percorrendo os outeiros na direcção do rio que passava lá em baixo, depois do lugar dos caseiros. Quando chegou ao pé do rio deparou-se com uma rapariguinha que chorava. Ao vê-la assim, Sancho perguntou-lhe qual o motivo para o seu triste estado. A rapariga disse a Sancho que tinha acabado de perder a sua cestinha de vime, que muito estimava porque era o orgulho da família desde o tempo de sua avó.
“Mas onde a perdeste?” – indagou Sancho.
“Aqui mesmo, ao pé do rio!” – soluçou a rapariguinha – “Só me sentei um tempinho para retomar o fôlego a caminho da feira... pousei-a ao pé de mim... oh, que tristeza!... quando abri os olhos... como sou desgraçada!... abri os olhos e... que é da minha rica cestinha?... ooh... deve ter caído ao rio! Pobre de mim!...” – e assim continuou a lamentar-se. Sancho perguntou-lhe se ela já tinha procurado a cestinha, se tinha a certeza que esta caíra ao rio. A rapariga respondeu entre soluços que nem valia a pena procurar, que só sabia que ela estava perdida e que a não veria nunca mais.
“Mas era assim tão valiosa, a cestinha?” – perguntou Sancho. A rapariga respondeu-lhe entre lágrimas e suspiros que pertencera à sua avó e que fora, havia uns quarenta anos, tida como a mais bela cestinha em toda a feira da vila, lá por uma quarta-feira de cinzas. Sancho ainda tentou dizer-lhe que não podia estar totalmente perdida, que a ajudaria a procurar aquela relíquia do passado, mas a rapariguinha apenas chorava a para ela já irremediável perda, insistindo na total e absoluta inutilidade de qualquer esforço de recuperação daquele tesouro do passado.
“E se fosses comprar uma cesta nova, em vez de ficares aí a chorar pela velha?”
Mas a jovem já nem sequer ouvia Sancho. Limitava-se a chorar o seu triste fado, o de lamentar amargamente, lavada em lágrimas, a perda da sua cestinha.
Perante o insucesso dos seus esforços por chamar a jovem à razão – ainda que fosse a razão de uma criança – Sancho decidiu continuar o seu caminho. Mais adiante deparou-se com um homem que estava metido dentro dum buraco até ao pescoço.
“O senhor está bem?” – perguntou Sancho.
“Estou, rapaz, só um bocadinho apertado.”
Ao ver a cara de espanto do menino, o homem decidiu explicar-lhe qual a razão pela qual se encontrava ali:
“Sabes, é que ontem à noite lembrei-me que queria ir à vila comprar meia dúzia de gambozinos, que ouvi dizer que eram muito bons para ter em casa. Mas eu queria era lá chegar antes que os comprassem todos. Assim, antes do sol raiar, fiz-me ao caminho. Mas como ia com pressa de chegar antes dos outros, nem se me ocorreu trazer lanterna, pois cuidei que sabia bem o caminho. Por infortúnio, quis Deus que me aparecesse este buraco pela frente, onde estou metido até ao pescoço.”
“Quer que eu vá buscar ajuda? É que eu sozinho não consigo puxá-lo.”
“Não, não, deixa estar. Esta já é a terceira vez que eu fico preso neste buraco este mês. De todas as vezes fui sempre capaz de me desenrascar sem ajuda de ninguém. Se fosses chamar alguém, com certeza eu já me teria posto a andar daqui para fora quando cá chegassem.”
Perante tão convincentes argumentos, mais não restou a Sancho senão retomar o seu caminho. Daí a pouco, enquanto ainda pensava lá com os seus botões no caricato da situação anterior, encontrou um homem recostado numa árvore. Pelo aspecto dir-se-ia que estava a dormir. Mas não estava. E dirigiu-se a Sancho:
“Eh lá, moço, onde vais com tanta pressa?”
“Pressa? Mas eu não tenho pressa. Estou só a passear pelos campos.”
“Pois a mim parece-me que vais mas é com pressa.”
Sancho reparou que o homem estava muito bem vestido.
“Estás a olhar para a minha roupa, não é? É que hoje é o dia do meu casamento.”
Sancho olhou para ele, admirado.
“E então o senhor não vai para a igreja?”
“Não, ainda não. Tenho muito tempo. Agora estou aqui a descansar um bocadinho. Depois, lá mais para a tardinha sou capaz de ir andando para a igreja.”
Sancho ficou estupefacto.
“Então e a sua noiva?”
“Ah moço, não te preocupes, que ela espera. Até porque eu sou o único homem lá da aldeia em idade de casar, por isso ela tem mesmo de esperar por mim, e é se não quiser ficar solteira! E acredita que ela não vai querer ficar solteira, tendo como noivo um rapagão como eu! Vá, agora vai lá dar o teu passeio e deixa-me fazer uma soneca, que eu hoje estafei-me a dormir toda a manhã.”
Tendo retomado o seu caminho, e ainda mal recomposto de mais este estranho encontro, Sancho viu uma mulher com uma escada a tentar descer um monte para ir apanhar uns morangos que estavam ao fundo dum outeirinho. O problema é que a escada era curta e não chegava até lá baixo, onde estavam os morangos.
“Ó, ó pequeno, dá-me aqui uma mãozinha e segura-me na escada pelas pontas, para eu ir lá baixo apanhar aqueles moranguinhos tão lindos. Quero fazer uma sobremesa ao meu Joaquim!”
Sancho observou que a escada era curta demais para assentar firmemente no fundo do outeiro.
“Olhe que a escada não se segura cá em cima!” – disse Sancho.
“Claro que segura, rapaz, só tens de agarrar aqui nas pontas e esticar-te, enquanto eu chego lá baixo.”
“Mas eu não posso com o seu peso e...”
“Podes sim Senhor, rapazinho, só tens é de segurar a escada para eu não cair.”
Sancho via o absurdo da situação: eles estavam ambos no topo dum pequeno monte, os morangos num outeiro bem mais fundo do que a escada; e a senhora queria que ele segurasse a ponta da escada para ela descer?!
“A senhora desculpe, mas não posso ajudá-la. Acho que era melhor pensar numa maneira melhor de ir lá baixo buscar os morangos.”
Dizendo isto, Sancho foi-se embora. A senhora ficou ainda a dizer que esta juventude estava perdida, que já não se podia contar com ninguém, que a melhor maneira de ir buscar aqueles morangos era, sem dúvida, com uma escada...
“E depois, como já estava cansado, vim para casa!”
“Muito bem, que dia tão atarefado que tu tiveste!” – disse o pai, D. Afonso, Rei de Portugal.
“Sabes, Papá, eu gostava de poder ter podido ajudar aquelas pessoas que vi esta tarde.”
“Olha, meu filho, é o teu bom mas ingénuo coração que te faz pensar assim. Bom era que essas pessoas quisessem ajudar-se a si mesmas! Sabes, todos os dias parto para a batalha contra os Sarracenos, e sei que os Portugueses que combatem a meu lado são capazes dos mais grandiosos feitos. Todos os Portugueses sem excepção são mais do que capazes de levar a cabo grandes obras, até mesmo nos mais pequeninos pormenores do seu dia-a-dia. Basta que queiram!”

João Tavares