terça-feira, novembro 07, 2006

Prosa - Amanhã, Talvez Depois...

- Você está com uma pança hoje! Vai nascer o menino? – a pergunta acompanhada de uma luminosa dentadura excessivamente à vista mais não lhe pode irritar. “Fizesse ele ideia do porquê desta coisa que parece prestes a rebentar…”. Não houve resposta, nem amostra de sorriso, há uns anos atrás era homem para deitar lume pelas ventas. Hoje não.

Sei que tenho de estar aqui, mas sinto tanta falta de não estar, de abrir os olhos e gostar de o fazer, não de desejar não os ter. Tenho medo, está tudo tão vazio à minha volta. O meu olhar está suspenso no que não vejo. Vogam nadas por entre outros nadas, nadas que ferem por nada dizerem. Cravam com pungência, eles próprios, as unhas no meu corpo. Sinto-as sofrer, a elas, aos nadas. Não na pele, mas é só aí que as queria sentir. Só.

- Não sei se está a ver…? Ó Sr. Manuel, por amor de Deus, palavra de honra! Veja lá isso, a sério. Sabe que eu… Ali!... ah?! Ali!... Respeitabilidade, ah!? Honorabilidade, ah?! Hombridade! Está a compreender? Sou um homem cheio de hombridade! O indivíduo chega lá e tal, o esquema montado, ó pá… bola ao poste, deu o jogo ao inimigo... – o ritmo tão avassalador quanto incompreensível do Sr. Sinval deixa Manuel ligeiramente extenuado. “Isto é muita consumição!”, lamenta interiormente em tom de desespero.

O mar, absorto, compenetrado numa bela e assustadora agitação, sempre foi companhia, para o bem e para o mal. Companheiro e depósito de coisas tantas que meu Deus! Um grande e único corpo físico renovador de corpos e espíritos! - Se não foras tu, coisa imensa que enoja como tudo o que é imenso, se não foras tu… - O diálogo flui multiplicando-se em jogos de linguagem vários, únicos, originais, mas nunca fracassados. O mar emana palavras que só Manuel compreende. Manuel, mãos em direcção ao céu, esbraceja ridiculamente, ridiculamente para todos menos para o mar. Só ele sabe o que lhe é dito. Dia após dia, após noite. O mar come tudo o que lhe roubam, nesse desespero come tudo o que lhe oferecem. Não sabe, não sente, não muda, muda tudo, mas fica o mesmo.

- Ai, Sr. Manuel, eu dava-lhe tudo… se você me ajudasse, eu nem sei! Eu dava-lhe tudo! Tudo! – O ar militar da dona Osminda evaporou, o cabelo à recruta deu lugar a uma mulher indefesa e suplicante. Lindo! Extremamente comovente. Santos nem deitado se segura, de tanto rir. Mascara-se com um “tenha calma, dona… dona… Osminda, isto é muito complicado, não posso fazer nada, mas você é rato e vai ver que ela vai mudar, ela gosta de si…” – Ai Sr. Manuel, Deus o ouça! – “Definitivamente, estou fodido!”

Não há muito de novo na vida de Manuel, os seus amigos de sempre nunca o abandonaram. Assim tem sido com o frio, a chuva, as dores, o sangue, o sono, a dúvida, a fome, o abuso, a admiração em pacotes colada à pena. Assim tem sido, sempre, desde que se lembra de si. A hora que tudo leva está a chegar, desta vez sim, porque a outra não chegou a ser. Nem a outra…
O mundo ali. Todo ali. Naquele agora, naquele desafio que lança a quem para ali o lançou. A religiosidade carrega-o, e ele a ela, o problema é que ele é leve, ela nem por isso. Isto dos destinos e da sua injustiça, nunca o incomodou, até incomodar. E ela com isso…

Os olhos cortados ao meio pelas pálpebras caídas denunciam a visão que tem. A realidade em dois, cortada e cortante por ser cor e negro e não apenas cor. Maldita a hora que te disse sim! Maldita a hora que mesmo se agora fosse jamais diria não!

- É, eu sei, gru gru, piu piu pardais ao ninho! Meu filho, o homem é tanto maior quanto a sua dimensão de religiosidade! Por falta dela é que se olha para uma pata partida de um jeco como aquilo que empenou a chapa do carro e não o contrário! Por falta de religiosidade gente como tu morre enquanto se dá de comer a um qualquer micro-robot de brincar!
- Tem razão, mas se formos entrar por aí, não saímos mais! As pessoas são tão vastas e complexas nas suas motivações, dentro de si mesmas, Sr. Santos… Há nexos estruturais entre os seus actos tão incompreensíveis quanto reais e isso…
- Meu rapaz! – interrompe Manuel - O que dizes, tecnicamente tem um nome: paleio para entreter! Cala-te e não me fodas a cabeça!

O mar acordou, espreguiça-se até às pontas dos dedos. Manuel, petrificado, agita-se insuportavelmente. Quer sair dali, sente-se correr em círculos doentios. Não se mexe, não pode. Chegou ao momento em que nada sabe, em que tudo é dúbio. Está só. É livre. A hora era agora. Era, já foi. Amanhã, talvez depois…

André Faia