terça-feira, novembro 07, 2006

Letras sobre Letras – Italo Calvino

Um olhar quase académico sobre "Se numa Noite de Inverno um Viajante", de Italo Calvino
(e porque não?)

1. Bastidores

No âmbito da Literatura dita canónica, versão depois de Cristo, os leitores e a leitoras em potência ou de facto (e mesmo de gravacta) têm à sua disposição uma série de textos que podem escolher, com o fim de presentear os seus olhos, as suas mentes, a sua curiosidade e até mesmo aquela ida mais demorada ao WC. No entanto, muitos desses textos possuem uma característica muito particular, que é a de serem pouco acessíveis a muita gente, quer seja por estarem no alto da mais alta estante da biblioteca, porque sempre ouvimos dizer que eram chatos, ou simplesmente porque temos mais que fazer da vida. Certo, é justo. Mas há – digo eu, que ainda acredito que o Coelhinho da Páscoa é, com certeza, um cavalo marinho disfarçado (pois se ele põe ovos!!!) – também aquelas pessoas que se calhar nunca leram um texto porque nunca lhes passou pela cabeça fazê-lo. Tendo isso em conta, e não querendo obrigar quaisquer olhos a ter absoluta necessidade de invocar Leibnitz para conseguir não desesperar (leia-se, não ter de ler sobre a mesma coisa repetidamente), optei por vasculhar uns textos que tinha – e curiosamente ainda tenho – perdidos no meu domicílio e escolhi reler, anos e anos depois, o que se segue: “Se numa Noite de Inverno um Viajante”, do cubano Italo Calvino, e decidi partilhar aqui um olhar sobre ele. Se quiserem podem ficar por aí porque, apesar de não estar contemplado na selecção (que não Nacional) de textos para a típica conversa de café de todos os dias, estou em querer – porque querer é poder – que desta escolha não advirão tão grandes males ao mundo como os que afligiram Cândido, o Dr. Pangloss ou a menina Cunigundes…
2. Cenários

Muito boa noite, caros espectadores. Sejam bem-vindos a mais um – esperamos – interessante exercício de conjugação de ideias com o intuito de fazer com que façam algum sentido quando ligadas entre si. Já agora, se para si não for de noite, não se preocupe, algures em Hades há-de sê-lo. Temos hoje reservada, especialmente para si, uma magnífica justa oratória, bem ao estilo de Pico della Mirandola e Savonarola. No entanto, em vez de dois gladiadores orais, dispomos de nada menos de sete – os sete leitores! Hum? Hm...bom, lamentamos imenso, mas acaba de nos chegar a notícia… sim, bem, infelizmente já não nos vai ser possível realizar a justa oratória, pois parece que dois dos oradores foram contactados por Stanley Fish e estão a tentar mostrar-lhe que a história do Califa Harún ar-Rashíd afinal é um poema… um outro foi raptado por Roland Barthes e, como fora autor da frase “Quem sois vós?!”, acabou por morrer e a sua alma repousa agora com Platão no mundo perfeito das Ideias… o quarto descobriu, tal como Schopenhauer, que “o mundo é absurdo” e foi-se embora. Os quinto e sexto foram procurar Borges e o seu “Eu”. O sétimo ficou em casa à espera das doze badaladas e da “Doce, doce Leonor”. Sendo assim, e já que pagámos pela transmissão, convidemos antes o leitor principal do texto “Se numa Noite de Inverno um Viajante” e conversemos com ele. Alguma objecção? Não? Então vamos lá…

3. Palco – uma mesa de café, duas cadeiras, duas canecas com café, ideias

“Olá caro leitor principal, seja bem-vindo”.
“Olá. Obrigado pelo convite. É um prazer estar aqui”.
“Por favor, conte-nos um pouco da sua experiência no papel de leitor nesta obra.”
“Com certeza. Tudo começou na página inicial, com o princípio, o alfa, o génesis…”
“Aham… pois, não é bem isso que eu quero dizer. Por favor fale-nos do texto em si, do papel dos intervenientes, do propósito do texto, das intenções…”
“Muito bem, porque não? Olhe, acima de tudo este é um texto que conta uma história; essa história ilustra uma realidade múltipla, que é a da elaboração (escrita) de textos e a sua leitura. O próprio texto tem uma configuração peculiar, uma vez que se vai progressivamente construindo uma narrativa sobre os processos de construção e de leitura de textos, afastando a tradicional abordagem da narrativa linear”.
“Diria então que este revela a interacção entre obra escrita e obra lida?”
“Mais do que isso, slurp (sorve café), eu diria que revela a relação íntima e indissociável entre autor, leitor e texto.”
“Poderia explorar melhor essa ideia?”
“Tentá-lo-ei. Vejamos, eu desempenho o papel de um leitor interpelado por um narrador, levando-me a dirigir-me a uma biblioteca na qual interajo com mais sete leitores.”
“Sim, nós sabemos. Aliás, só não estão aqui hoje por razões de força maior.”
“Foram recrutados por Homero para ajudar a resgatar a bela Helena?”
“Não, não obedecem a Heitor nem a Agamémnon! Simplesmente tiveram mais que fazer.”
“Compreendo. Bom, voltando à nossa conversa, slurp, o texto é uma espécie de fábula sobre a leitura, na qual o meu diálogo com os outros leitores acaba por ir mostrando quão complexo e diversificado é o processo de leitura. Cada intervenção é uma peça no todo de uma reflexão acerca de como se deve ler uma história. Sabe, antes do diálogo a oito, eu tinha a ideia de que ler era um processo com princípio explícito, um desenvolvimento sustentado e um fim final, concludente e definitivo. Pensava que cada livro era uno e totalmente diferente de todos os outros. Julgava que cada livro continha em si uma história que me seria contada. Acreditava que em cada livro eu juntaria naturalmente todos os pormenores e veria o todo do conjunto. Mas afinal não é bem assim. Há histórias que, tendo exactamente o mesmo corpo gráfico, são diferentes de cada vez que se lêem, por ser também diferente a disposição de quem lê – e assim a forma como absorve a leitura.”
“E só foi isso que descobriu?”
“Longe disso. Slurp, pode pôr-me mais café, por favor? Obrigado. Não, à medida que os outros leitores falavam, fui-me apercebendo de que a ideia com que eu cresci, de que a leitura assentava na linearidade da narrativa, que era algo de virginal, genésico, algo que naturalmente se impunha, afinal não é assim. Afinal parece-me que agora só existem no mundo histórias que ficam em suspenso e se perdem pelo caminho. A leitura é um processo, podendo até ser um labirinto. E o patrão, o Sr. Calvino, usou-me como leitor modelo para mostrar isso mesmo.”
“Deduzo das suas palavras que o seu papel é o de aluno, de aprendente…”
“Sem dúvida, mas sou também um ensinante, já que pelo meu exemplo se aprende a ser leitor. Eu sou como um capitão de mar que vai navegando pelos oceanos sem fim – tal como o leitor pode navegar pela imensidão das possibilidades de leitura. No entanto, toda a navegação que não acabe no fundo do mar, deve acabar num porto. O meu porto foi a biblioteca municipal. Nela fui procurar, em metáfora, os dez barcos que queria capitanear: os livros. Mas não os encontrei. Encontrei, sim, os sete leitores de que já falámos.”
“E como foi que encetou conversa? Houve uma cena de pugilato por baixo da janela, como a que é descrita no prefácio do livro do ajudante de guarda-livros Bernardo Soares?”
“Não, slurp. Cada um deles começou a falar à vez, como em qualquer Fédon ou Banquete, simplesmente expondo a sua perspectiva. O primeiro leitor abordou-me quando os nossos olhos se cruzaram. Ele vagueia pelo ar com o seu olhar – que não é por acaso – azul. Para ele, a leitura reside essencialmente no estímulo que um par de linhas injecta à sua imaginação e ler verdadeiramente é encontrar elos para além do que propõe o texto. A leitura permite-lhe ler muito para além do livro, permite-lhe encetar um itinerário de raciocínios e fantasias que (percorre) até ao fundo, afastando-se do livro até perdê-lo de vista, pelo que o livro mais não é que a mola que o projecta para uma leitura do mundo.”
“Muito interessante. E depois?”
“Slurp, depois pronunciou-se o segundo leitor, que tinha olhos de cera e rosto avermelhado, invocando uma imagem de cansaço, que poderia advir-lhe do facto de a sua leitura lhe exigir um esforço ininterrupto. Ele achava que à leitura deve dispensar-se toda a atenção e mais alguma, não se devendo deixar escapar nem um pormenor, por mais mínimo que seja, nem os segmentos mínimos, aproximações de palavras, metáforas, nexos sintácticos (…). Segundo a sua concepção de leitura, veiculada através de vocabulário ligado à física, o importante é verificar como as partículas elementares constituintes do texto se relacionam e formam um todo. Da necessidade de colher cada pormenor advém a impossibilidade de desviar o olhar do livro; este funciona como um sistema, cujos elementos se inter-relacionam plenamente. Tem de haver uma unidade que congregue toda a heterogeneidade, qual máquina que gira sobre um eixo nas palavras de Edgar Allan Poe. A leitura deste leitor nunca tem fim, já que de cada vez que lê parte sempre à descoberta de um novo pormenor, de uma nova revelação, uma iluminação por entre as dobras das frases, das quais diz que "não posso distrair-me se não quero descurar nenhum indício precioso" – reler o texto é conhecê-lo cada vez mais.”
“Acha que ele era um fanático adepto de Álvaro de Campos? Digo-o pela aparente militância obsessiva pela vertente maquinal e industrial do texto.”
“Não me parece. Talvez fosse bem mais um adepto das histórias de detectives, esse expoente máximo do Realismo, nas quais toda a acção e narração se processa como se de um sistema lógico e científico se tratasse, no qual a lógica impera e a atenção ao pormenor é vital – ou mortal, se falarmos de Agatha Christie ou de Sir Arthur Conan Doyle… mas tudo isto são suposições, certo? Adiante, slurp. Já que falamos de adeptos, permita-me avançar a hipótese de ser o terceiro leitor um adepto de Todorov e da sua Poetique, na qual ele diz ser toda a leitura de um texto uma reescrita do mesmo, dado que ler um texto é construir um sentido para o mesmo. Digo isto porque o próprio terceiro leitor confessa sentir uma necessidade de reler os livros que já leu, mas em cada releitura parece(-lhe) ler pela primeira vez um livro novo, o que equivale a dizer que quanto mais lê um livro, menos o conhece – pelo que contraria totalmente a posição do segundo leitor. Duas leituras de um mesmo livro jamais serão iguais, pois as emoções que o leitor procura sentir novamente com a releitura, não as encontra. A sua experiência já é diferente, as suas expectativas também, assim como as suas emoções e conhecimento. Desta forma se pode concluir que para o terceiro leitor o mais importante na leitura, que é sempre diferente, é o processo em si, e não o objecto, que é inalcançável. O grande desafio, o grande prazer reside na própria leitura, não no objecto da leitura.”
“Muito bem. E daí para diante, que mais ouviu dos seus interlocutores?”
“Olhe, sluuurp, o quarto leitor avança uma posição assaz curiosa, segundo a qual toda e qualquer leitura nova que ele faça mais não é que um acréscimo ao grande livro que resulta da soma de todas as leituras que ele já fez. Ele acha que cada um de nós contém em si um livro geral, que resulta de uma auto-composição progressiva e constante. Quando se lê uma obra nova, todas as anteriormente lidas se alteram na nossa memória literária e se ajustam ao novo somatório, sendo que, desta forma, cada leitor é por si mesmo autor da sua própria tradição literária – afirmação que muito gosto faria a T. S. Eliot se a pudesse ouvir/ ler. Cada parte do livro geral é necessária para entender o todo, como se de um sistema se tratasse. A acumulação de leituras funciona de forma centrípeta e não centrífuga, uma vez que a acumulação se faz de fora para dentro, já que cada livro novo (que vem de fora) se incorpora no núcleo do todo. Dir-se-ia até que ele poderia chamar ao seu grande livro um composto.
“Um composto? Mais ou menos como esta mistura solúvel de café que não paramos de sorver?”
“Bom, eu diria mais como a Enciclopédia elaborada por inúmeros iluminados da época das luzes… mas passemos ao quinto leitor, que me expôs o seu conceito de leitura dizendo que também ele comunga da ideia do leitor anterior no que à existência de um grande livro diz respeito. No entanto, este é mesmo o único ponto que ambos têm em comum. O quinto leitor acredita que cada nova leitura que faz é um eco do texto original que existe para lá do tempo, que mal aflora nas (suas) recordações. Segundo ele, existe um texto primordial, um arquétipo, do qual derivam todos os textos que existem. O objecto da sua leitura consiste em aproximar-se mais e mais da pureza da primeira história, da qual mais não restam do que vagas e difusas recordações – um pouco à semelhança do que sucede na Alegoria da Caverna de Platão, segundo a qual vivemos num estado de recordação do sítio de onde provimos antes do nascimento. Durante a infância ainda temos memória desse local arquétipo, mas com a idade as recordações tornam-se cada vez mais vagas e difusas, ficando nós apenas com os ecos longínquos da nossa génese, tal como este mundo no qual vivemos não passa de uma cópia de ecos esbatidos do mundo perfeito, onde residem as Ideias. Dessa mesma forma o quinto leitor procura sem alcançar o livro da sua infância, reconhecendo que o que dele me lembro é demasiado pouco para o reencontrar. Para sempre viverá na nostalgia da essência, da história perfeita da sua infância, que agora está perdida. Reparei ainda que este leitor, lá na biblioteca municipal, estava sentado atrás duma pilha de volumes encadernados, como se esses livros o emparedassem, à imagem do que fazem as paredes da caverna da alegoria platónica, aprisionando-o enquanto perscruta as sombras fugidias do livro original.”
“Algo tenebroso, esse quinto leitor. Confesso que me deu alguns arrepios ouvir falar dele.”,
“Sluurp, acredito que lhe daria mais arrepios visitar certas províncias da Roménia pela mão de Bram Stoker… mas isso são estacas para outros corações. Podemos passar ao sexto leitor? Era o que estava em pé passando em revista as estantes de nariz levantado e para quem a promessa de leitura é o mais interessante; para ele o que importa é a acumulação de expectativas, a promessa de aventura, o antes da leitura, não tanto a leitura em si. Eu compará-lo-ia a um Huck Finn que parte à descoberta não porque precisa de fugir, mas porque quer abandonar-se nas asas da imaginação, quer deitar-se na sua jangada ao descer o Mississipi e olhar o céu, vendo nos desenhos das nuvens apenas pontos de partida para nuvens maiores e mais recortadas, antevendo o mar, antevendo navios, antevendo as ruas da grande cidade de Nova Orleães, antevendo encontrar os tesouros de piratas, e tudo isto sem ter ainda saído das margens do Mississipi.”
“Esse sexto leitor é, portanto, um sonhador, um construtor de castelos nas nuvens. Quer mais café?”
“Não, obrigado. Sim, algo do género. Totalmente o oposto do sétimo leitor, para quem o fim é o mais importante, mas o fim último, o verdadeiro, (…) o ponto de chegada a que o livro quer levar, o telos. Este é um leitor com uma posição muito pragmática. Contrapõe-se também ao segundo leitor, para quem, relembramos, não havia qualquer fim. A concepção de leitura deste sétimo leitor é utilitarista e transitiva, e pode equivaler a dizer que o processo de leitura em si não valeu de nada. Sem pudor, atrevo-me a dizer que a posição do sétimo leitor poderá levar a certos perigos dela inerentes, sempre e desde que se perca a noção de equilíbrio e equidade do que se lê e do que se quer ler para lá do fim. Relembro com alguma apreensão o que sucedeu a tantos incautos que beberam das palavras de von Clausewitz a ponto de acreditarem que a guerra tinha mesmo um carácter higiénico e que era absolutamente necessário despoletá-la, achando que esse era o fim último que o autor advogava. Temos na nossa História a Primeira Guerra Mundial para provar que "Da Guerra" tiramos todos os monstros escondidos na Caixa de Pandora e que, tal como nela, também a Esperança fica lá dentro bem escondida.”
“Pois, dito assim… mas diga-me, como é que acaba a história?”
“Ora bem, depois de ter acabado de ouvir todos os sete, expus aquilo que considero ter sido a minha aprendizagem, isto é, opus a minha crença original do que era a leitura à minha nova visão, reconhecendo que não é possível separar uma história de outra, de ler um livro de princípio ao fim e ficar por aí. Parece-me que agora só existem no mundo histórias que ficam em suspenso e se perdem pelo caminho. Para o provar pode ver-se que o final da história assinala o início de outra, a do Califa Harún ar-Rashíd, à qual se segue ainda outra, da qual apenas se conhece o início. Todo o texto é composto por histórias que começam e logo ficam em suspenso, dando lugar a outras. Este texto bem pode ser uma metáfora do mundo e mesmo das nossas vidas, nas quais histórias se sucedem a histórias sem nenhuma delas alguma vez ter um fim definitivo.
“Mas o fim foi, digamos, do mais tradicional possível, não?”
“Tem razão. No fim casei com a Ludmilla e isso veio funcionar como o deus ex machina que resolve todos os conflitos pendentes e remete para o final característico das comédias, sendo que ao universo da obra são devolvidos a harmonia e o equilíbrio. Desta forma se perpetua a vida e se admite a inevitabilidade da morte.”
“Pronto, muito obrigado pela sua inestimável presença aqui no nosso programa. Aceite desde já os meus parabéns pelo seu papel e boa noite.”
“Pois, o problema agora é que não vou conseguir dormir nada, sabe? É que para além de ter bebido quase um litro de café, estão a começar a nascer os dentes ao Ludovico Segismundo e hoje é a minha vez de ficar a tomar conta dele. Ainda assim, obrigado pelo convite e boa noite.”

João Tavares