terça-feira, novembro 07, 2006

Editorial

Sombras etéreas materializam-se

-1-

Novembro é o mês dos dois “1”, ou duplos “1”: é o 11º mês do ano, pelo que é o primeiro da primeira dezena – daqui o duplo “1”, ou o duplo início. É também o mês que começa com o dia 1 (sim, é verdade que esta não é característica exclusiva de Novembro, pois que todos os meses começam com o seu próprio dia 1), que para quem vive no Portugal dos nossos dias é sinónimo de “dois em um”, sendo que o primeiro desses dois “uns” é o feriado que o Estado concede ao Povo por nele se assinalar, no calendário Litúrgico, o Dia de Todos os Santos; o segundo “um” é a vantajosa coincidência do feriado estar tão pertinho do dia dos Fiéis Defuntos, que se assinala no dia anterior, 31 de Outubro, mas cujas implicações rituais e religiosas se transportam sabiamente para 1 de Novembro porque, assim, nem se falta ao trabalho para ir pôr grinaldas e velas no cemitério, nem se falta ao cemitério para não ir pôr grinaldas nem velas no local de trabalho, ergo, “dois em um”. Neste caso concreto temos ainda a observar a curiosa relação entre o dia oficial destinado aos Defuntos no calendário (31 de Outubro) e o transporte do mesmo para 1 de Novembro, que se poderia traduzir – caso eu percebesse alguma coisa de Psicologia das massas – numa tentativa de sublinhar que se acredita, ou se quer acreditar, que a passagem dos entes queridos para a exclusividade do plano metafísico não é um fim de ciclo (simbolizado pelo dia 31 – fim de mês) mas sim um princípio de ciclo (simbolizado pelo dia 1).

Outro duplo início que este mês assinala é o da Orgânica, que nele vê surgir o Número Um, ícone indomado dum grito de recém-nascido a assinalar as suas primeiras pegadas de gigante em solas de pequenino rizoma a brotar da terra da imaginação. Mas este Número Um é o re-nascer e não o nascer da Orgânica, cuja essência foi já bafejada pela luz da existência nas asas do Número Zero de Outubro. Assim, este debutar primevo é nada mais que o desabrochar de uma flor que já se desfolhou arautamente.

Qual jogo de futebol que recomeça com o apito inaugural de uma segunda e virginal parte, qual primeiro capítulo de um romance novo que se segue ao genésico prefácio, qual borboleta que se desprende nascidamente do casulo onde encetou o seu segundo conceber-se, eis que também nós, arautos das Letras que queremos renascidas, damos início ao nosso segundo alvorecer – o Número Um.
Que comecem os espasmos de não-passividade militante!
E, já agora, conduza com cuidado.

-2-
No mês em cujo fim se assinala o 71º aniversário do desaparecimento de Fernando Pessoa, um dos Maiores das Letras Portuguesas de Sempre (e Para Sempre), não estranhem reconhecer em alguns trechos poéticos – e não só – a óbvia homenagem que alguns dos membros deste Projecto decidiram dedicar-lhe, abraçando de coração desnudo o que nem sempre só no Coração mora. Assim, pelo que acima vai sendo dito se poderá aferir da eventual sinopse de pessimismo latente em alguns trechos ou mesmo em alguns textos. Mas não se deixem enganar! Nenhum dos participantes neste Projecto considera a existência como um fardo insuportável que urge dar por terminado. Antes todos eles são imbuídos de uma sinceridade ulterior que lhes permite filtrar toda a essência das emoções tidas e quase-tidas para delas retirar o sumo do que se quer que sejam os néctares dos deuses da inspiração e da transpiração: os textos que ora aqui trazemos. O “pessimismo” não é um fim per se, nem pode sê-lo. O “pessimismo” é a condição necessária para a constatação da chuva que nos molha e nos incomoda, de modo que possamos sentir o seu desconforto “pessimisticamente” e sintamos imperioso acelerar o passo e partir para a acção de sair do desconforto da roupa molhada que nos provocou o pessimístico incómodo de querer ir para casa trocar de roupa. Quando trocamos de roupa sentimos imediatamente um conforto especial que advém do facto de termos tido roupa incomodamente molhada que agora está muito mais comodamente seca; assim sentimos um conforto que não sentiríamos na vulgaridade dos dias em que nos limitaríamos a vestir uma qualquer roupa seca – porque toda ela estaria seca – e não daríamos qualquer tipo de valor ao conforto da roupa banalmente seca, pelo que se conclui que o “pessimismo” é condição superior para a partir dele se descobrir os confortos que advêm do reagir contra a banalidade do vulgar. O “pessimismo” é um catalisador de reação, é o bilhete para uma viagem num veículo de fazer qualquer coisa melhoradora do estado das coisas; é um meio, portanto, jamais um fim.

Editor Um - João Tavares