terça-feira, novembro 07, 2006

Prosa – O Voo de Ganimedes

Acredito. Enfim acredito. Agora não há volta a dar. É um baque de sons mortificando-me o entendimento que julgava ter das coisas. Aguento-me como posso. De resto, que fazer senão aguentar, senão quedar-me sob a necessidade de eu ser um suporte que sustenta um algo que não pode senão ser o suportado? Deixo-me de filosofias. Deixo-me - sobre todas as coisas deixo-me - de sistemas. Prefiro o paladar amargo do café a misturar-se com a leve impressão de um fumo que voluteia perdidamente.
Tenho chegado às conclusões mais edificantes nos lugares mais inusitados. Sob incensos de cachimbo tenho cogitado na esterilidade de certos movimentos. Debruçado sobre bilhares tenho concluído ímpetos lógicos que me escapavam morosamente. Passando os olhos em panfletos que me ofertam no Metropolitano tenho decifrado enigmas que pressinto terem mais importância do que os arcanos a que os outros se devotam. E porque é que isto é assim?

Deus…
Deus assim o quis. Quis que o fumo do cachimbo espiralando no ar, a carambola sobre o tapete verde do bilhar, a multicolor mensagem dos panfletos publicitários – quis Deus que tudo isto fosse, afinal, a colisão fatal do mundo sobre os sentidos que a vida me vem autentificando. Como uma certidão que me carimbassem pela vida fora. O som do selo ferindo a folha corroída pelo trânsito das coisas. É, enfim, um estado a que não sei emprestar denominação senão a imagem pobre de um documento que os outros certificam e que me protege pela vida inteira.

Em criança, nem o sussurro do seu nome me perturbou o sossego da vida. Só uma fotografia de um senhor com a mão direita pousada sobre o automóvel e a mão esquerda a esticar o suspensório. Velhas sombras que eu reservava para as minhas meditações nocturnas, sob o marulhar dos ramos das árvores e o vergastar do vento pelos abandonos do jardim. Confundo sempre o cair de uma jarra com a recordação opaca do automóvel na fotografia. Os recantos floridos; os repuxos de água arqueando sobre estátuas de anjos, caindo por tabuleiros folheados em meia-cana; as louças encimadas por nimbos d’aurora; as pedras talhadas em folhas de árvore outonal, esparsas pelo chão como que petrificadas por espectros; uma azinhaga ladeada de pequenos muros de adobo com floreiras a atapetar-lhes o cimo; vértices de paisagem, aljôfares multicolores, espelhos de água derramando pelas escadas de pedra. Sonhos que hoje conheço e que ontem senti.

*

Sem hesitar - um quarto engolido por um edifício. Geme a cada passo que ouve, estreitado pela respiração ofegante que imagino turvar-se entre o lustre do sapato e o nó da gravata. E é como se eu o conhecesse – a ele, o mais velho dos mais velhos de meu sangue - como se lhe soubesse a singularidade. E conhecendo-o, é também o quarto que se desdobra de si para um mim, um si-mim de si, não me tendo sido dado separar a experiência material das coisas da experiência impalpável do abstracto.
Entro. Aquele jornal pousado sobre a geleira fere-me a percepção sensível das coisas. Desço a Rua Direita e sinto-a jornal húmido entranhando-se nas paredes do quarto. Entro, recordo a tabacaria e um rosto turvo na primeira página entre letras garrafais. A geleira demanda uma revisão, a julgar pelo zumbido que acredito ouvir e que se infunde, através do jornal, na ladeira lúbrica da Rua Direita.

Enquanto passava no corredor, o sobretudo gotejava sobre o chão tabuado. E não havia luz artificial senão a de uma antiquada televisão distraindo o recepcionista. A música do concurso ecoava pelas paredes, vibrando no sorriso do telespectador, resvalando por entre as gotículas e fissuras do soalho e colidindo, enfim, no alheamento da minha meditação.

«Se Deus quiser, ainda aqui viverei muitos anos»
O zumbido da geleira infunde-se no da telefonia.
«Só é pena não ter uma televisão»
A cortina rendada divide a ténue luz de finais de Setembro concentricamente. Minúsculos lampejos de névoa atravessam o quarto em linhas diagonais que se eclipsam por detrás de cada mobília de castanho velho. E o cheiro… Tudo cheira a velho, menos ele que o é de um modo vital.

Primeiro ouvi o esbofetear de chinelos duma enfermeira brincando com uma algália. Depois senti um olhar de reprovação esgueirando-se entre os sinais da minha passagem pelo soalho antes enxuto.
«Chove que se farta» não tirava os olhos da televisão.
«Pois é» dava pancadinhas na algália
«Boa tarde» retesava os músculos das pernas na esperança fantasiosa de poder estancar o gotejar do sobretudo.
«Já sabe o caminho» apontava a esferográfica para o fundo do corredor.

A televisão que ele não tem projecta uma meia-luz por entre o bafo cálido do edifício. Perco-me entre a peugada embaciada dos vidros da janela e o espaço prateado que a não-televisão não gera senão no meu entendimento das coisas já toldado pela teimosia do sobretudo.
Depois sou levado dali para fora, para o mesmo lugar que é «um» mesmo lugar. Olho-me chegando ao edifício com uma mochila às costas. Um recanto onde troco de roupa. Mais enxuto do que um cadáver, mais áspero do que o roçar da língua no jornal. Rio-me – ainda que não tenha a coragem de o fazer – da algália tão-como-o-corpo-do-homem. Ensopada por dentro, enxugada por fora.
«E uma lareira, claro. Mas isso já era pedir demais. Eu quero a minha medida. Apenas e só a minha medida»
Lá fora - o emurchecer das flores no corredor, nutridas pela torrente policroma do concurso – ouve-se o vaguear nervoso da enfermeira.
«Acertou!» aplausos fervorosos por cima da música metaliforme…

Estou diante da lápide porque estou no quarto dele. E porque é que isto é assim?

Deus…
Deus assim o quis. Quis que eu sentisse o respirar orvalhado dos edifícios da Rua Direita. Quis o sentido, imperiosamente meu, fixado na tabacaria. Quis o meu rosto enrubescido sob a crueldade do sobretudo. Quis, por fim, que eu aqui estivesse, debruçado sobre a pedra marmórea, afagando os seus cabelos por cima do vidro turvo da fotografia.

«Farto. Farto é o que eu estou. Só as coxas da enfermeira Graça me sustentam. Branquinhas…»
O edifício não é outro senão este em que evoco os adultos carregando o andor de Nossa Senhora da Apresentação nas tardes de calor; o suor em holocausto pela luz imanada da auréola da Senhora; as coroas adornadas por flores encarnadas que se enfaixavam nos dedos dos serviçais; os miúdos adereçados com as vestimentas dos soldados do Império Romano, reflectindo a luz do Sol nas suas armaduras até aos vitrais dum velho armazém de matraquilhos, fingindo chicotear Jesus; o Tiago com a barba postiça na cara e a longa cabeleira castanha coroada de espinhos que não crivavam, os seus olhos azuis como o Cristo dos filmes de Hollywood e a catequista a seu lado adequando-lhe a cruz ao cachaço, adequando os gestos da Imolação – não faças isto, faz aquilo, olha aquele, olha aqueloutro, tropeça agora, tem-te não cais – e os carros buzinando ao longe, não na noite, não na reminiscência da Nossa Senhora da Apresentação mas onde estive e onde estou criando gente que me escapa desapiedadamente.

«Vê lá, deu-me uma fotografia com, pelo menos, sessenta anos. Ora, pergunto-me se sessenta anos são uma actualidade. Não. Não, meu caro. Nem actualidade nem possibilidade. Sessenta anos são uma pouca de merda. Está na segunda gaveta»
O bater da porta ouve-se por dentro e atroa por fora. Como o repousar do último cigarro que fumei antes de partir. Um fumo que enlaçou a página do jornal e perturbou a carambola impensada no bilhar.
«O que me deixa doente não é o rosto real» retorce as rugas da testa e refunde os seus olhos pelos meus «O que me deixa doente é o rosto da fotografia»
A gaveta abre-se em timbrado e vibrante arrastamento. Placas tectónicas de mim em fricções doutro.
A mão dele, ainda suspensa, impele o ar quente da geleira contra a fotografia. As rugas da sua mão misturam-se com as rugas brancas do ar num movimento único entre o efectivo e o possível.
A fotografia do jornal assoma no entorpecimento de não estar ali. A mão de Deus asfixia-me as sensações.
«Eu, à minha, às vezes, também lhe passava as mãos pelas ventas. E outras coisas… E outras coisas…»
A telefonia – «a minha opinião é a seguinte»
A televisão no corredor – «são mais de duzentos e setenta e cinco…»
A enfermeira - «Posso entrar?»
Ele - «já entrou»
Eu –

Adiado de mim para mim e de mim para o mim da fotografia, que sou eu, por certo, a dizer-me meiguices e a dizer-me que me hei-de curvar perante a frieza do mármore e sem ilusões que não as do silêncio do campo-santo, sem saber que a morte é um estado outro que, de alguma forma, de alguma maneira que desconheço, se há-de sentir fisicamente por ser outra circunstância que não a actual e por ser o possível…
Eu –
Subjugado à beleza das coisas. Juro sentir o ranho dele meter-se por dentro da manga da enfermeira.
A fotografia na minha mão. Sou transportado pelo Universo, numa viagem cósmica entre fragmentos de mortos – na Rua Direita, no Edifício, no Corredor, no Quarto...
«Ao que um homem chega…»
A voz da enfermeira expelida da grelha da geleira
«É-se bem criança duas vezes»
«Bonita» digo eu que não o digo por dizer. Digo o ser do ser-bonito sem poder dizer coisa alguma que não o ser das coisas que não são.
«Avozinho, o seu neto gostou da nova avozinha» trolaró que rico dó.
«Avozinha os tomates. Que fique com ela se a quer»
Eu – Quero
Sim, quero. Eu, o querente – ente crendo querer a beleza das coisas sem idade.

Há silêncio – ou também, e reforço este «também», há silêncio nas coisas – porque as coisas invocam ausência de coisas ou de outras coisas. Se eu me repito é porque rogo a um qualquer Além para que eu, ente categorial, esteja entre o que sou e o que nunca fui. O que nunca fui é também o que sou, não sendo justamente um não-ser mas um não-eu. Não mais os gestos que esbocei e os objectos que vi. Como um dia a mais que nos foi morto.
Há uma só distância no passear por uma rua da cidade e pelo corredor do edifício – é a chuva que não cai no corredor senão do meu sobretudo. O incompreensível destino que as coisas, para além de nós, vivem, tornadas coisas para que as amemos, tornadas coisas para que as destruamos.

Se eu me debruço sobre a lápide, não é para ler o seu nome por cima da data….
Dia timbrado pelo som-de-agulha do telefone. Um respirar sofrido, ainda que não magoado, a esquartejar palavras.
«Faleceu»
O telefone teria tocado quantas vezes? Sim, quantas vezes, pergunto-me.
«Esta manhã»
Duas, três – muito provavelmente quatro vezes.
«Isto calha a todos»
Pois sim – como os carrosséis sempre param. E ainda bem.
Se aquela voz se ouvia no telefone, não podia ser ela mas ele. Ele, contudo, já lá estava havia dois meses. A sua fotografia de defunto na mesa do café, entre um cinzeiro e um jornal desportivo cuja capa era um vivo festejando o «hat-trick».
«Lembra-se de estar com a fotografia dela na mão que mais parecia o hipnotizado a olhar para o pêndulo?»
Como não se ainda hoje tremo quando ouço o telefone…
«Ela não tem mais ninguém. Pensei, talvez mal, eu sei lá…»

Já não ouço o resfolegar da geleira. Já não sinto o cheiro asfixiante da humidade do jornal nem concebo já a ideia de o roçar na língua. Da enfermeira apenas o som do telefone a tocar três, quatro, cinco, seis vezes, metendo a algália por debaixo dos lençóis.
«Tenho ou não razão?»
E tê-la-ia não fosse a fotografia vibrando na minha mão, que a sinto em golfadas de desespero a percorrerem-me as artérias.
«Mas isso foi há sessenta anos ou mais. O pior… ou mais»
Olhar para as coisas que não tivemos como para os lugares que não têm coisas que poderiam ter tido se uma outra história que poderia ter sido o tivesse sido de um modo outro que não hipotético ou possível mas efectivo e actual sem contradição entre este objecto e este não-objecto porque dubiamente serpenteante e paradoxal.
Ouço o rastejar de chinelos – tenho a sensação de o ouvir ainda que o não possa confirmar. Sou eu quem o diz, quem o faz, quem mantém a impressão de afectos antigos. O choro de uma privação, de uma saudade, de um deus-a-voltar. E se eu tiver um dia a certeza de mim como das incertezas que pressinto de coisas outras?

Se me curvo sobre a lápide é porque consinto a imaterial possibilidade das coisas como fundamentação da material impossibilidade do que sou.

«Vai para o corredor, por favor. Não consigo fazer nada na presença de homens»
A gaveta fecha-se. No seu atrito áspero correm os rostos da minha vida – passados, esquecidos.
Nem vejo, já, a mão na maçaneta e o seu girar-que-eu-sei-ser-girar porque sei ter transposto a porta do quarto.
Sou a música do concurso escorrendo pelas paredes, tocada por trombones que não vejo. Aplausos, risadas, «jingle» deslizando por entre as fissuras do soalho.
«Ele há gente com sorte»
«Uns penam, outros gozam»
«E outros, ainda os há, que consolam»
Sinto-me capaz de sapatear.
«Ó homem, você é estúpido?»
Mas não – falta-me a presença, ainda que desconexa, do irreal.
«Está naquilo da algália, não é? Sabe… eu nem sequer à frente da minha esposa sou capaz de o fazer. Aquilo emperra que é um diabo. Já experimentou?»

Os círios brilham nos meus olhos ainda que eu os não veja. Retratos de mortos que o não foram. Esta fotografia por cima do epitáfio derrama vida-morte. Apenas um lugar e a fotografia converte-se numa outra imagem, ganha uma outra alma. Centenas de vidas mortas numa fotografia que mudou de lugar, subjugadas à opressão do espaço.
E as datas sobre o mármore são bafos de velhas de xaile preto que acabaram de acordar dum longo sono, de rosário apertado entre os dedos.
«Podes voltar» ouve-se asfixiantemente.
A gaveta fechada. A segunda gaveta fechada. A segunda gaveta abre-se sem áspero som.
«Porque eu não gosto de velhas. Lembro-me de, em criança, olhar para aquelas manchas que algumas delas têm no rosto e lembrar-me das manchas castanhas das bananas demasiado maduras e não gostar dessas bananas precisamente por me fazerem lembrar as manchas da cara das velhas»
A não-televisão abre-se numa luz ténue e empoeirada. A não-lareira crepita surdas faúlhas. O não-abrir-se da gaveta mutila-me o entendimento das coisas. A não-coragem de partir arrasta-me pelos alicerces do edifício.
«A enfermeira Graça ainda as não tem. Mas há-te tê-las, feliz de mim que aqui não estarei para o testemunhar»

Não-eu-nem-outro e as lágrimas quase estalando ao cair sobre o féretro. Um rosto de manchas castanhas iguais às manchas das bananas maduras:
- Peço desculpa se estou a incomodá-lo, mas não o conheço. É da família da dona…
- Não.
- Sim senhores… É conhecido então…
- Também não.
«Sabes o que é uma velha quando tens setenta e dois anos? É uma velha quando tens vinte»
- Então?
- Então…
- Então… desculpe a impertinência mas…
E é como se eu, ajoelhado sobre a campa, me estivesse a ver ligar o interruptor da televisão. O «jingle» do concurso enfaixa-se no rendado do féretro e em rodopios de fúria por entre o rosário da velha – fala por mim. Um rastro de um qualquer eu dum outro espaço-tempo, fixação outra d’estoutro Universo. A gravata roça no féretro em clarões de não-círios, no mármore da campa em clarões de não-televisão. De novo a criança brincando com o som dos seixos embatendo nos azulejos do jardim – a criança que poderia ter sido. Criança. O embate da bola seis na bola dois e da bola dois na bola quatro. Fiquemos por aqui - é já muito.

Leonel Ferreira