terça-feira, novembro 07, 2006

Poesia - Cor e outras

Cor
(prelúdio a uma emoção)


Coração é uma teia
Vive lá uma serpente
Seu sangue é uma corrente
Enrolada em cada veia

Vive pobre coração
Nada tem que o contente:
Se diz que é feliz, não mente;
Pois mente, foge à ilusão

Não tem razão no que fala
E não na tem no que sente
Coração estando quente
Diz demais quando se cala

Entretem-se e entretece,
Gira de pião a mente,
Nada há que o contente
Em cada volta esmorece

Não há triste coração,
Que a alegria não o tente;
Em espiral a maçã rente
Acalenta a escuridão

Ao morder, o coração,
Nessa teia a mosca sente
Enroscar-se de repente,
Inventar a pulsação.

*

dois entreactos de presunção para ler sem respeito.
(com intervalo)

2.1

O Poeta é um amador,
Ama tão desesperadamente
Que chega a fingir que é amor
A dor que incompleta sente

E ninguém vê o que ele escreve,
O amor lido é de ninguém,
Não há amor que se tenha,
Que ninguém tenha também.

E assim em roda da alma
Morde, sem olhar a razão,
Esse monstro de chama
Que engole o coração.

2.2

O Poeta é um amador,
Ama tão inesperadamente
Que desejaria fingir que é dor
O amor que com surpresa sente

E quem vê o que ele escreve
do amor que nunca se tem,
nunca vêem seu amor
sem o quererem ter também

E assim em roda do ser
Venta no fundo a razão
de apenas ousar querer
Dar um uso ao coração.

*

Procissão

Quero de ti o que sente a escuridão
quando num arremedo de repente
se te inventa a criação

Quero de ti o que não se dá,
o espaço sem emoção, o riso ausente,
quero de ti sentir sem mediação

Quero de ti só o que só eu busco,
de ti um mais que imenso crepúsculo
numa aurora de vibração

Quero de ti o mais que querer,
o que no canto da alma não se vê.
De ti o todo quero que num grito se perder

Quero de ti todo o momento,
e de todo o instante em cada ausência
Quero de ti ser o que não tens
Mas de nós quero o que sente a escuridão
quando num arremedo insistente
se nos inventa a criação

Quero a alma que se faz carne
- em ti o respirar - a paisagem imensa quero
dum suspiro sem despertar

Quero de ti pétalas desfeitas
na tardia boca dos sóis de verão
Quero de ti cristais de vento, de ti essa ilusão

Quero de ti o pulsar apenas - em nós, forte, estala a emoção -
e neste instante, que tudo alcança,
de ti quero essa sensação.

(ao longe gabam-se corações, enquanto dura a descrição;
o mundo todo é uma espiral)

Rui Gonçalves Miranda