terça-feira, novembro 07, 2006

Poesia - Ex-Homo e outras

Ex-Homo
Estendes as asas
E declinas o rosto sobre a colina
— podem os anjos apaixonar-se?

Fomos outrora homens
Anunciando o retorno ao céu,
Sentinelas dormitando
na cegueira do desejo.

Somos tecto no mastro dos astros,
A frincha de um instante
Entre os galhos do Outono.

Sobre as nuvens sujas da cidade,
Alimentamos magoados a ferida
de quem regressa jamais

— ou a dor de quem pode
Esquecer nunca.

À Memória que fomos
Fomos ecos sonhadores de uma mesma memória.
Tocámos o céu com nossas asas
Vagámos sobre o clarão dos mundos
E os nossos lábios beijaram o éter do Sonho.
Éramos o que sonhávamos
Éramos o clarão que alimentava o ópio do tempo
O intervalo das pálpebras arqueando
O sonho ante as sílabas impronunciáveis
Ensinámos a linguagem do amor
E a melodia da criação.
Às vezes mantínhamo-nos entre as gotas de chuva
Escutando o movimento dos visionários
Adormecíamos felizes.
Agora
Somos homens sem sombra
Lembramos gestos pairando no contorno dos sentidos
Imprecisos traços não podendo ser definidos.
Assomámos ao parapeito dos pensamentos
Tentando olvidar a cor do Éden,
Os jardins de néctar
E subitamente deixamos de sorrir
Pois
A solidão apoderou-se dos nossos olhos
E as nossas bocas secaram por não saber falar.
Já nada é como o sonhámos.

*

Nos dias de outros dias,
Quedámos por vestígios da memória,
De quando fomos homens
Na revelação da madrugada.

Também fomos anjos submersos
Na dispersão da inocência
Ou remetentes surdos
Entre o nascimento e a morte.

Não despertamos, senão, no dorso da escuridão,
No diálogo com a solidão dos passos,
Suspeitando que o nosso derradeiro suspiro
Se dilui nas reminiscências do que nos resta.

*

Ao penúltimo dia da Era
Tornámo-nos nascentes
Ou corpos desaguando na claridade
Fomos outrora homens que cambiaram
o corpo pela alma,
signos ao compasso das estrelas.
Fomos a ponte de um pensamento,
Espíritos na face deste instante oblívio.
Somos as últimas horas
Flutuando entre o levitar do coração
À beira-mar do sono lento
Suspeitamos que o nosso último suspiro
Seria elevado no anoitecer da memória
Ou nos dias de outros dias,
Enquanto atravessarmos o véu de silêncio,
E o olhar esculpir um sorriso de despedida.

Adentro o corpo no calor do quarto,
No quarto fechado, onde não há tempo para a ponte
Com a nossa morte,
Nem com a ilusão do espelho no limiar da noite.

Para mim todo instante é uma peça teatral
De um só acto,
Ímpeto de não poder fugir de mim,
Nem do limiar da minha ausência.
Sede como a angústia que aperta
O seu punho na limiar de tudo existir.
Vêde a labareda entremeando o seu beijo
Com o veneno depurando
As suas garras
No desdobramento da eternidade
Que rasteja de dentro para fora de mim.

Que procuram os sentidos
—A face do silêncio,
Ou a margem de tudo?

A lembrança a partir,
O sinal de este mundo que
Jamais passa por mim
E se aloja na espiral do coração
Algures, perdido na memória de amanhã.

À sombra dos enforcados
Florescem palavras ao som do piano,
Melodia ardendo entre as pétalas do suicídio,
Tons ou versos-de-lágrimas,
E morremos
Por fim
Nos intervalos de aquém,
Perante a Alma de Ninguém.

Aos Poetas, Aos Sonhadores
Também eu, irmãos
Tenho saudades de mim
Também sonho
Com as palavras que não possuo
Ou as miragens
Sótãos profanos de música
Escutando a claridade
E o poeta exalta
Os delírios da sua própria grandeza.
Pobre! Não sabe o que o espera.
Antes morresse,
Enforcado, abandonado, inútil.

Oh lamento o disfarce do momento
O céu turvo que minhas mãos acolhem
Docemente
Fiz os lábios vazios tocarem o verniz do tempo
E a minha língua soltar-se
Beijei o firmamento dos sentidos
Beijei a elipse de qualquer oblívio contemplamento
No seu rosto de marfim
Chorei
Chorei pela minha morte
Por não ter escapado a tempo

Não há sombra mais funesta
Do que aquela em que zarpamos.
Meu irmão, se ao menos
Fôssemos outros,
Intérpretes de tédio
Navegando sob a ponte da morte

Vi tantos como nós
Extinguirem-se para lá do exílio destes olhos
Almas ténues soprando seus versos
Não as quis despedir
Não poderia suportar a dor de os ver partir.

Sou eu e não sou nada,
Intervalo incógnito
Entre mim e o eco
Da voz que se arrasta
Em segredo
Serei, talvez, (sim)
O desígnio de Deus
O anónimo cipreste erguido em toda esta paisagem,

Ou a sombra que se esquece
Do seu inconfesso ser de amar

Não, não
Sou o compasso
A trespassar a madrugada
No Intempore sonho da alma.

Reis Neutel