quinta-feira, dezembro 07, 2006

Prosa

Encontro

Turva-se-lhe a visão, cheira-lhe ao passado, tão distante, tão claro. Lembra-se de tudo, de ditos e feitos e feitos pelos ditos não cumpridos. A sabedoria que hoje tem, tão sua, sabe-a por ser de outrem, mas que outrem? De si a ele não sente uma fenda que seja. Não há outrem no desejo que agora sente, na força que o supera e maldosamente não lhe mostra que existe, que age, interfere, retira, ai se a visse… O portão! Tantas portas lhe abriu, tantas vezes através dele queria sair. Conhece-lhe cada milímetro, por instantes o olhar fica baço, o concreto que foca está longe, tão longe que as pernas andam sozinhas. Metros à frente pergunta como chegou ali, não se lembra. Inexplicavelmente sente vontade de lembrar-se de coisas que esqueceu por parecer não valer a pena serem lembradas. Ouve um piano, sons graves, é lenta a cadência, demasiado lenta. Agressiva. Pára, pára!...

“Ai, o meu diz logo!”,”Ai, o meu não!”, “O meu é mais calmo…”, “Ai o meu não!”. Como um bom debate chama sempre mais gente, Ilda também entra, “ó filha, mas olha que o meu ainda é pior!... O teu quê? E o meu?”, “O meu é que não entra nessas coisas”, diz outra, “oh, e o meu também é só porque…, enfim!”, “É como o meu então!”, responde Odete, a mais calada, numa surpreendente admissão de similitude do “seu” com outro qualquer! Quando por momentos se fez silêncio, Paula, de forma a não deixar escapar o holístico sentido do diálogo, não resiste a um último “olha, eu sei é que o meu dizia logo…”.
À entrada era isto que Luís ouvia, em segundos percebeu porque raras vezes lá ia. Do pai tinha saudades, da mãe…do resto nem por isso, percebe-se porquê… Maior é o espelho paterno em si mesmo a cada dia que passa. O filho de Luís olha para o pai com a mesma sensação. O que estranhava é no que se transforma, não sabe porquê. Luís é hoje mais o pai que o filho, é hoje com orgulho o que não queria ser. O novo tem dois caminhos, o caminho do velho e um outro caminho qualquer. Do velho foge, para o outro vai porque é ilusório. Ao velho quando e quanto mais velho vai dar por admiração. O corpo fracassa, o espírito cresce. Parece condição necessária, a contradição de um espírito aglutinar tanta mais força quanta mais força perde o corpo. O eterno jogo das escolhas, das percentagens do inquantificável.
Na sala mantinha-se a conversa, em crescimento exponencial no que toca a respeito pelo outro, falam todos, tanto e tão alto que ninguém ouve o que é dito a não ser o que sai da sua boca. Meritória, porém, a tentativa de Paula continuar a do falar do “seu” mesmo quando os únicos ouvidos atentos são os seus…
No seu tempo, o pai de Luís diria “Ardeanho! Estafermos das cachopas”. Luís, estridente, no alto da sua impaciência pensa alto outras coisas, mais secas e suas contemporâneas: “Ah grande puta que as pariu!”

O quarto parece tão escuro e diferente do resto, Deus pinta-o de tons lúgubres, obriga toda a gente a vê-los, estão já fixos, ainda que encavalitados na luz que abraça o quarto por inteiro. Os lindos olhos da mãe de Luís são-no cada vez mais num tempo que não este, repousam enfraquecidos num corpo prostrado. A seu lado está o motivo da pouco habitual reunião de tanta gente num sítio onde não costuma estar gente nenhuma, à excepção da necessária claro. Da pele ao osso não há nada, Luís nunca julgou ser possível ver o seu primário conselheiro… assim, completamente subjugado à lei dos anos, no momento em que o milagre de um simples e minúsculo músculo de sangue não o deixa ainda ser um cadáver. No meio de sorrisos e gargalhadas forçadas surpreende a lucidez do velho homem. Não fala, não emite qualquer onomatopeia, não consegue, apesar do esforço. O seu veículo de comunicação, a mão, emociona pela demonstração de entendimento de tudo o que se diz, pela nitidez do que pretende dizer. À entrada a mesma secretária, relembra-se Luís, o mesmo relógio, a mesma violência com que os segundos cavalgam para sabe-se lá onde. Batem no tempo como martelos.

“Porquê? Para quê? Por quem? Até quando? Pela mão de quem? Porque razão começou? Porque não pára? Porquê?”

“Está visto! Vamos lá embora senão o homem vê tanta gente junta ainda pensa que está a morrer, ele ainda está fino caralho!”. Qual a lógica de um palavrão senão para esconder o que já todos vêem? O passo apressado denuncia a transformação que sentiu dentro de si. Não é mais o mesmo, nunca mais. Ao passar na sala a mesma conversa, “Com o meu também foi assim, mas o meu é coisa ruim!”,”Se ouvisse o meu então…”, desta vez nem ouve, só vê o chão passar-lhe para trás das pernas num caminho sem retorno. Tic-tac-tic-tac… O coração emudeceu, o piano reapareceu e corre contra ele, passou por ele, vai para de onde veio! O relógio acelera, tic-tac-tic-tac-tic-tac…

André Faia