quinta-feira, dezembro 07, 2006

Conto

A Árvore Gigante

Era um tronco que se encurvava, levando o nariz quase rente ao balcão. Por detrás desenhava-se um manto negro, uma sombra, como um estandarte que, arrastado pelo vento, se fixasse no alto de uma montanha. Por entre o manto, cingia-se uma réstia de luz alimentada por um candeeiro pendurado ao tecto através duma corrente de vários tons enferrujados que outorgavam uma soturnidade desusada àquele lugar. Este manto escuro e este rastro de faúlha, recostavam sobre um conjunto de estantes cobertas por milhares de cartas, documentos, folhas, listas, pergaminhos soltos, livros estraçalhados, cordéis esquecidos. Todos estes manuscritos estavam húmidos e arrojavam um cheiro de água solidificada no antigo. A sombra, a subtileza da luz e a humidade dos volumes, davam a sensação de se estar entre nevoeiro, junto a um rio.
- Boa noite – começou timidamente.
Atrás do balcão ouviu-se um ciciar aflitivo de impaciência, o que lhe pareceu um mau presságio. Lembrou-se então dos conselhos da mãe e respirou fundo, esfregando os polegares. O outro continuava a escrever sobre o balcão, em sussurros de uma língua ignota ainda que a tivesse ouvido.
- Senhor… Venho por parte do senhor meu pai, o senhor… - e disse um nome que demorou mais tempo do que um “estava a velha no seu lugar veio a mosca chatear a mosca na velha a velha a fiar estava a mosca no seu lugar veio a aranha chatear a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar estava a aranha no seu lugar veio o rato chatear o rato na aranha a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar estava o rato no seu lugar veio o gato chatear o gato no rato o rato na aranha a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar estava o gato no seu lugar veio o cão chatear o cão no gato o gato no rato o rato na aranha a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar estava o cão no seu lugar veio o homem chatear o homem no cão o cão no gato o gato no rato o rato na aranha a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar estava o homem no seu lugar veio a morte chatear a morte no homem o homem no cão o cão no gato o gato no rato o rato na aranha a aranha na mosca a mosca na velha a velha a fiar”. Ao calar-se, fez um esforço para abrandar o ritmo da sua respiração e escutou. Continuava o sibilar serpenteante, e o ouvinte nem sequer tinha ainda levantado a cabeça para olhar o rosto do visitante. A figura da mãe já não assomava indiferente às forças outras, rompendo os medos da escuridão. Aquele corpo curvado, a cabeça calva, enrugada e aureolada por um cabelo branco que se encrespava à luz do candeeiro, a pele tingida de mil cores que o fazia encontrar-se com as história do avô sobre as pestes da Era Alva, tudo isto era, para ele, o medo que a noite traz só por ser escura – porque é na penumbra que tudo se esconde, porque é a treva quem oculta o que é necessário que se não saiba senão por espreitadelas. Lembrou um pesadelo que o afligia frequentemente – enquanto sobe uma escadaria sabe que não pode olhar para baixo, porque se o fizer verá um vulto surgir de modo quase imperceptível, lá no fundo. Mas porque sabe que é um sonho, sabe também que não pode escapar a que olhe para baixo. E porque sabe que é um sonho, sabe que, não importando a distância que o separa do vulto, há-de ser alcançado.
- Meu menino – começou o corpo curvado com uma voz rouca e arrastada, sem erguer a cabeça embora se já pudesse ver a dupla ponta da sua língua enrolada por fora da boca conferindo às palavras um enrolamento que as tornava quase inarticuladas e cujo sentido a muito custo se descortinava –, o que o senhor seu pai me fez é o que se não faz nem aos piores Adamastores do outro lado do mundo, se acaso alguém conseguisse contra eles exercer qualquer tipo de poder.
Ergueu depois a cabeça e ele pôde ver por fim o seu rosto enrugado, os lábios grossos gretados, as pestanas brancas e hirsutas unidas num «V» que doava aos olhos uma feição verdadeiramente austera e até agressiva. Voltou a atenção para o pergaminho e recomeçou a escrever. As unhas enormes dos seus dedos roçavam no balcão, tacteando os interstícios das palavras. O rapaz não sabia o que fazer; se falar, se esperar por outra observação, por um sinal para que pudesse finalmente expor os propósitos que ali o tinham levado. Sabia que estaria bem melhor debaixo do seu cobertor, junto à lareira, a ouvir a chuva estalar no vidro das janelas e a voz nostálgica da mãe a contar as histórias das batalhas que ouvira do avô e que repercutiam pelas paredes das casas de quase todas as famílias, que tinham sempre algum velho conhecido testemunhando a Guerra das Sete Alianças. Mas esta era uma noite diferente; sentia as mãos frias e o seu entendimento distendia-se um pouco entre a frieza dos dedos e as dúvidas suscitadas pela necessidade de confrontar o estranho escrevinhador. Notou então que os seus próprios dedos estavam escoriados de tanto esfregarem uns nos outros. Olhou em volta, aspirou amplamente o ar das folhas húmidas e arriscou:
- Pois bem meu senhor, o meu pai manda dizer-lhe que lamenta o mal-entendido com a Árvore Gigante e manda também fazê-lo saber que está disponível para compensá-lo de todos os danos que possam ter sido causados.
- Se está disponível, então porque não veio ele ao invés de me mandar um fedelho assustadiço? – Retorquiu o velho num olhar esguio penetrando entre a hesitação do rapaz, como se estivesse a colocar-lhe os nervos à prova. O rapaz, por sua vez, só conseguiu balbuciar parvamente:
- Eu não sou fedelho…
O silêncio instalou-se entre a respiração ofegante do rapaz, o sibilar aflitivo do escrevinhador e o ondear caprichoso das folhas sobre as estantes. A lua jorrava a sua luz por entre uma abertura gradeada quase junto ao tecto. Debalde esperou que aquele estranho ser o interpelasse sobre os supostos prejuízos causados pela Árvore Gigante. Apenas o vento, bramando em sibilos aflautados pela escadaria dando acesso à sala, o acalmou de um modo estranho ainda que breve. Olhou a sua mão tisnada e fria e fez um esforço desmedido para estancar as lágrimas. Mas a vã força dos seus nervos soçobrou perante a lembrança da voz terna da sua mãe e começou a fungar.
- Meu rapaz – interrompeu então o escrevinhador cessando enfim a sua escrita –, em nome dos Espíritos da Floresta, não me faça uma coisa dessas que me fere o coração ver os vindouros desta terra perderem-se entre choradeiras.
Estendeu um lenço amarfanhado e imundo, e como não obtivesse resposta ao seu gesto, recolheu-o ao bolso e continuou:
- Ora vamos lá, ora vamos lá. Com que então o seu pai quer redimir-se do erro… Mas como? – levantou-se e começou a andar dum lado para o outro, com as mãos enlaçadas atrás das costas. Dir-se-ia que todos os seus movimentos tinham o intuito de dissimular o choro do rapaz, como se aquela situação representasse, para ele, um incómodo impossível de suportar. – Porque isto de plantar Árvores Gigantes tem muito que se lhe diga. E olhe que eu não faço parte daquele grupo de idiotas que plantam árvores dessas pelo quintal. Uma Árvore Gigante precisa de espaço, ainda que o seu caminho seja sempre o alto dos altos. Mas isto que me aconteceu tem deixado muita gente boquiaberta, pois nunca tal coisa havia ainda acontecido. Lembro-me que um indivíduo d’Além dos Bosques Prateados plantou uma Árvore Gigante perto dum rio que ao décimo terceiro dia secou - o rio, pois claro. Como quisesse o homem restituir-lhe a vida, pegou num machado e, resoluto, caminhou em direcção à Árvore. Quando começou a dar os primeiros golpes, uma chuva torrencial jorrou desde a árvore até à sua casa, aumentando o círculo de tempestade ao ritmo das machadadas, que pouco estrago conseguiam provocar no tronco robusto da malvada. O homem era conhecido pela sua obstinação, mas de nada lhe valeu a insistência, bem pelo contrário, que a água lhe chegava aos joelhos já o seu ânimo começava a esmorecer. Deve adivinhar que o homem desistiu quando começou a sentir a água a estorvar-lhe o movimento dos braços. Assim que parou de ferir o casqueiro da árvore, logo a chuva cessou, logo as nuvens se dissiparam para dar lugar ao céu ordinariamente limpo. Apercebeu-se então do perigo que corriam os da sua aldeia, pois se árvore estava plantada no ponto mais alto do pequeno espaço d’Além dos Bosques Prateados, ele começava já a indagar os estragos que teriam sido provocados nos pontos mais baixos e habitados. Dirigiu-se apressadamente ao mais próximo aglomerado de casas, e qual não foi o seu espanto quando não encontrou vestígios de enxurrada, mas tudo ordenado como habitualmente, que aquilo é gente de grande esmero nos asseios das ruas e das casas. Ao perguntarem-lhe a razão pelo seu respirar ofegante, respondeu que andava atrás dos habituais ladrões de laranjas que assaltavam amiúdas vezes o seu rico pomar, pois logo viu espelhada no rosto das gentes a razão pela qual se não deve tentar derrubar árvores gigantes.
De novo irrompeu o silêncio. A voz do velho não ficara menos gorgolejante com o avançar da narrativa, mas o rapaz já não sentia o vacilo dos joelhos. Havia naquela história o pormenor – pensava-o assim – daqueles que, estimando as histórias e os insólitos, partilhavam do tipo de afectividade da sua mãe. Aproveitaria então o momento para intentar, sem embargo, a abordagem pedida pelo pai? Retornaria às cautelas aconselhadas pela mãe? Pensava agora que, afinal, talvez não fosse tão difícil como pareceria à primeira vista, abordar o estranho habitando aquela torre onde confluíam todos os sussurros nocturnos e cujo nome ninguém proferia por receio de um ensejo qualquer e misterioso que nunca aparecia mas cuja sombra sempre ameaçava. O relator do incidente da árvore voltou a curvar-se sobre o balcão, pegou na pena e continuou a escrever. O vento de novo uivou e a chuva estalou mais fortemente sobre o telhado. O rapaz esfregou os dedos das mãos, retesou os dos pés e arriscou:
- Meu senhor… o meu pai manda dizer-lhe que lamenta o sucedido e que é verdade que nunca antes se ouviu falar de tal coisa. Por isso pediu-lhe que me mostrasse o que se comenta por aí mas que ainda ninguém viu com olhos de ver, que são, afinal, a única testemunha credível para quem lida com estes tratos. O meu pai fará dos meus olhos os seus e corrigirá, na medida do possível, todos os danos que lhe possam ter sido causados.
Calou-se e pôs-se a escutar o eco das suas palavras. Custou-lhe acreditar ter proferido tais sentenças, todo cheio de si, não mais o menino assustadiço. Agora era o rapaz desembaraçado que os fregueses do seu pai tanto estimavam por sempre se ter em tão boa conta os rapazinhos “d’olho vivo”.
O escrivão ergueu lentamente o olhar e, num repente, desprendeu um esgar de riso que lhe repuxou as linhas do rosto, desvendando os dentes enormes enterrados nas gengivas descoradas. O rapaz estremeceu e recuou sobressaltado, com as mãos atrás das costas, tacteando o ar à procura de um apoio. Mas logo susteve o ímpeto ao ouvir de novo o arrastar daquela voz inumana:
- Não te assustes. Não há nada como uma boa gargalhada para resolver os problemas. Eu sei que é um lugar-comum dizer e fazer isto, talvez até mesmo uma embustice. Mas faço-o na melhor das intenções. Esqueci-me entanto que o meu aspecto divertido não é menos assustador que o introspectivo.
O rapaz não sabia se sorrir ou afligir-se diante do aparente à-vontade alongado naquele infausto rir. Ele, pelo menos, julgara impossível não tremer sob o desalinhar das rugas no rosto indefinível que o fitava em aparente mansidão. De súbito, ouviu passos de alguém que subia as escadas, numa cadência que se tornava tanto mais clara quanto mais desordenadamente se uniam as circunstâncias do lugar no espírito do rapaz. Era o medo que fragmentava, num duelo atroz, de si para si, a percepção das coisas no rapaz lúcido que pressentia a chegada de algum mistério nunca antes visto e no rapaz inapto para razoar sobre tudo quanto lhe estava a acontecer. A porta rangeu, a sala foi devastada pelo som do arrasto de correntes, e um rosto espreitou timidamente:
- Posso entrar, patrãozinho?


*

- Então e depois?
- Era, claro, um dos seus criados. Eu pouco sabia do governo daquela torre. Na minha infância sempre vira aquele castelo de telhados pontiagudos ao longe, mas nada mais. Apenas o vago rumor de um vulto que vagueava pelos vastos salões que todos adivinhavam, algumas histórias estranhas sobre outros estranhos seres que visitavam o castelo; seres do outro lado do mundo, chegando à vila em carroças barulhentas de gonzos reboando pelos montes e desassossegando o descanso dos animais. De modo que, enquanto convivi com o estranho escrevinhador, sempre o espectro da novidade pairou no meu entendimento. Deve fazer uma ideia de como a singeleza de espírito dum rapaz é temerosa diante das brumas do desconhecido. Pois bem, aquele mistério da minha infância veio a transformar-se num enigma assaz curioso. A meninice gosta dos enigmas e não dos mistérios aos quais hoje nós, pobres sábios, nos dedicamos. Olhando para trás, é sempre fácil condescender com um sorriso perante as nossas atitudes, mas eu tenho um respeito, talvez imoderado, pelo menino que fui; a ver vamos. Olhe, tomemos um chá e deixemos a historieta repousar um pouco nas nossas sensibilidades; misturemo-la com as fragrâncias das ervas e deixemo-nos levar para as margens do rio da Penedia, onde são colhidas.

*

A noite adensara-se por dentro da sala. A humidade das paredes e o cheiro das folhas enfaixadas entre o limo das estantes entorpecia o entendimento do rapaz, que entretanto sentia os joelhos vacilarem no cansaço de não haver assentos. Começara, aliás, a desviar a sua atenção para as possibilidades suscitadas pelo lugar e pela figura com quem tentava manter um diálogo. Imaginava a vida daquele estranho ser, nunca descansando, deambulando entre os salões da torre, de facho na mão, à procura de novos pergaminhos cujos segredos se manteriam insondáveis para os demais. Isto era, estava bem de ver, um privilégio. Destarte descobria ele o mundo que outrora julgara impenetrável senão nos sonhos atiçados pelo calor da lareira e por rumores que o sobressaltavam se acaso ouvisse algum ruído no manto da noite.
- Patrãozinho, está tudo pronto, como pediu.
- Muito bem. Partamos então!
O criado segurava dois archotes. Estendeu um ao seu senhor e pousou a mão sobre o ombro do rapaz. Começaram a descer as escadas pétreas espiralando no centro da torre. O rapaz sentia-se afundar no breu da terra, dispondo-se a explorar os enigmas de catacumbas nunca antes vistas. Apenas conseguia ver as costas curvadas do escriba e o seu cabelo prateado coroando a cabeça calva. Sentia a mão pesada do criado no seu ombro, guiando-o entre a longa e estreita escadaria. Para além da porta dando acesso à rua, as escadas continuavam a descer ameaçadoramente. Ao notar que o escriba ignorou a dita porta, começou a interrogar-se sobre o tempo que faltaria para que atingissem o último degrau; e a cada interrogação, um novo lanço de escadas assomava por debaixo dos seus pés cansados. A sua respiração tornara-se ofegante e ele sentia o ar cada vez mais pesado, o fundo brumoso gotejando sobre o seu cabelo. O passo cadenciado dos outros dois seguia sem a menor interrupção e ele sentia o ânimo fraquejar, disfarçando, porém, a fadiga, para evitar algo, não sabia bem o quê.
Subitamente, sentiu a mão do criado a apertar-lhe o ombro e transpôs o último degrau. Estranhou porém o facto de não ter cessado a descida, pois o seu corpo era obrigado a inclinar-se para trás e todo o seu peso flectia sobre os joelhos. Já não pisava a pedra dura das escadas mas um solo macio que parecia ser de terra molhada. Como o criado adivinhasse a interrogação do rapaz, estendeu o archote para o chão e ele conseguiu ver de facto a maciez do lugar que pisava, naquilo que lhe parecia ser terra recentemente revolvida. Intensificara-se o cheiro da terra que se lhe entranhava na roupa e na pele, e ele não compreendia como podiam os outros dois continuar sem hesitações, sem pausas entre o caminhar metódico e cadenciado.
Ainda que tivesse consciência do passar lento do tempo, sabia que, pelo menos, duas horas tinham passado desde que começara a descer. O silêncio apenas era interrompido pelo sibilo do escrivão ou pela tosse ocasional do criado, e o rapaz não se aventurava a esboçar o menor ruído, o menor sinal de cansaço; limitava-se a esperar, não sem grande sofreguidão, o desfecho daquela caminhada em direcção ao abismo. Entre a gravidade do momento impunha-se, de quando em quando, um ou outro pensamento mais trivial que o puxava para o ar livre do alto - «agora sei como se sentem as toupeiras» -, mas assim que se sentia acordar pelo cheiro mortiço da terra, logo invejava a sorte daqueles bichos que se abismavam, por sua natureza, nos berços e fundações do mundo, sem inibições que não as da natural feição do seu corpo. Passados anos, o rapaz haveria de pensar que aquela descida lhe tinha sido, de um modo essencial, absolutamente íntima e que fazia dele uma parte dum projecto superior, cumprindo, afinal e tal como a toupeira, o seu natural propósito. Mas este pensamento dar-se-ia sobre o ulterior descanso, na degustação dos seus odoríferos chás na ou inalação dos inebriantes fumos do tabaco. Durante a descida, o incitamento que as profundezas lhe provocavam nos sentidos, ensombrava toda e qualquer confiança na regeneração das suas forças.
Por fim, chegaram a uma espécie de câmara; parecia ter sido escavada pelas erosões do tempo tal a sua assimetria. As paredes de terra eram trespassadas por uma espécie de caule denso sobressaindo como uma coluna que amparasse a estrutura do espaço. Ao redor da câmara entreviam-se várias entradas dando para outros túneis, sombras esféricas que não apetecia desvendar. O escriba caminhou até ao centro da câmara, de mãos enlaçadas atrás das costas e disse:
- Caminhamos durante algum tempo; descansemos um pouco.
O rapaz suspirou aliviado, retornando depois a inquietação quando se apercebeu que não tinha saído da escuridão dos túneis mas apenas afluído a um lugar deprimente pela sua promessa vã de ponto de chegada, que era, afinal, um ponto de partida para possíveis novos problemas. O criado encostou-se a uma das paredes, apontando o archote para um outro túnel como se investigasse, desinteressadamente, as trevas daquele lugar. O escriba resfolegou por entre o ar abafado:
- Se acaso desenhássemos uma linha vertical até ao ar livre, não sei a que lugar confluiria. O que sei é que não estamos por debaixo da nossa prezada Árvore Gigante. Contudo, já deve ter reparado nos relevos das paredes destes túneis. Pois fique sabendo que são as raízes da nossa – minha – Árvore.
O rapaz não entendeu o que queria dizer o escriba. Perscrutou ironias e dissimulações mas não as encontrou. Cansado já daquilo que, para si, eram meias palavras, deixou cair os braços e num suspiro protestou:
- Não entendo o que quer dizer.
- Não entende? – inquiriu o escriba. - Pois bem, esqueça o sentido oculto e atente unicamente no sentido exacto e restrito das minhas palavras. A Árvore Gigante que o seu pai me vendeu não medra para cima mas para baixo. As suas raízes propagaram-se pela terra dentro até onde ainda não consegui abeirar-me. Creio que está em constante e, receio, infinito crescimento. Veja então com os seus próprios olhos e faça o favor de relatar o facto ao seu querido pai.
O escriba virou costas ao rapaz e esgueirou-se na escuridão de um dos túneis que partiam desde a câmara. O criado estendeu-lhe o archote e correu a seguir o mestre. E ele ali ficou, na escuridão da terra, segurando o archote e a sua trémula chama, cuja luz embatia nas paredes, desvendando mil sombras ameaçadoras. Viu-se subitamente no desespero de estar só e abandonado, tendo a impressão de uma longa e intransponível distância entre si e os seus. O grito que tinha na garganta, conteve-o não sabemos nós a quanto custo. Apertou a mão livre contra o peito, franziu o sobrolho e, com a outra mão, apontou o archote para o túnel por onde tinham descido. Ao lado, outros dois túneis davam a impressão de subir, ainda que menos acentuadamente. Todas as outras entradas apontavam para a direcção pela qual tinham seguido os outros dois. Continuava a não saber o que fazer; a dúvida assomava ainda portentosa e inabalável no seu entendimento. Queria todos e nenhum caminho simultaneamente. A sua vontade de descoberta não era tão inabalável que o obrigasse a decidir-se pela descida; no entanto, continuava a não distinguir um traço firme nas intenções e palavras do escriba, e algo lhe ordenava que não voltasse a casa sem respostas mais concretas. Baixou a cabeça, quedou os braços e o archote pendendo da mão iluminou o chão húmido e revolto.
O tempo foi passando, e a cada instante girando nos seus sentidos, lembrava que talvez um pouco mais de determinação lhe tivesse concedido o descanso do momento presente. E este circunstancialismo das coisas, este renovar permanente da vontade, tudo isto convergia no medo da escuridão.

*

- Começo a ficar intrigado, meu querido amigo. E não é nada bom para nós, velhos sábios, deixarmo-nos cair sob o despotismo das paixões. Há já demasiado tempo me vem o amigo falando de escuridão, túneis e escribas; de medos, afectos e impressões. Mas afinal de que embuste se trata? Pois se nunca em toda a minha vida ouvi falar de tais incidentes com Árvores Gigantes… No ascetério onde cresci, havia muitas dessas árvores; lembro-me das subidas intermináveis que fazia com os meus mestres e condiscípulos, de dormitar nas copas e fazer fogueiras nos seus ramos frondosos – facto este que sempre muito me espantou, o de fazer fogueiras em cima de árvores - de começar a sentir o fraquejar das forças e o asfixiamento das altitudes. Sei de alguns incidentes, tal o que descreveu na historieta do escriba sobre a estiagem do rio; essas Árvores sempre prejudicam outras forças da natureza que possamos considerar rivais na grandeza. Mas essa inversão de crescimento deixa-me assombrado. Que bruxaria é essa, meu querido amigo? Continue, mas sem delongas, por favor. Toda a minha atenção se alonga, perigosamente, em direcção ao desfecho.
- Tem razão, meu bom amigo. Temo ter alongado as minhas percepções circunstanciais. Já lá vai muito tempo, mas as impressões continuam tão vivas como se tivesse terminado agora de o viver. Talvez no final me perdoe este vagar em tudo quanto lhe asseguro que senti, que é, ainda assim, uma ínfima parte do irreal que ainda hoje é, para mim, aquele dia. Note, contudo, que eu atribuo especial atenção às origens. Peço-lhe, pois, que se embrenhe numa tal suspensão de espírito, que lhe seja alcançável o mundo que vai para além de tudo quanto lhe tenho falado. Continuemos então a narrativa, não sem antes fumar um pouco de tabaco nos nossos tão úteis e estimados cachimbos.

*

Um leve tremor ecoou pela terra. O pó caiu sobre a cabeça do rapaz e fê-lo olhar para cima, com os olhos semicerrados, à procura de razões para aquela súbita vibração. As raízes dos túneis estremeceram e começaram notoriamente a estreitar-se em direcção ao centro. O rapaz levantou o archote e apontou desconcertadamente em todas as direcções, desenhando um círculo de luz que irradiou o alvoroço da câmara. O tremor aumentava também, acompanhando o aperto cada vez mais asfixiante das raízes da Árvore Gigante. Irremediavelmente, o rapaz viu-se obrigado a escolher um dos túneis por onde escapar. Dirigiu-se à desembocadura por onde tinha vindo desde a torre, mas assim que começou a subir o íngreme e escuro carreiro subterrâneo, o seu íntimo arrancou-o à determinação impensada da fuga. Pensou no tabelião e no seu criado, e imaginou-os soterrados no breu da terra. Logo desprendeu numa correria sobressaltada por debaixo de todo o frémito irrespirável da escuridão. Assim que alcançou novamente a câmara – ou o espaço onde esta tinha estado, pois não lhe reconheceu as dimensões e confluências anteriores – viu-se obrigado a seguir por um dos outros dois carreiros que subiam exactamente na direcção oposta à qual tinham seguido os outros dois. Pensou já não poder salvá-los da queda. Aliás, teve uma certeza aterradoramente inabalável de que ele próprio estaria condenado à sepultura e ao abandono nos abismos da terra. Correu desnaturadamente, até sentir os joelhos queimarem de cansaço. O pó, o suor, a escuridão e o ar pesado faziam-no suspender o atropelo da correria. Recostava-se na terra húmida do túnel, cativo do fragor de martelos batendo ferro que era aquele estrondo medonho das entranhas da terra. Enquanto se lançava pelo aclive subterrâneo, tropeçou numa das protuberâncias e estatelou-se no chão, rebolando pela descensão abrupta em que o carreiro subitamente se revelava a cada distância que o rapaz ia encurtando, à custa do rebolar do seu corpo.
A trepidação cessou. Estava envolto na mais cerrada escuridão, pois no meio da queda tinha largado o archote. Deixou-se ficar deitado na humidade da terra, com os olhos abertos fitando a escuridão e respirando sofregamente, não só pelo ar sufocante mas mormente pelo cansaço; cansaço do corpo sujo, da longa caminhada irrompendo pelo breu, da solidão, do silêncio e tremor horrendos da terra.
Quando ergueu finalmente a cabeça, viu algo brilhar a uma relativa distância; um objecto cuja cintilação iluminava as paredes próximas, o que o fazia concluir estar numa câmara de dimensões superiores à anterior e com um objecto luminoso num dos cantos. Levantou-se e dirigiu-se, às cegas, ao encontro da estranha luz. Hesitou pegar-lhe, mas atendendo a tudo quanto já lhe tinha acontecido, achou improvável afligir-se com o que quer que ali houvesse de maléfico e pousou as mãos sobre o objecto. Um clarão jorrou em espirais sob as suas mãos e ele sentiu as vibrações voltarem, desta vez com mais violência. A terra polvilhava a sua cabeça e ele levantou-se a muito custo, com o objecto luminoso aclarando o caminho a palmilhar. Subia o declive por onde tinha caído enquanto o túnel tentava engoli-lo, cessando os caminhos que iam ficando percorridos. Por detrás de si, o chão ameaçava devorá-lo, pregando-se ao movimento dos seus pés, como ondas e afluxos de masmorras subterrâneas bosquejando a sepultura. De súbito, sentiu algo aprisionar-lhe os pés e caiu. Dir-se-ia que as raízes da Árvore Gigante tinham acabado de cumprir um estranho propósito. Adivinhar-se-iam os gestos de um destino concretizado numa raiz enleando os pés de um rapaz que, obediente aos propósitos simples do pai, cumpria os propósitos tremendos do Mistério.

*

- Pois sim… e então?
- Então, acordei no meu quarto, na minha própria cama. À cabeceira, a minha mãe afagava-me os cabelos. De pé, junto à porta, estava o meu pai em amena cavaqueira com o tabelião e o seu criado.
- E é só?
- Sabe… todas as vidas têm uma origem, sendo incerto se há ou não um princípio. No que me concerne, a minha origem soçobrou perante a inclemência do tempo; já o meu princípio está todo contido naquelas galerias e túneis. O meu pai saldou a dívida que tinha para com o tabelião. A ascendência que essa dívida cumprida teve na minha vida é um assunto para outros dias, ou noites, que com tudo isto me ausentei da noção do tempo e não me apercebi da hora que se já fez tarde. Quem sabe, talvez um dia, eu possa contar-lhe os dias que sucederam o meu princípio.
Leonel Ferreira