quinta-feira, dezembro 07, 2006

Poesia

Criação dum Mundo

É por mim, afinal, que o medo seduz
Plácido, Tardio,
Diante da Sacrossanta porta
Aliás, nem os Silfos cantam nas florestas
Ao ecoar dos passos sobre as folhas
D’Outono perdidas
D’Outono achadas
Não vá o mundo cuidar de si.

E tenho cismado que me afagam
Leves impressões
Anjos da guarda repousando
Sobre o lasso nó de não haver tragédia
Asas esfaceladas que nimbassem
D’oiro o passar da vida.

Um gesto não é movimento
Mas aquém-aceno d’ entremeios
Que sempre giram e revolvem
Como a folha perdida
Que o Elfo traz ao peito

A Aurora imana
Ficções de um novo dia
O Arcanjo Uriel estende a mão
Ao rústico sepulcro
Que o mundo oculta
E não há reflexos d’água
Apenas o ídolo e a sua desmaiada nudez

Eis rebelando-se hediondo engenho
Inflamando as margens
Dos rios correndo estáticos
Das cinzas crendo o mundo
O Gnomo colhendo um cipreste

Leonel Ferreira




Eis o quarto…
Assearam-no ontem
Sinto olores d’ ontem.
Lá fora, os corredores estreitam outros quartos
Não os deixam respirar
Ponham-me a soro
E deixem entrar o Sol que me não amanhece
Não desperta
Não chama
Não vive
Deixem-me dormir.
O temor da vida
É eu fartar-me de dormir.
Repousasse o meu corpo na eternidade
Bem quentinho e aconchegado
E tudo lá fora seria o que é hoje
Mas não mais me convindo
Não mais o cidadão das coisas
E dos tratos
Apenas sono
Sono e soro.
Não sentir o eflúvio do caldo
Não sentir o gosto do pão
Apenas a narcótica agulha crivada no braço

Projectem o filme antigo
Sobre a vida de Cristo e o Império Romano
As suas luzes doiradas em bailados d’antemanhãs
Que sinto serpentearem
Por entre metais ecoando nas almofadas.
E os automóveis ressoando na rua
Ao longe…
Que a enfermeira me acaricie a mão
Que eu sinta os seus dedos níveos e delicados
Dizendo-me, pelas dobras dos lençóis,
O adeus do mundo.
O adeus do adeus de não estar.

Falta-me a ciência do astrolábio,
A coragem e o instinto do marinheiro.
Não adianta
Nada adianta coisa alguma
Nada adianta neste mundo
Mas como eu gostaria de não adiantar com estilo
Com a elegância de um Deus esteta
Ter névoa nos olhos
Nuvens e ondulações na razão dos sítios
As células multicolores contorcendo
Funâmbulos da anatomia
Lâmpadas estalando silêncios
E o frio-gládio no braço
Soro que me sustém
Uma revista pousada sobre a cómoda branca
Que me hão-de ler alegremente
…«crustáceos»…
…«sedimentos»…
…«hipostenia»…
…«litocromia»…
…«tudo»…
E a paz aparente
Aparente e concreta
Horrendamente concreta
Que o jarro sobre a mesa-de-cabeceira não ilustra fielmente
O médico passando
O seu metódico respirar
Sopro de cálamo
Hálito dum éter que não existe
E o diagnóstico final:
…«Eterna convalescença»…


Leonel Ferreira