quinta-feira, dezembro 07, 2006

Editorial

Vida e Obra

Eis o caminho tomado ainda que não principiado. Não chegaremos nunca ao meio. Quando muito, ficar-nos-emos pela metade.
O que é criado fica inscrito na Ordem.
O que é a Ordem? É tudo e nada – é desordem.
Na Ordem, os factos têm muito pouca importância porque materiais, transitórios. Basta-lhes a imaterialidade e desvanecem-se entre poeira. Aquilo que permanece é o que não está documentado. Uma ideia, ainda que transcorrida no papel, há-de transbordar-se a si própria. É, contudo, imperioso que a ideia seja essencial no seu Ser e não no que lhe é extrínseco, que é precisamente o factual.
Um dos dramas da Criação – e ainda bem que assim o é – está na sua capacidade para nomear o inimaginável. Quando Homero descreve Helena de Tróia como a mulher mais bela do mundo, não pode contar com a ilimitada fantasia da limitada – ainda que serpenteante – mente humana. Dante não creu que no momento da sua morte iria encontrar o Céu, o Inferno ou o Purgatório tais os que descreve na Divina Comédia. Nada tem uma interpretação unívoca, mas a abertura de um texto é-nos dada pela sua capacidade para suscitar o máximo de interpretações possíveis. O criador, ainda que não esteja preso a intenções congregando o leitor, deve abster-se de apontar caminhos que fragilizem a criatividade de quem lê.
Não idear, não perfilhar dos términos, suspeitar do passo astucioso dos «ismos», não significa tudo isto condescender com qualquer tipo de cepticismo ou solipsismo. A transmutação das ideias é como o vendaval que leva e traz o que quer. É um acumular por forças, uma vitalidade feroz que devasta ao âmago de si. Estamos, portanto, convencidos – com toda a fragilidade dos convencimentos – de estados diversos de presença. A ideia comparece e há-de comparecer num lugar. Resta desobrigar-nos a colocarmos-lhe amarras. Recorrendo a Agostinho da Silva, o caminho não será nem o ortodoxo nem o heterodoxo; a única saída que volta a entrar nas coisas sem tocar-lhes é o movimento espiralado do paradoxo.
O velho Borges, por oposição ao jovem Borges, afirmou, num encontro entre ambos, que «o poema ganha se adivinhamos que é manifestação de um anseio, não a história de uma acção». A arte trava uma guerra contra a matéria, mas é imperioso que se negue a ser o que quer que seja, jogando, portanto, um jogo sujo contra si própria e em seu gravoso dano, sendo embusteira, desacreditando-se perante os que dela fruem, para logo reclamar a sinceridade das suas afecções.
O Logos de Heraclito unia o Céu e a Terra; era uma união do Homem com os Deuses e a Natureza. A História da Filosofia tratou de converter este Logos na frieza da Razão e do Logocentrismo.
Heidegger louva os tempos áureos da filosofia grega em que se não pensava em títulos para nomear o Pensamento. Ética, Lógica, Física.., foram denominações entretanto surgidas que, aparentemente, fortificaram os limites dum modo de pensar. É este um modo de pensar puramente entendido como technê, como formulação prática dum resultado que se quer delimitativo; que se quer, acima de tudo, proficiente e gerador de um algo que é o puramente representável – ainda e mais do que nunca, hoje, se olha a Universidade como o movimento progressista criador de um produto que se há-de impor no mercado.
O que a História da Filosofia se encarregou de fazer foi esquecer, não somente o Ser, não apenas edificar um pensamento como technê, - como resultado prático aprisionado a um tipo específico e exclusivista de linguagem - mas, de modo essencial, anular o elemento criador e primário da sabedoria: o Amor.
Não se pense, pois, que o labirinto entanto criado rejeita um saber de experiência feito. Numa contemporaneidade que desordena a precedência do abstracto e a subalternidade da experiência, o apelo ao experimentar deve ser encarado como um passo sério e matricial para o franquear de todos os limites intelectuais. O filosofar não deve ser visto como um espelho do si e do outro. Esse modo de pensar seria anti-filosófico porque recluso duma prova factual – criadora dum paradigma finito e extenso, bem diferente da Jerusalém Celeste, que a têm experimentado negligentemente. Deve, portanto, ser tomada a sério a necessidade de nos cumprirmos – e para nos cumprirmos devemos olhar para nós próprios – Conhece-te a ti mesmo? Talvez e para além do talvez - mas também para os arquétipos, que os há em toda a parte, para o bem e para o mal, para além do Bem e do Mal, para aquém do consciente e além da vontade, para tudo e para nada. Nada obedece a tudo? Tudo obedece ao nada.


Editor Dois – Leonel Ferreira