quinta-feira, dezembro 07, 2006

Ensaio

D’ “A Arte Como Processo”, de Viktor Chklovski
(Um provável aparente resumo)


1. Soyuz Sovietsky Socialisticesky Respublik (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas)

Grande Mãe Rússia, Império bi-continental, Pátria do Grande Czar Nicolau II, Nação de nobreza dura e rural, terra de Boiardes que governam as distantes quintas a milhares de quilómetros de distância nevada, lar de milhões de servos miseráveis, brutos e ignorantes, nave de súplicas clementes por pão e justiça, praça de violenta repressão imperial, beco de vodka e jogo e desespero e promessas e sonhos e vontade e…
...1917…
…Grande Mãe Rússia, União de Repúblicas Soviéticas, Pátria do Grande Líder Lenine, Nação de politburo socialista, terra de comissários do Partido que representam a vontade do Povo nos Gulagues a milhares de quilómetros de distância nevada, lar de milhões de trabalhadores e operários submetidos à reforma agrária e à colectivização do património, nave de súplicas clementes por pão e justiça, praça de violenta repressão revolucionária, beco de vodka e uniformes vermelhos e promessas de socialismo real e sonhos e foices e martelos…

2. À luz das lâmpadas alimentadas pelo gerador comunitário

Utopyograd, Região de Novgorod, URSS, 21 de Novembro de 1971, 18h41.
“Camarada Doutor, ainda temos algum vodka que sobrou das comemorações da Revolução. Vai um trago?”
“Não, obrigado, Mikhail. O dia foi longo, mas só agora é que vou jantar e só depois é que posso limpar a garganta com pomada…”
“Muito bem, o Doutor é que sabe. A propósito, será que o Doutor me pode ajudar numa coisinha que me anda a moer a cabeça? Mas tem de me prometer que não diz nada a ninguém.”
“Diz, Mikhail…”
“É que eu hoje, quando fui à Assembleia Municipal do Povo, ouvi para lá dois camaradas a falar sobre poesia. Um deles disse que a poesia era uma coisa bela, sem palavras que a pudessem sequer descrever ou classificar, que era Literatura. O outro disse que para ele a poesia não fazia qualquer sentido, dando mesmo o exemplo de um camarada que escreveu, lá para os lados de Vladivostok, um poema sobre a solidão. É claro que isso lhe valeu uma reprimenda valente – onde já se viu, sentir solidão numa Comuna de mais de 200.000 pessoas? Ah, o segundo camarada referiu ainda que não via qualquer diferença entre uma lista de componentes para alfaias agrícolas e um poema, que não percebia o que fazia com que um fosse Literatura e o outro não.”
“E então, Mikhail, qual é o teu problema exactamente?”
“Bom, é que eu não sei se um poema é mesmo igual a uma lista de componentes ou se é uma coisa diferente. O Doutor quando estudou em Moscovo não aprendeu isto?”
“Sim, Mikhail, aprendi isso e muito mais. Mas sabes uma coisa? Mais do que explicar-te seja o que for, vou contar-te uma história. Ora chega a tua cadeira para aqui, traz a garrafa de vodka e ouve com atenção…”
“...Poucos anos antes da Revolução surgiu no nosso país um grupo de intelectuais que se dedicou a estudar a Literatura; receberam o nome de formalistas russos. Uma das coisas que eles fizeram foi distinguir uma área de estudos específicos da Literatura, a que chamaram Teoria da Literatura. A Teoria da Literatura veio propor que os textos literários são diferentes dos textos não-literários, isto é, que tem de haver diferenças de linguagem entre os dois tipos de texto. Assim, havia que estudar a Literatura enquanto textos literários e não como documentos históricos, sociológicos, psicológicos ou mesmo listas de componentes para alfaias.”
“Então, Camarada Doutor, os poemas são mesmo Literatura, não é assim?”
“Já vamos ver, Mikhail, já vamos ver. Sabes que mais diziam os formalistas? Que a Literatura acabou por se diluir, por ter sido estudada tanto tempo por outros campos de estudo. Por isso um dos mais proeminentes formalistas, Roman Jakobson lançou a questão: mas afinal o que é que faz com que um texto literário seja literário?”
“E então, Camarada Doutor? Qual é a resposta para essa pergunta?”
“Bom, continua a ouvir com atenção o que eu tenho para contar e talvez me respondas tu mesmo à questão.”
“Muito bem, Doutor, pode continuar, se faz favor.”

3. Chklovski sem limão e sem gelo

“Precisamente no ano da Revolução, 1917, houve um homem, Viktor Chklovski, que escreveu um texto chamado “A Arte como Processo”.
“Processo, Camarada Doutor? A Arte foi julgada em tribunal?”
“Não, meu caro Mikhail, não foi isso. Esse é o nome do livro em que Chklovski procura responder à grande questão dos formalistas: o que faz com que um texto literário seja literário? Ele diz que há uma oposição entre a linguagem do quotidiano (prosaica) e a linguagem poética. No entanto, a diferença entre as duas não reside no uso ou não de recursos estilísticos, uma vez que na linguagem do dia-a-dia também usamos metáforas, comparações ou imagens sem que isso produza texto literário. O uso de imagens no falar quotidiano serve para simplificar, tornar evidente e ilustrar as ideias que se pretende transmitir. Por outras palavras, e como dizia o meu professor na Universidade, o uso de imagens no quotidiano serve o ideal de facilitação da comunicação, tendo como objectivos a clareza, a simplicidade e a eficácia.”
“Então e na linguagem poética, Camarada Doutor?”
“Pois, na linguagem poética diz Chklovski que o uso das imagens tem um propósito inverso ao da linguagem quotidiana, pois, por definição, a imagem torna-se um obstáculo à leitura, querendo com isto dizer que é um momento no texto que obriga o leitor a deter-se, uma vez que o que lá está escrito é muito mais complexo do que aquilo que a imagem veicula.”
“Ah, estou a ver…”
“Chklovski diz ainda que quanto mais familiares nos forem as coisas, mais longe estamos delas, porque temos delas uma percepção de certa forma automatizada e inconsciente, uma vez que não estamos habituados a prestar-lhes atenção por nos serem comuns. Isso é o que acontece com a linguagem prosaica, vês? Na Arte o leitor deve ser obrigado a prestar mais atenção às coisas e ao mundo para poder alienar-se dessa automatização. O leitor deve ser obrigado a perder a sua visão automatizada do mundo, olhando para as coisas como se fosse a primeira vez que o faz. Mas, e tinha de haver aqui uma adversativa, tal só é possível através do uso de uma linguagem necessariamente difícil, que constitua um obstáculo, que seja complexa e que resista à percepção automatizada de quem lê. A tendência para a percepção automatizada por parte do leitor deve perder-se, dando lugar a uma certa resistência.”
“Resistência? Camarada Doutor, isto não será perigoso? Não corremos o risco de ser subversivos?”
“Chiu! Cala-te, bebe o teu copo de vodka e escuta com atenção. Ora, onde é que eu ia? Ah, sim. Bom, a arte, segundo Chklovski observa, privilegia a dificuldade, ou seja, quanto mais afastada a linguagem for da automatização e do que é evidente, mais literário será o texto. A poesia, que foi o que aqui nos trouxe, é encarada como um discurso que tem de oferecer resistências a quem lê para acabar com a automatização da linguagem.”
“Então quer dizer que se eu entendo perfeitamente uma lista de componentes para alfaias agrícolas, isso não é Literatura; se eu ler um texto escrito por um qualquer doidivanas romântico do século passado em que não percebo nada, isso já é Literatura. Certo?”
“Bom, se calhar, lá dizia Chklovski, não é só a utilização de imagens que faz com que um texto seja literário ou não. Ele também dizia que se não for só o uso de imagens a conferir literariedade a um texto, então a literariedade desse texto irá depender dos seus próprios mecanismos de construção; são os processos de disposição dos recursos de estilo (imagens, metáforas), que acabam mesmo por impor um certo tipo de leitura diferente da que é proposta por textos não-literários. O que se pretende é quebrar com a passividade de recepção, com os hábitos de leitura e percepção automatizadas. Para isso há que provocar um certo grau de estranhamento que ofereça resistência ao leitor. Sabiamente, muito sabiamente, Chklovski dizia mesmo que a Arte existe é para provar que o mundo existe.”
“Ah… estou a ver. Então acho que já percebi a diferença entre um poema e uma lista de componentes para alfaias.”
“Ainda bem, Mikhail, ainda bem. Pronto, então se não te importas, vou-me recolher, que amanhã o dia começa cedo. Boa noite, até amanhã.”
“Boa noite, Camarada Doutor.”

4. Chklovski nas sombras do candeeiro à noite

Utopyograd, Região de Novgorod, URSS, 21 de Novembro de 1971, 22h27, quarto do Dr. Ivan Nikivanov.
“Enfim, lá consegui explicar por alto ao Mikhail as ideias de Chklovski. É claro que podia ter tentado explicar-lhe mais certos pormenores que acabei por nem mencionar... como por exemplo, o facto de a definição de arte ligada ao uso de imagens ser do simbolista Potebnia, cuja visão Chklovski vai rejeitando, dizendo que a imagem está ao mesmo nível das outras figuras de estilo. Para os simbolistas a imagem é o mais que tudo do texto! Chklovski diz mesmo que as imagens são quase imutáveis de século para século – se assim for, então elas constituem um património comum partilhado por todos, supra-individual, pelo que o poeta não cria o seu material, não inova. O poeta só dispõe do que já existe. Já repararam como esta ideia se liga à ideia que Aristóteles tinha do poeta enquanto artesão que trabalha arduamente a linguagem para obter um produto? Pois, daí ser a arte um processo, pois é algo que se vai fazendo a partir do material de que se dispõe – o material verbal – e não criando algo de novo. Pois, sim senhor, isto é mesmo tudo muito bonito, mas amanhã é dia de trabalho e agora tenho de ir dormir. Boa noite, Mãe Rússia, e bons sonhos”.

João Tavares