segunda-feira, maio 07, 2007

Prosa

¼ de Peru

Ah, que belo dia para se ir fazer umas comprinhas para o lar, doce lar. É sábado de manhã, o céu está azul pintalgado de uma ou outra primaveril e discreta nuvem passageira, o sol brilha com uma intensidade alegremente anti--depressiva, uma levíssima brisa ondula os cabelos de quem os tem, os passarinhos fazem descontraidamente as suas necessidades em cima das estátuas das figuras maiores do burgo e as lojas de comércio tradicional na baixa do município estão abertas e povoadas por gente de gestos e palavras familiares e acolhedores, muitas vezes tratando a freguesia pelo nome e perguntando se há novidades daquele familiar que tão desgraçadamente cumpre pena por se ter deixado apanhar a desviar uns fundozitos aos quais até tinha direito e que não iam fazer falta nenhuma ao IRS. E foi assim, neste ambiente de bucólica felicidade da média-baixa Burguesia citadina que a Dona Gertrudes foi fazer umas comprinhas para o seu tão bem arranjadinho domicílio. Um dos primeiros destinos da sua romaria foi o talho do senhor Nicolau, um senhor de meia-idade muito simpático e prestativo.
“Bom dia, Dona Gertrudes.”
“Bom dia, senhor Nicolau. Que lindo dia está hoje, não lhe parece?”
“Realmente... mas diga-me lá, o que a traz aqui pelo meu modesto estabelecimento?”
“Olhe, eu hoje estava à procura de alguma coisa especial para o almoço. Sabe, é que os meus rapazes foram à pesca e só voltam lá para o fim da tarde. E como só ficamos eu e o meu homem...”
“Sim, sim, estou a ver. E o que é que tem em mente?”
“Eu estava a pensar assim numa carninha tenrinha que se desfiasse bem, mas que também não fosse de se desfazer logo ao chegar ao forno. Está a ver?”
“Ora bem, não sei se isto lhe interessa... veja aqui, chegou ontem um carregamento de vitela bem fresquinho...”
“Hum... não, acho que não me apetece muito vitela. Além disso, é capaz de não me ficar muito em conta.”
“Bom, se lhe interessa uma coisa que fique mais em conta, talvez eu tenha aqui o que lhe interessa.”
“Ah sim? E de que se trata?”
“É uma promoção que começámos a fazer ontem e que tem tido muita saída.”
“Sim...?”
“Por metade do preço pode levar ¼ de Peru inteirinho!”
“¼ de Peru? Por metade do preço?”
“Sim, sim, e olhe que ainda pode escolher a parte do Peru que quiser.”
“Ah, mas isso é mesmo muito bom! Mas olhe que eu não tenho assim muito jeito para escolher Peru... será que me podia ajudar a escolher uma parte assim mais jeitosinha, ó senhor Nicolau?”
“Com certeza, Dona, com certeza. Olhe, aqui para cima tem o ¼ tropical, que apanha as fronteiras com o Equador e com a Colômbia, zona riquíssima em minério e onde o Amazonas nasce; mais para este lado tem a zona Sudeste, na qual os Andes ocupam extensa área, incluindo o tesouro de Macchu Picchu.”
“É só isso?”
“Não, não! Pode ainda escolher a zona Oeste, na qual se encontra a capital, Lima, riquíssima em legado histórico e arquitectónico colonial, bem como praias lindíssimas.”
“Pronto, olhe, acho que levo ¼ de Norte do Peru. Sempre podem fazer jeito uns quantos jazigos de minério, não é verdade? Vá-se lá saber o que é o dia de amanhã...”
“Pois sim senhora, muito bem, aqui está ¼ de Peru da região Norte. Quer que embrulhe, ou vai assim no saquinho?”
“Faça o favor de embrulhar, senão ainda me seca o Amazonas com este solzinho que faz...”
“Pronto, então aqui tem. Muito bom dia e obrigado.”
“Bom dia.”


João Tavares