segunda-feira, maio 07, 2007

Prosa

Como um tapete explica a contingência

Andamos pela vida, muitos de nós, distraídos de tudo quanto nos leva ao momento e ao lugar onde estamos. A percepção ininterrupta da causa de todos os nossos efeitos é tão impossível quanto seria, a dar-se o caso, insuportável. No entanto, lá muito de vez em quando, convém meditar sobre o passado; ou melhor, convém contemplar o advir vagaroso que nos sustenta o respirar, admirar o transcorrido de nós para nos espantarmos com o que somos presentemente.
É maravilha incomparável supor o que seríamos não fora aquele golpe que, de sorte, nos desviou da contingência e nos arrastou para a necessidade. Estou a conceder que o presente é necessidade quando ajuizado pelo passado mas absolutamente contingente quando convocado pelo porvir. A admitir a contingência, parece-me inevitável convir um hiato entre o Homem e a Realidade. Chegado a este ponto, afigura-se-me, de igual modo, que o holismo não pode ter lugar. Esta questão não é, evidentemente, nova, nem é intento meu procurar originalidade de pensamento quando o que está em causa é o tédio relativo à necessidade e à contingência. Se todos os nossos actos estão impregnados de necessidade, parece-me necessário consentir que o Homem não escapa à ordem cósmica – nada nele existe que esteja fora do alcance do cosmos e dos planos do demiurgo.
Apelo então à capacidade imaginativa do leitor, pedindo-lhe que visualize um tapete. O seu relevo está ligeiramente inclinado para um lado, de modo que, quando passamos a mão no sentido inverso, sentimos o arrepio da fricção do tecido na pele. Imagine o leitor que está a passar a mão no tapete no sentido da inclinação do seu relevo. Não sentirá, certamente, o referido atrito. Mas se eu lhe pedir que proceda inversamente, tal e qual o seu movimento estivesse registado num vídeo, seremos forçados a conceder que tal é impossível, pois o vídeo regista não apenas o nosso movimento como a alteração que o mesmo provocou no real. Assim, se não houvesse separabilidade entre o ente e o real, seria possível inverter o movimento de tal forma que não sentíssemos a fricção da pele com o tecido, pois, tal como no vídeo, as protuberâncias do tapete precederiam o movimento da mão tal e qual anteriormente efectivado. Há pois, neste sentido, uma separabilidade total entre o ente e o real; separabilidade esta que só pode ser anulada por recurso à gravação de imagem. A revolução das câmaras de filmar e das máquinas fotográficas tem implicações no modo como olhamos a realidade, não apenas na rememoração dos acontecimentos mas ainda nas variações que os entes produzem no real e nas impossibilidades físicas que nos apartam, de modo categórico, da materialidade e do exterior.
Pretendo que todo este lance traduza um algo reabilitador do mistério humano, de uma fracção da existência que permaneça encoberta diante dos olhos de Deus, do Cosmos, do Demiurgo, da Natureza, da Física, do Universo, do Tempo, em suma, da Necessidade. Este algo não é um enigma mas um segredo cósmico. Idealmente, o Homem seria, em parte, o véu que assombra o olhar divino; seria o inconsciente de Deus. Este fraccionamento radical entre o Homem e a Matéria indicia essa incompletude da Razão humana reprimida pelos fados e pelas razões do Tempo como a manifestação mais terrena da Existência, apontando, irremediavelmente, uma outra faceta do Ser apartada de tudo e inscrita no Nada. Este panorama refunde os pressupostos argumentativos e a realidade tal e qual a Razão apreende, isto é, um equilíbrio entre a necessidade e a contingência. Intuitivamente não imagino como pode a necessidade ter lugar, seja no futuro ou no passado, pois não há previdência no mundo que sustente a impossibilidade; não estamos plena e inteiramente preparados para o que quer que seja.
O que o tapete indicia é que o Real, agindo sobre o Homem e exprimindo-se por movimentos que são, aparentemente e a posteriori, necessários, possui igualmente um reverso, isto é, revela uma acção humana que nunca se consegue sistematizar e efectivar de modo absoluto sobre esse mesmo real.
Pode parecer mera banalidade aferir a separabilidade entre os entes e a exterioridade, mas não podemos permitir que a nossa atenção se disperse na aceitação imediata dos dados da experiência. Se o fogo queima e deixa de queimar é porque não estou integralmente unido ao real. Mas se é possível que o fogo queime e deixe de queimar, essa possibilidade pode ser resultado de um encadeamento de movimentos, isto é, de uma união material que se efectiva pela relação de causa e efeito. Se a minha conduta e os meus movimentos mais pueris do quotidiano podem influir na vida de um ente que está do outro lado do mundo ou até nos satélites vagueando pelo espaço, encontramos aí os indícios de um elo não apenas material mas metafísico. Cada acto e cada movimento do Universo se perpetuarão pelo infinito, alimentando-se do Real e perdendo-se numa hierarquia de corpos que se aniquila indefinidamente, a qual nos confunde acerca da importância real dos nossos actos. Esta espécie de holismo não só aniquila a separabilidade como permite que as grandes Revoluções da Humanidade tenham origem em actos aparentemente triviais.
Nada escapa à Ordem; eis a sentença mais imediata que podemos idear. Se criarmos cópias fiéis de um determinado cérebro e as espalharmos por lugares distintos do planeta, esses cérebros expandir-se-ão em personalidades verdadeiramente diversas, isto é, adequadas à circunstância espaço-tempo. E no entanto é-nos impossível repetir uma inversão de movimentos registada num vídeo.
O que a necessidade e o holismo impossibilitam é o Nada. E o facto de impossibilitarem é, por si só, suficiente para se duvidar da sua possibilidade. O Nada solicita a fractura, o hiato e a interrupção espaço-temporal. Se houver um Universo de elos infinitos, onde tudo sucede necessariamente e no qual tudo procede uma causa, o Nada estará votado à impotência. E este Nada impotente não pode caber num mundo de necessidades e sem interstícios onde caibam as sombras do Homem e das suas criações. A contingência consome-se no Nada e o Homem é impelido a ser devorado pelo Nada. É esta inclinação humana pela Angústia que está em causa na impossibilidade registada numa sucessão de imagens inscritas no tempo, isto é, no Passado. O Homem invoca o Nada não apenas através da História e das suas manifestações e lugares onde retumbam as impossibilidades, mas sobretudo no inconsciente, na fractura, no temor, na angústia. Impossibilidade, Nada e Angústia possibilitam, outrossim, a Liberdade e a evasão da Necessidade e do «Olhar de Deus». E este Nada que nos consola é o Inconsciente de Deus, sempre atormentando os sonhos cósmicos, sempre refluindo pelo Universo inteiro.
Seremos então o rebanho tresmalhado de Deus? E se o somos, como poderá um homem sabê-lo? Sabê-lo-á fingindo que o sabe e não o sabendo categoricamente. A Razão é pois Irracional e o Irracional é o retiro do Homem, perdido em meio de Nada, por ele descoberto e incógnito senão no Mistério. E se um tapete o comprovar, o que haverá a lamentar em tudo isto? É ilógico, é imundo, é inconsciente e é o Mistério que finjo nem Deus conceber.
Leonel Ferreira