domingo, junho 10, 2007

ENSAIO: SEBASTIANISMO E TEMPO


Introdução

A reflexão sobre o mito não pode fazer-se sem a consciência de que a sua profundidade nos impede um termo. A procura de fundamentação do Sebastianismo afigura-se-nos, pois, impraticável, não apenas porque «o mito precede o discurso racional e sábio»1 mas mormente porque o corpo da crença no absurdo e sua sequente manifestação temporal no passado, presente, futuro e, particularmente, no porvir, nos toldam qualquer tentativa de explicação no sentido moderno, isto é, «…uma boa parte dos mitos (…) revela uma estrutura do real inacessível à apreensão empírico-racionalista»2. Daqui não resulta qualquer embargo para uma meditação sobre o fundo messiânico e histórico do sebastianismo e a sua incontestável influência e até ascendência na cultura portuguesa, pois parece-nos que «a originária sabedoria no mito semelhado ou figurado, precede a cultura»3. O que se pretende que fique mais ou menos claro é a incompletude de qualquer «teorização», «explicitação», ou «explicação» do domínio sebástico.

A estranheza do objecto não pode, entanto, desimpedir o interesse do investigador, eis o pressuposto da fragilidade daquele que se dedica ao estudo do Mito Sebastianista. Em última análise, o texto sobre o Sebastianismo participa da complexificação do mito, alimentando-o, contribuindo - por vezes de forma decisiva - para a sua própria incompletude. Assim o têm ditado a filosofia e a literatura construída em torno da figura do Desejado.

Este pequeno texto tentará erigir um ponto de partida para a indispensabilidade desta incompletude, firmada essencialmente no aspecto temporal do mito e no pressuposto de que com a fractura e tragédia da História de Portugal se abandona um Império material em proveito de um Império que, consciente ou involuntariamente, se «quis» da Existência e do paradoxo entre o Desespero e a Esperança, pois o mito «rememora a separação entre Deus e o Homem, a queda, a dor e a morte, preanuncia o restabelecimento da harmoniosa unidade»4. O Sebastianismo consubstancia, sob a forma histórica, religiosa, estética e filosófica, o sofrimento do povo português. E este paradoxo é decisivo para a compreensão do Sebastianismo, pois é quando aparentemente o Homem perde a esperança, que se renova a fé no absurdo. Não é pois apenas o passado o que está em causa no Mito Sebastianista, mas, e de um modo decisivo, o futuro, porque deste fenómeno esquivo depende «a compreensão do nosso presente, assim como a legitimidade ou a inanidade das esperanças postas no porvir de todos nós»5.

Nos momentos traumáticos, o Sebastianismo renova forças. Preanuncia-se entre a Apagada e vil tristeza de um Portugal estrangeirado e fragilizado pelos fanatismos e pelas intolerâncias inquisitórias dos tempos de D. João III, emana do desastre de Alcácer-Quibir, e regenera-se durante o domínio Filipino. «O Sebastianismo, fruto da Saudade activada, se nasceu à volta da frágil hipótese do regresso de um rei desaparecido sem sucessão, tornou-se o nervo da resistência ao domínio castelhano (…) um verdadeiro mito nacional, o que justifica tomá-lo por nome próprio de um modo de resistência colectiva»6.

Neste ensaio se apresentará um caminho que conduza à possibilidade de o Mito Sebastianista respeitar, não apenas um momento profano ou mítico mas, de um modo decisivo, a tradição espiritual portuguesa relativamente às questões temporais. E manifestando o mito os traços essenciais da cultura portuguesa, concluir-se-á a sua indeterminação, o seu não-objecto, a sua incompletude e renúncia a sistematizar-se, não apenas indiciada pelo seu carácter mitogénico mas principalmente pela sua comunhão com uma tradição cultural, que encontra eco – contemporaneamente, julgámo-lo – em parte do corpo teórico do Existencialismo. Entretanto, apesar de se apontar determinados momentos e correntes filosóficas às categorias que julgamos ser sub-estruturas do Sebastianismo tais a Saudade, o Desespero e a Fé, a sua complexidade impede qualquer tentativa de adequá-lo integral e radicalmente a movimentos e correntes filosóficas.

No Mito Sebastianista, Passado, Presente e Futuro não se estratificam, não são susceptíveis de fixação. A irracionalidade do mito possibilita o movimento gracioso da dança e da poesia, o deambular e o espiralar da Serpente e daí a sua não objectivação, o seu puro indeterminado. Não significa isto que o Sebastianismo se não possa reverter em acção e em prospectiva vontade. O que se pretende fazer notar é que as categorias do mito não se adequam nem à necessidade nem à contingência, não dependem de uma substanciação ou fundamentação, não se resumem a um passo decisivo e revelador. O Sebastianismo “construiu-se” pela Fé, pelo Desespero, pela Esperança, pela Angústia, por tudo isto e por nada. O Mito, disse-o Fernando Pessoa, é o “nada que é tudo”. Por isso o Sebastianismo influiu de modo decisivo na filosofia e na poesia portuguesa. A figura do Desejado despertou a atenção de todos os grandes nomes da cultura nacional, tais os de Luís de Camões, António Vieira, Almeida Garrett, Fernando Pessoa, José Marinho, Sampaio Bruno, António Quadros, Francisco da Cunha Leão, António Nobre, Afonso Lopes Vieira, Teixeira de Pascoais, Jorge de Sena, entre muitos outros poetas e filósofos que, sebastianistas ou anti-sebastianistas, se dedicaram à compreensão de uma verdadeira religião nacional na qual «se juntaram, em partes iguais o messianismo hebraico-português, o cristianismo messiânico-encarnacionista e os velhos arcanos céltico-bretões, como também, e cumulativamente, as aspirações nacionais e populares, quer a um nível onírico quer a um nível sócio-político»7.

O Sebastianismo foi, para alguns, o motivo das esperanças nacionais, para outros a figurativa estagnação da vontade lusitana. De outro modo não poderia ser, e este é o passo primeiro para a compreensão do mito, isto é, o comum acordo entre a vontade de compreensão e a inelutável ânsia de indeterminação inseparável da condição humana. E se o Ser se encarregou da essência do Pensar, tal o afirmou Martin Heidegger, é compreensível que o Sebastianismo, tendo mais a ver com a Existência no sentido em que respeita à indeterminação, ao assombro e à perplexidade, tenha imperado, de modo tão decisivo, na poesia portuguesa, pois «A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o consumar a manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam»8. O Sebastianismo afirmou-se não apenas através de categorias existenciais mas aportou ao próprio Ser, no sentido em que se desdobrou, pela filosofia e poesia, ao Pensar Português e ele próprio se constituiu como o reservatório, por excelência, da essência da nossa espiritualidade.

O Sebastianismo não rejeita o Nada, mas tal não justifica que se gere do Nada. Ancorando-se no Passado, vivendo-se no Presente e anelando ao Futuro, o Sebastianismo espirala a Realidade. Aparentemente não se cumpriu ainda o regresso do Desejado. A cada negação, a cada opressão, o mito reforça-se. A figura do Desejado, a Ilha Encoberta, alimenta-se da negação e da ausência, edificando-se em paradoxos e espiralando entre antinomias. Não se tratará, certamente, de eternidade, na medida em que tudo finda, mas pretender-se-á demonstrar que não há escatologia senão um fim para além dum fim.


Leonel Ferreira