quarta-feira, julho 11, 2007

NÚMERO NOVE

Editorial

O Homem, a Esperança e o seu ter de ser

Temos uma talentosa e estrutural capacidade, enquanto espécie, para desviar atenções do que nos inquieta, pegar no objecto e amassá-lo, moldá-lo, mudá-lo de posição, pousá-lo deste lado onde a luz não é tão forte, ou daquele onde ressalta à vista um pormenor particularmente mais interessante. Pormenor de pormenores vários menos pertinentes que assim ao longe até são um mero e normal relevo. O criar, o acto da escrita enquanto concretização – ou tentativa - do criar é disso exemplo. Porque desejo criar? Eu, espécie humana, crio porque sou testemunha do criado, do animal – que não é testemunha e por isso não quer criar -, desta terra, de mim e de ti, de mim hoje porque ontem criado, de mim hoje porque hoje criado, porque amanhã criado, porque em tudo, para sempre, criado… Desejo criar por saber que nunca o fiz verdadeiramente, desejo de uma vez para sempre criar um objecto que de todo em todo seja minha total criação. Total? Parcial? Faz sentido questionar totalidade ou parcialidade em questões que tem que ver com o novo, com o nunca antes ocorrido? Um novo que não é todo novo não é novo. “Há (…) uma separabilidade total entre o ente e o real”, disse-se aqui numa anterior edição. Ora, isto faria sentido se considerássemos o real como reais parciais. Se ao conceito de real não está colado o conceito de totalidade, não é de real que falamos, mas de perspectivas deste. A demarcação de um ente particular relativamente ao real é um modo de ser do real e de longe por este observado, não pode haver separabilidade, o real é os entes, todos os entes, mesmo os que já não existem. Aliás, o real de agora é esses entes, em última instância.
“Intuitivamente não imagino como pode a necessidade ter lugar, seja no futuro ou no passado, pois não há previdência no mundo que sustente a impossibilidade”… Da minha parte, não imagino como pode a contingência ter lugar, a impossibilidade é uma consequência inevitável de um mundo que está em andamento. Quando um ente cria um trecho musical será o fruto de uma de várias possibilidades ou será a possibilidade única, inevitável? Quando todo um passado cósmico, terrestre, humano, pessoal, se funde e origina “aquele” ente, com aquelas circunstâncias de vida, com aqueles características idiossincráticas, com aquelas características físicas, mentais, espirituais, com aquelas ocorrências de há 5 minutos atrás, aquelas visões, audições, toques do último passeio pelo jardim, etc… Quando tudo isto se junta será da autoria da criatividade a composição do trecho musical? E será de minha autoria isto que digo ou será de minha – tudo o que não eu – autoria?
“Esta espécie de holismo não só aniquila a separabilidade como permite que as grandes Revoluções da Humanidade tenham origem em actos aparentemente triviais.
Nada escapa à Ordem”. Não só todas as revoluções tiveram origem nesses actos como este acto de esticar a perna marcará para sempre o rumo do mundo. No imediato isto é irrelevante, mas produzirá cada vez mais efeitos transformadores à medida que o tempo passe. Aquela coisa semelhante a um humano que, em 3509, cuspirá para o chão, não o faria naquelas condições espaço-temporais, naquele preciso momento, naquele preciso sítio, não tivesse eu esticado a perna. Porquê? Nada será igual para mim, o meu corpo mexeu-se, tornou-se diferente, criou-me uma memória, esta memória ressurgirá no futuro e irá torná-lo diferente, a mim, por consequência ao que me rodeia e por consequência ao que rodeia o que me rodeia, numa lógica sem fim e em crescendo. O que ocorrerá em 3509 é o acto de uma potência, não de uma possibilidade, mas da potência que é a única possibilidade. “O Nada estará votado à impotência”. Não será essa a condição natural do Nada, ser impossível? O nada é um termo, tal com o infinito, ambos inconcretizáveis, ambos impossíveis. Trágico é o nada ser impossível e essa é a angústia humana, o algo nunca dar lugar ao nada.
Mesmo o fogo que parece recriar-se ao arder arde do seu particular modo que é efeito de uma causa. O meu espírito criativo que pensou fazer emergir a novidade quando criou teve os impulsos que teve, imateriais até, porque a isso foi impelido. A arte enquanto criação não existe, existe apenas como interpretação. O artista é um intérprete, vive e emociona-se com a arte, sente-se vibrar, mas é esse o seu fado, mais nenhum.


André Faia

Poesia

Colagens falsas

É nas ruas despidas de razão
Que me sento à espera do dia que comece
Mas o dia não começa
Porque nas ruas despidas de razão
É sempre noite.

Olho em volta sem olhar para nada
Tenho os sentimentos pendurados ao peito
Como medalhas que não mereci
E me deram na guerra por declarar
Na qual não lutei
A não ser todos os dias da minha vida
A todas as horas
Sem descanso.

Um gigante de pedra desce a rua sem razão
E pergunta-me as horas
Eu respondo que não sei de que me fala
E peço-lhe misericórdia de joelhos
Antes de acordar estendido no passeio molhado
Da estrada de éter que percorre
Aos zigue-zagues embriagados de sentir
As ruas sem razão.

Fujo para longe para não sair do sítio
Percorro para trás um caminho trilhado
Com pedras e espinhos que leva
A lado nenhum
Nas ruas sem razão
Não se vai a lado nenhum
Só se fica lá
Com os sentimentos pendurados ao pescoço
À espera que caiam duma vez
Para não ter de se ficar curvado com o seu peso
Até tocar com o nariz nos joelhos.

Liberdade duma vez
Para quê, mesmo?
Ah, pois, que interessa?
Venha a noite moribunda colher os frutos podres
Da razão asfixiante –
Não quero saber

Na noite fracturada gemem as consortes nupciais
Nos passeios desertos milhares de desperdícios acotovelam-se
No meu peito ferido infinitos sentimentos me queimam
E me condenam ao degredo ignóbil
De deambular perdido e sem sentido
Pelas ruas desprovidas de razão
Para sempre...

...ou enquanto os deuses se divertirem...

Contagens fartas

Foste tu, Infância, que fizeste de mim um menino?
Foste tu que me lançaste perdido no mundo
Do quero fingir que faço de conta
Que é a brincar que imagino?
Foste tu que me puseste a querer ser
O que queria ser quando já não fosse menino?
Foste tu que me fizeste pensar
Que ia ser o que quer que fosse que eu ia ser?

Traidora...

Porque acordo eu então, longe de ti, Infância
A querer ainda ser o que não sou ainda,
A sonhar para fora o que vivo para dentro,
A imaginar lá longe, no porvir,
Que vou ser o que ainda vou ser?

Mentirosa...

Foste-te embora
Deixaste-me entregue nos braços crus da realidade
No abraço frio da existência
E não me deixaste ser o que eu seria lá longe, no porvir
Mas o porvir chegou e eu não sou o que seria
Eu não sou o que fingi que fazia de conta
Que brincava que imaginava que seria

Foste embora...

E deixaste-me órfão de ti
Preso nas tuas sobras...


João Tavares

Poesia

Ecmnésia e Vertigem

O cansaço capitulou os nossos desejos,
O reflexo do sonho errando nas esquinas,
A solidão do arauto do mundo.

Fora destes versos,
Quem revela a máscara ao sorriso?
Quem traça as pontes aos viajantes
Sem destino?


Reis Neutel

Ensaio

SEBASTIANISMO E TEMPO

Passado e Saudade

No dia 20 de Janeiro de 1554, dia de S. Sebastião, as procissões e orações pelo nascimento do herdeiro do reino de Portugal multiplicavam-se em todo o país, particularmente em Lisboa. Sampaio Bruno, no Encoberto, recorrendo ao testemunho de Frei Bernardo da Cruz, adita os motivos da expectativa lusitana: o desassossego do povo português diante da ameaça castelhana no que à sucessão ao trono concernia. D. Sebastião nasce entre presságios e ânsias nacionais de independência; mas não só; diante de um país imerso na crise, ferido no seu orgulho pela perda de praças em África, incluso num novo contexto económico como no-lo adianta Francisco Sales Loureiro em D. Sebastião e Alcácer Quibir, ao príncipe afluíam todas as aspirações e esperanças lusitanas. Não é pois por mero acaso que António Quadros avança com a ideia de um Sebastianismo anterior ao próprio D. Sebastião, um movimento nacional reflectido não apenas no ânimo do povo mas similarmente no pensamento das elites:
«… o Bandarra teria morrido, segundo tudo o indica, no ano de 1545, isto é, nove anos antes do nascimento de D. Sebastião. Mas em algumas das suas trovas surge profetizada a vinda de um soberano, de um Encoberto, qual aquele que é sonhado depois de Alcácer Quibir, o regenerador messiânico de um Portugal não apenas restaurado na sua glória, mas cabeça desse império iluminado de cristandade, de verdade e de paz, que seria o Quinto Império (…) Eis porque D. Sebastião foi o Desejado. O povo, a aristocracia, a elite intelectual e uma boa parte do clero aspiravam ao reencontro político e cultural de Portugal consigo próprio. O jovem príncipe foi investido de toda uma carga de saudade, de esperança e de sonho.»
Em D. Sebastião já Camões antevira a
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande.
antecipando o Sebastianismo e predizendo os caminhos por onde haviam de ser trilhadas as esperanças nacionais. Na génese do Sebastianismo está já presente a síntese de uma saudade que anela um futuro; uma privação, uma carência, uma fractura que evoca a esperança e a fé, depositadas, no caso, num Príncipe Salvador, em absoluto entendido como o Desejado. No indivíduo se projecta o colectivo, num homem se preanunciam os desejos do Povo Português. Para Sampaio Bruno, o sebastianismo coincide com o filosofismo na medida em que o mito sebastianista não é D. Sebastião, nem sequer o Português, mas o Homem expressando a ânsia de ascender do erro para a verdade, o Homem purgando os males pelo desejo da Salvação colectiva.
Esta ascensão do erro para a verdade cumprir-se-á sempre no futuro, isto é, restituirá o princípio originário do Paraíso Perdido, da Infância do Homem e da Idade do Ouro que o português pressente, pela saudade, ter vivido e, de qualquer modo, ter igualmente perdido. «O Messias assume – num registo superior, evidentemente, o papel escatológico do Rei-Deus ou do Rei-representante da divindade na Terra, cuja missão fundamental era a de regenerar periodicamente toda a Natureza» . E porque o mito aporta sempre aos arquétipos, indispensável seria que a Vitória futura do Rei fosse preanunciada entre o sofrimento e a desgraça, rememorando o martírio de Cristo, coroa das esperanças portuguesas projectada num «illo tempore futuro e messiânico . Por isso D. Sebastião cai em Alcácer-Quibir, por isso D. Sebastião regressa numa manhã de nevoeiro. Regresso que se não cumpre nunca mas que não cessa de ser anunciado. A figura de D. Sebastião assoma como o enviado do povo português, como a sua “síntese individual” no dizer de Pascoais, que acrescenta: “há momentos em que um só Homem é um povo: Camões” . D. Sebastião reúne as aspirações antigas e sintetiza as esperanças futuras.
Mircea Eliade chama a atenção para o facto de o Messianismo abolir a História; isto é, assim que o Messias cumpre a Salvação, a História deixa de existir. O surgimento do Messias e o cumprimento das Profecias realizam as mais altas esperanças. No caso do Sebastianismo, a transmutação do mito sugere uma outra via que anula o paradoxo, particularmente através da teoria da Metempsicose sugerida por Fernando Pessoa e que consuma a ideia de incompletude do Mito, essencial, não para a sua perpetuidade mas para a sua própria essência enquanto movimento filosófico fundamentado no paradoxo entre a angústia e a esperança. Segundo o poeta de Orpheu, D. Sebastião ressurgiria na História assim que alguém evocasse em si a forma do espírito do Desejado. Por isso D. Sebastião poderia regressar indefinidamente e sob várias formas, pois assim que alguém concebesse algo que rememorasse a substância e matriz espiritual de D. Sebastião, o regresso do Encoberto estaria consumado. Assim, Fernando Pessoa sugere alguns nomes como possíveis regressos do Encoberto tais os do Marquês de Pombal, Sidónio Pais ou o próprio Fernando Pessoa. Estamos não só diante de uma regeneração periódica do tempo mas também sob a premência de uma incompletude indispensável ao traço ontológico do mito. Adianta Fernando Pessoa; «A alma é imortal e, se desaparece, torna a aparecer onde é evocada através da sua forma. Assim, morto D. Sebastião, o corpo, se conseguirmos evocar qualquer coisa em nós que se assemelha à forma do esforço de D. Sebastião, ipso facto o teremos evocado e a alma dela entrará para a forma que evocámos». A teoria da metempsicose encontra semelhanças com a Saudade no sentido da Reminiscência platónica, da evocação de uma forma espiritual, de uma rememoração impessoal e inobjectivável – tal o Sebastianismo invoca, pelo Passado e Futuro, o paraíso perdido, a reminiscência de uma infância ideal que há-de regressar simbolicamente pela coroa desse Quinto Império que é D. Sebastião.
Esta teoria reveste-se de uma importância sem par na nova abordagem do Sebastianismo, pois aproxima o mito a uma filosofia inobjectivável, cujo elemento real se não encontra mas se prefigura numa forma impalpável. Meditando nas seguintes palavras de Mircea Eliade: «Executados pelo homem, todo o ritual ou toda a acção dotada de sentido repetem um arquétipo mítico (…) A repetição implica a abolição do tempo profano e a projecção do homem num tempo mágico-religioso que nada tem que ver com a duração propriamente dita, mas constitui este “eterno presente” do tempo mítico» pode concluir-se da indeterminação do objecto do mito Sebastianista. Esta indeterminação respeita, em última análise, a mesma ausência de objecto que Ramon Piñero anteviu na Saudade, caracterizando-a como um puro sentir desligado do pensamento e da vontade. Não há estranhamento neste remate se concluirmos uma conformidade da vivência Sebástica – confluindo em si a Saudade e a questão temporal - com o existencialismo, mormente na importância da angústia. O pensador galego Celestino de la Vega entendeu que «la saudade es un sentimiento sin objecto, lo mismo que la angustia es un estado de anima sin objecto» . A angústia não cede a coisificação. O Ser, experenciando a finitude, é ser de insatisfação. Em Kierkegaard, a angústia como faculdade humana de captação de sentido, aponta para uma transcendência que não está, contudo, totalmente fora do Homem. Se o momento histórico da morte do Rei aponta uma efectivação material traumática, todo o movimento em torno do seu regresso traduz a complexidade do mito, o paradoxo entre a angústia e a esperança. De alguma forma, a Saudade participa deste mesmo paradoxo, reportando-se às antinomias nacionais, não apenas a uma indeterminação mas também a um apego à vida e à natureza envolvente, a uma «expectação do futuro, com angústia e esperança» .
O momento do paradoxo não é, contudo, claro. Se a abolição do tempo profano sugere a supressão do facto, o paradoxo é inseparável de todos os momentos do tempo mítico. Quer isto dizer que a indeterminação/determinação do mito sugere uma ultrapassagem do vivido que espirala entre a lembrança e a esperança, entre a acção e a sublimação da existência. Se o mito apela à incompletude, o seu ponto de partida sugere sempre um exemplo. O momento histórico é o arquétipo, o modelo das esperanças futuras. Pela Metempsicose regressa periodicamente a forma do Desejado, um regresso que se dá na sua «realidade e presença concreta, posto que não fisicamente pessoal» , um regresso que fecha um ciclo para logo abrir outro.
O que é evocado é o exemplo, o momento a que se aspira é o da Infância do Homem, a Idade do Ouro e a antiga coexistência do humano com o divino. A reminiscência dessa infância, encontramo-la na Saudade, sentimento-síntese, no dizer de Teixeira de Pascoais, que ecoa nas quadras populares:
De Qualquer forma que existas
És a mesma Divindade;
Ventura quando te vejo,
Se não te vejo, Saudade.
e na poesia de Camões:
… a Saudade
Daquela santa cidade
Donde estalma descendeu
Para Pascoais, a Saudade «é já a sombra do Encoberto amanhecida, dissipando o nevoeiro da legendária manhã» . Significa isto que a Saudade não se mantém expectante mas deriva do Idealismo do povo português e da sua liberdade relativamente à Matéria, animada pela Lembrança e pela Esperança. O que importa reter na Saudade não é o seu exclusivismo no temperamento português. Aliás, Carolina Michäelis rejeita a ideia de que outros povos não conheçam esse sentimento. O que é relevante é a sua ascendência na psicologia portuguesa, levando-a a distinguir-se, indubitavelmente, de outros modos de pensar. Desta particularidade resulta a originalidade da literatura portuguesa.
O Sebastianismo, anulando o Tempo e a História no sentido profano, é igualmente interrogação sobre a memória, pois apontando o significado profundo da Saudade, reverte a recordação e o vão desejo em afirmação ontológica do destino do Homem. Inscrevendo o Passado, o acontecimento traumático reverbera no sonho do porvir. Pelo regresso D. Sebastião se afirma como figura simbólica do Quinto Império, rememorando a Idade do Ouro e cumprindo a paixão donde «Vêm-me saudades de ter sido Deus» . Entretanto, há um «…movimento contínuo, já que se não sabe quando começa ou quando acaba. Todos os pontos são começo e fim – o que transcendentaliza cada momento existencial» .
A Saudade é ditada pela sub estrutura psicológica do português, afeito ao sentimento saudoso mas também voltado para a acção e para o movimento prospectivo, encontrando no passado não um momento de paralisação mas uma força para tomar impulso. Não se trata de uma criação nascida da imaginação de predestinados mas da alma de um povo, fazendo menção da sua poética e transcendência. A aspiração ao futuro, não nascendo de geração espontânea, alicerça-se no passado. O Sebastianismo é a Saudade neste sentido, pois se aparece como «prenhe de tempo e de futuro, é justamente porque nele surge uma daquelas imagens que, profundamente ligadas ao que já foi, aparece como suscitadora de crença e de fé na possibilidade de realizar-se o mais alto e o mais difícil a que o homem aspira» . Daqui resulta necessariamente que «…a saudade é uma tradição, mas uma tradição sem fórmulas que a fixem e transmitam, uma tradição sempre difícil de surpreender e de reconstituir» . Não espanta pois que o espírito português deambule entre os momentos de tensão e fractura e os de uma euforia e anseio de acção verdadeiramente ímpares tais os que edificaram a epopeia dos Descobrimentos. Em última análise, o indeterminado sugere a figura paradigmática do funâmbulo de Nietzsche ou mormente da Serpente, tão marcante na cultura simbólica portuguesa, indicando um movimento em espiral. A Serpente «apresenta-se como símbolo do conhecimento global – a serpente enrolada, a boca tocando o rabo denomina simbolicamente o universo do saber, a unidade do ser» . Não há, no Sebastianismo como na Serpente, movimento parcial, pois «Ela (a serpente) liga os contrários verdadeiros, porque ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita ou da esquerda, ou do meio, ela segue um caminho que passa por todos e não é nenhum.»



Leonel Ferreira

Poesia

curvo

O nosso amar, amor,
tem do lúcido das estrelas o estertor
e do marulhar límpido um rio chão


Ruy


ode-te (extracto)

também eu já fui bruto, estúpido, indecente
mudei de direcção, tantas vezes sem água vai,
sem mínima indicação, sem um sinal.
também eu pensei já em prosseguir.
entreti-me no insistir. sentei-me a muro e caí.


também eu nunca foi assim. também tu, sempre mais.


Ruy


Deu-se um sucessivo excesso e
deus num degrau senta-se cingido,
e espera-me das mãos dos bolsos
porque sei que é impossível,
- convexo assobio
sem me acreditar
potável


Ruy


copio as mãos dos mortos.
sei que um morto é algo obtuso, não me pejo em o afirmar.
mas sem dúvida que os perturbo, aos bichos no seu larvar.
tenho as minhas dúvidas, mas lavo as mãos ao me deitar.


Ruy

Citação

“A felicidade, como o ouro, precisa de ser extraída do minério do trabalho quotidiano.”

Merle Shain (1935-1989)

domingo, junho 10, 2007

NÚMERO 8

EDITOR 8IT0

“The man who writes about himself and his own time is the only man who writes about all people and all time.”

George Bernard Shaw (1856 - 1950)


Será o escritor uma espécie de predestinado, de um super-homem?
A marcha do tempo é inevitável. O mundo cambia em menos de nada. Somos vigiados pelas câmaras escuras dos nossos governos. Acabou-se há muito a privacidade. Sim, ou talvez não. Num exíguo sótão, o autor desafia o exterior, debate-se com os labirínticos contornos dos seus pensamentos, entorna tinta sobre eles, manipula-os até lhe dar a cor certa. Palavras são pensamentos prévios, sem pensamentos nunca o terem deixado de ser.
Mas tudo parece resvalar na inércia do mundo de olhares vagos. E ele, o centro do mundo, que bem conhece, o farol de turbilhões de pensamentos — pensa se valerá mesmo a pena escrevinhar signos por signos.
O acto de escrita surge da necessidade de uma auto - comiseração do ser-autor. A escrita funde-se nos recônditos dos seus desejos e aversões. Medita com a palma da razão. Porém, o silêncio dá lugar à dor. O peso do mundo abate-se sobre ele. Não há lugar ao regresso a casa, pois não há casa que o acolha mais. Resta-lhe um caminho. Continuar. Ele será a chave da nova criação. Deve, então, continuar, apesar da dor e do cansaço. Só assim, a obra nascerá e com ela a terapia no seu consolo.

Reis Neutel

CITAÇÃO I

“Cada um de nós faria mais coisas, se as julgasse menos impossíveis.”

(La Rochefoucauld)

ENSAIO: SEBASTIANISMO E TEMPO


Introdução

A reflexão sobre o mito não pode fazer-se sem a consciência de que a sua profundidade nos impede um termo. A procura de fundamentação do Sebastianismo afigura-se-nos, pois, impraticável, não apenas porque «o mito precede o discurso racional e sábio»1 mas mormente porque o corpo da crença no absurdo e sua sequente manifestação temporal no passado, presente, futuro e, particularmente, no porvir, nos toldam qualquer tentativa de explicação no sentido moderno, isto é, «…uma boa parte dos mitos (…) revela uma estrutura do real inacessível à apreensão empírico-racionalista»2. Daqui não resulta qualquer embargo para uma meditação sobre o fundo messiânico e histórico do sebastianismo e a sua incontestável influência e até ascendência na cultura portuguesa, pois parece-nos que «a originária sabedoria no mito semelhado ou figurado, precede a cultura»3. O que se pretende que fique mais ou menos claro é a incompletude de qualquer «teorização», «explicitação», ou «explicação» do domínio sebástico.

A estranheza do objecto não pode, entanto, desimpedir o interesse do investigador, eis o pressuposto da fragilidade daquele que se dedica ao estudo do Mito Sebastianista. Em última análise, o texto sobre o Sebastianismo participa da complexificação do mito, alimentando-o, contribuindo - por vezes de forma decisiva - para a sua própria incompletude. Assim o têm ditado a filosofia e a literatura construída em torno da figura do Desejado.

Este pequeno texto tentará erigir um ponto de partida para a indispensabilidade desta incompletude, firmada essencialmente no aspecto temporal do mito e no pressuposto de que com a fractura e tragédia da História de Portugal se abandona um Império material em proveito de um Império que, consciente ou involuntariamente, se «quis» da Existência e do paradoxo entre o Desespero e a Esperança, pois o mito «rememora a separação entre Deus e o Homem, a queda, a dor e a morte, preanuncia o restabelecimento da harmoniosa unidade»4. O Sebastianismo consubstancia, sob a forma histórica, religiosa, estética e filosófica, o sofrimento do povo português. E este paradoxo é decisivo para a compreensão do Sebastianismo, pois é quando aparentemente o Homem perde a esperança, que se renova a fé no absurdo. Não é pois apenas o passado o que está em causa no Mito Sebastianista, mas, e de um modo decisivo, o futuro, porque deste fenómeno esquivo depende «a compreensão do nosso presente, assim como a legitimidade ou a inanidade das esperanças postas no porvir de todos nós»5.

Nos momentos traumáticos, o Sebastianismo renova forças. Preanuncia-se entre a Apagada e vil tristeza de um Portugal estrangeirado e fragilizado pelos fanatismos e pelas intolerâncias inquisitórias dos tempos de D. João III, emana do desastre de Alcácer-Quibir, e regenera-se durante o domínio Filipino. «O Sebastianismo, fruto da Saudade activada, se nasceu à volta da frágil hipótese do regresso de um rei desaparecido sem sucessão, tornou-se o nervo da resistência ao domínio castelhano (…) um verdadeiro mito nacional, o que justifica tomá-lo por nome próprio de um modo de resistência colectiva»6.

Neste ensaio se apresentará um caminho que conduza à possibilidade de o Mito Sebastianista respeitar, não apenas um momento profano ou mítico mas, de um modo decisivo, a tradição espiritual portuguesa relativamente às questões temporais. E manifestando o mito os traços essenciais da cultura portuguesa, concluir-se-á a sua indeterminação, o seu não-objecto, a sua incompletude e renúncia a sistematizar-se, não apenas indiciada pelo seu carácter mitogénico mas principalmente pela sua comunhão com uma tradição cultural, que encontra eco – contemporaneamente, julgámo-lo – em parte do corpo teórico do Existencialismo. Entretanto, apesar de se apontar determinados momentos e correntes filosóficas às categorias que julgamos ser sub-estruturas do Sebastianismo tais a Saudade, o Desespero e a Fé, a sua complexidade impede qualquer tentativa de adequá-lo integral e radicalmente a movimentos e correntes filosóficas.

No Mito Sebastianista, Passado, Presente e Futuro não se estratificam, não são susceptíveis de fixação. A irracionalidade do mito possibilita o movimento gracioso da dança e da poesia, o deambular e o espiralar da Serpente e daí a sua não objectivação, o seu puro indeterminado. Não significa isto que o Sebastianismo se não possa reverter em acção e em prospectiva vontade. O que se pretende fazer notar é que as categorias do mito não se adequam nem à necessidade nem à contingência, não dependem de uma substanciação ou fundamentação, não se resumem a um passo decisivo e revelador. O Sebastianismo “construiu-se” pela Fé, pelo Desespero, pela Esperança, pela Angústia, por tudo isto e por nada. O Mito, disse-o Fernando Pessoa, é o “nada que é tudo”. Por isso o Sebastianismo influiu de modo decisivo na filosofia e na poesia portuguesa. A figura do Desejado despertou a atenção de todos os grandes nomes da cultura nacional, tais os de Luís de Camões, António Vieira, Almeida Garrett, Fernando Pessoa, José Marinho, Sampaio Bruno, António Quadros, Francisco da Cunha Leão, António Nobre, Afonso Lopes Vieira, Teixeira de Pascoais, Jorge de Sena, entre muitos outros poetas e filósofos que, sebastianistas ou anti-sebastianistas, se dedicaram à compreensão de uma verdadeira religião nacional na qual «se juntaram, em partes iguais o messianismo hebraico-português, o cristianismo messiânico-encarnacionista e os velhos arcanos céltico-bretões, como também, e cumulativamente, as aspirações nacionais e populares, quer a um nível onírico quer a um nível sócio-político»7.

O Sebastianismo foi, para alguns, o motivo das esperanças nacionais, para outros a figurativa estagnação da vontade lusitana. De outro modo não poderia ser, e este é o passo primeiro para a compreensão do mito, isto é, o comum acordo entre a vontade de compreensão e a inelutável ânsia de indeterminação inseparável da condição humana. E se o Ser se encarregou da essência do Pensar, tal o afirmou Martin Heidegger, é compreensível que o Sebastianismo, tendo mais a ver com a Existência no sentido em que respeita à indeterminação, ao assombro e à perplexidade, tenha imperado, de modo tão decisivo, na poesia portuguesa, pois «A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o consumar a manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam»8. O Sebastianismo afirmou-se não apenas através de categorias existenciais mas aportou ao próprio Ser, no sentido em que se desdobrou, pela filosofia e poesia, ao Pensar Português e ele próprio se constituiu como o reservatório, por excelência, da essência da nossa espiritualidade.

O Sebastianismo não rejeita o Nada, mas tal não justifica que se gere do Nada. Ancorando-se no Passado, vivendo-se no Presente e anelando ao Futuro, o Sebastianismo espirala a Realidade. Aparentemente não se cumpriu ainda o regresso do Desejado. A cada negação, a cada opressão, o mito reforça-se. A figura do Desejado, a Ilha Encoberta, alimenta-se da negação e da ausência, edificando-se em paradoxos e espiralando entre antinomias. Não se tratará, certamente, de eternidade, na medida em que tudo finda, mas pretender-se-á demonstrar que não há escatologia senão um fim para além dum fim.


Leonel Ferreira

POESIA: D. SEBASTIÃO

INVERSÕES DO INCÓGNITO

Alma-Império de mim partiste
Como as lágrimas dos que me sonharam
Cinzas que
Retomam sua sombra
como último destino

Sopro veloz e brando retoma
Agora
O teu fluxo
E dilacera em mim
A tua sentença infernal.


Filipe Monval

CITAÇÃO II


“O prazer é frágil como uma gota de orvalho, morre enquanto ri.”

(R. Tagore)

CONTO

ANITA

(Atenção: este excerto não é indicado aos adoradores do Noddy e do Bob o Construtor)


Episódio 2º - Uma surpresa nunca vem só


— Que seca! — pensava Ricardo, enquanto olhava à sua volta. O disco-bar estava às moscas. A música indiana e o ambiente retro anos oitenta fustigavam-lhe os sentidos. Eram onze horas da noite. Onze horas, apenas! Parecia-lhe ter passado tanto tempo.
— Ei Ricardo, estamos há quinze minutos aqui e ainda não falaste de ti. O Miguel disse-me que trabalhas numa empresa de contabilidade.
Ricardo fitou a rapariga, que se encontrava sentada ao seu lado, mas com algum receio. Parecia custar-lhe olhá-la olhos nos olhos.
— Como é feia — pensava — e aquele buço. Qual buço? Que bigodaça me manda esta.
— Ricardo, Ricardo estás cá?
— Sim, desculpa Miguel. Estava distraído. Cansado. Marta perguntavas-me...
— Oh, o que fazes ao certo?
— Trabalho burocrático. De tudo um pouco — rematou.
— Ah! E isso é duro?
— Sim, muito — respondeu inseguro.
Nesse momento, Miguel levanta-se e toca no ombro do amigo.
— Anda vamos buscar umas bebidas para as nossas convidadas. Só um momento meninas. Vamos trazer-vos duas bebidas bem boas. Anda daí, rapaz — disse novamente ao amigo.
Como que salvo no último segundo de morrer num submarino perdido no fundo do mar, assim se sentia Ricardo. Mais no fundo não podia bater. A sua expressão mudou, era agora alívio que reflectia. Chegaram ao balcão em três ou quatro passos. Passos lentos, mas largos. Miguel fitou o outro friamente, perscrutando-lhe o que lhe ia na alma. Seria o peso da idade? Seria cansaço?
— Conta-me, o que se está a passar? Tens algum problema?
— Não, nada.
— Eu conheço-te, pá. E sei que se passa alguma coisa.
Ricardo observou como os olhos verdes do amigo cintilavam.
— Já sei. Daqui a três dias fazes anos. Sentes-te mais velho, sentes-te frustrado, mas...
— ... estou cansado, rapaz.
— Vá lá conta-me a verdade. As gémeas são umas brasas e tu dizes-me que estás cansado. Vamos divertir-nos. O ambiente é porreiro, a música é...
— ... deprimente?
— Hã? Estás de gozo?
— Nã, esquece.
— Não acredito. Saíste-me cá um esquisito. Para ti nunca está nada bem.
— Vamos lá pedir as bebidas, estas pago-as eu, ok?
— Ei meu, relaxa. Vai tudo correr bem. Aproveita o momento. Vamos fazer uma grande festa com as gémeas na próxima quinta. Que dizes, pá? Para festejarmos, vá lá.
— Não sei. Não estou nos meus dias.
— Não gostas mesmo de nada. O que queres afinal da vida? Este sítio é especial, a Marta é especial e tu aqui a lamentar-te. Olha bem para aquela miúda.
Ricardo moveu desconfortavelmente os olhos na direcção da mesa das raparigas. A Carla, a acompanhante de Ricardo era vistosa. Tinha os olhos bonitos e expressivos, talvez verdes, talvez azuis, a pele lustrosa e alva, uma pequena boca fina mas bem demarcada, umas sardas pequeninas, quase imperceptíveis. Contudo, encontrava mais encanto no cabelo ruivo da rapariga. Desde tenra idade tinha manifestado uma certa inclinação para gostar de ruivas. Porém, havia a sombra da irmã gémea. Sempre a sombra da irmã a pairar por perto, como que eclipsando aquele deslumbramento. Mas deviam ser com certeza gémeas falsas. A Carla, aaaaaaaahhhh, como lhe causava repúdio observar a moça. Era igual à irmã, ruiva, sardenta, olhar meloso, e até aqui tudo bem, mas o bigode estragava tudo. Talvez se não fosse ruiva, se não tivesse a pele tão branca... não desse tanto nas vistas. Mas que caramba, um homem com um certo status tem de ter cuidado com as suas companhias! Lamentou-se da sua falta de sorte.
— Mas o que queres que te diga. Este não é meu sítio. Sinto-me deslocado. O ambiente é... engraçado, mas este não é o meu sítio — voltou a ripostar com Miguel.
— O quê? Agora é... este “não é o meu sítio” — Miguel franziu a testa, cruzou os braços e com um ar sábio suspirou —. O menino quer violinos, vinho francês, pratos de loiça inglesa, pessoas de smoking, Oh très Charmant.
— Esquece, pá. Tu não entendes.
— Claro que entendo. Olha para mim, — puxou-o pelo braço com força —, sabes qual é o teu problema? Sabes? Tens medo de ser feliz, — o amigo de boca aberta olha-o estupefacto —, receias procurar a felicidade. Essa é que é essa. Tens mais a perder do que a ganhar se não arriscares a tua felicidade.
Ricardo pediu duas bebidas, deixando o seu amigo imerso nos seus pensamentos. Miguel durante largos segundos não ousou abrir a boca. Este gajo droga-se — pensou.
— Se queres ir ao teatro ou à ópera, força. Não contes mais comigo. — Bebeu um gole e retirou-se da beira do amigo, rumando em direcção da sua gémea.
Ricardo ficou imóvel, petrificado. Ficou a remoer as palavras do amigo. Aquele mesmo amigo vago e fútil. Nunca o seu amigo em mais de trinta anos de amizade — conhecia-o desde os quatro anos — tinha tido um momento tão iluminado. O que lhe sucedera? Seria a madures, finalmente? — pensou —. Aquele rapaz estava a tornar-se num homem. Procurar a felicidade, era isso. Procurar ser feliz, é o melhor conselho que lhe podiam ter dado e logo vindo da pessoa menos propensa para tal. Voltou-se para a sua gémea e encontrou logo o buço da rapariga.
— Não pode ser, devo estar com alucinações — pensou — não é possível que o bigode seja visível a três metros de distância e com pouca luz. Vou pedir uma bebida mais forte. Um, um não dois shots. E haverá sempre um terceiro à mão — e sorriu. Voltou-se para o barman e pediu dois shots bem fortes. Bebeu-os de penálti, um após o outro. Abanou a cabeça, sentiu como o veneno mergulhava pelas suas entranhas. Imediatamente, ficou enjoado. Respirou fundo, deu duas ou três palmadas em cada face, bateu com os pés no chão e em seguida, uivou desalmadamente. Todo este espectáculo decorria mesmo em frente das gémeas e de Miguel, que permanecia imóvel, medindo cada um dos enérgicos e bizarros gestos do amigo. Teria ele perdido a razão? Nunca o tinha visto beber daquela maneira, muito menos comportar-se como um louco, — Credo! Fiz merda, — magicou para consigo — oh, mãezinha o que fui fazer? — Miguel pôs as mãos sobre a testa, tapando os olhos, sentiu-se perturbado, embaraçado, escandalizado, o que iriam pensar as raparigas? Ousou, nervosamente, alvejar de esguelha as reacções das gémeas.
Mas as gémeas, sobretudo a Marta, deliciavam-se com o desenrolar frenético dos acontecimentos. Agora aplaudiam de pé a gesta do herói sobre o palco, de peito bem aberto pedindo um terceiro shot “El Matador” e de seguida um quarto e pede com valentia o quinto. Com estrondo o copo do shot caí, caprichosamente, ao chão e parte-se em mil e um nacos (PRSHHHHHHHHHHHHHHHHiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmmmmmmmm).
— Ups!
Ricardo muito vermelho, mas agora o vermelho da rectidão moral estabelecido na sua face, pois parecia ter recuperado o tino, dirige-se com inefável subserviência e educação ao barman, pedindo mil e uma desculpas. O homem riu-se, o que chateou ainda mais Ricardo. Tinha que resolver rapidamente o imbróglio.
— Bem, dois martinis brancos duplos, se faz favor.
Pegou nos dois copos e devagarinho, para não cair, pois sentia as pernas um pouco bambas, rumou de volta à mesa. Sentia-se ainda mais desconfortável. Que mísero espectáculo tinha proporcionado e ainda por cima a Marta tinha apreciado. Deu as duas bebidas às raparigas e sentou-se sem abrir a boca. O que fazer a seguir. Deveria despachar a rapariga? Não era seu hábito ser descortês. Tinha que pensar em algo, rapidamente. Como sobreviver àquela noite de pesadelo? Fitou Miguel. Este lívido também não ousava abrir a boca. Foram as gémeas que começaram a puxar conversa, manifestando júbilo pela espantoso desempenho do trintão. Ambas falaram pelos dois durante infindáveis horas.
As raparigas além de falarem demasiado, bebiam como bestas. O charme de Carla rapidamente se esmoreceu para Ricardo, mas não para Miguel, que aos poucos e poucos se voltou a animar e começou a beijar o pescoço da rapariga.
Pelas três e meia da manhã, finalmente a Marta começou a dar sinais de fraqueza. Já não completava as frases, ria-se sempre a meio e a irmã ajudava à festa, com gargalhadas monumentais e roncos inumanos, — deplorável a todos os títulos — pensava Ricardo.
Mas a irmã num, agora, raro momento de lucidez levantou o copo de gin tónico, o qual fitou especada e começou a falar de uma estranha alergia de que padecia e do tratamento médico que efectuava diariamente e, principalmente dos seus inestéticos efeitos secundários. Nesse mesmo instante, voltou-se para Ricardo.
— Ricardo, amor! Sabes que eu... se calhar ainda não notaste... tenho alguns pelitos... aqui e acolá — e pousou o dedo indicador sobre o bigode e sobre as faces, junto aos ouvidos — estás a ver? É horrível, não é?
— Sim — balbuciou Ricardo — mas, não se nota, pois não? — atalhou desviando o olhar rapidamente na direcção de Miguel.
Miguel num movimento torpe e inusitado levanta a cabeça e coloca-a mesmo em frente da pobre moça.
— Ei, não posso acreditar. É horroroso. Que pêlos enormes. Que tragédia singular!
Ricardo levou mão à cabeça. O seu amigo estava completamente grogue.
— Não ligues. Ele está sempre a gozar.
— Não estou nada, meu. Tu és mutante? Só podes ser mutante.
Marta começou a chorar, enquanto a irmã a tentava consolar. Alguns momentos depois, a rapariga apavorada e embaraçada pegou na sua carteira à tira colo e saiu a correr. Carla, seguiu-a logo de imediato, sem se despedir dos dois amigos.
— E eu a pensar que estavas no caminho certo.
— Hã?
— És um idiota. Acabou a bebida.
— Hã? O que eu disse de mal?
— Anda pega no casaco. Vou levar-te a casa.
— Eu não preciso de ti.
— Fica aqui vou pagar a conta.
A noite finalmente acabara, sem contudo findar da melhor maneira. Ao chegar ao seu pequeno apartamento, Ricardo estendeu-se na cama e adormeceu.

* * *

O aniversário de Ricardo chegara. Miguel tinha uma surpresa para ele. Uma semana antes, tinham visto numa papelaria um livro de comics da série favorita de ambos, o Super X. Ricardo parecia ter-se entusiasmado, chegando mesmo a comprar o livro, segundo ele para “recordar os bons tempos de adolescência”. O Super X era o melhor de todos os super-heróis. Carismático, versátil, forte, justo e galã. As mulheres não se lhe resistiam. Um exemplo perfeito de virilidade. Fazia tudo sem esforço e não tinha adversários à altura, bem a não ser o malévolo Dr. Ezquizo. Mas o Super X era um espectáculo, uma lenda. Agora Miguel lembrara-se de estampar numa t-shirt o símbolo mítico do herói e oferecer esta ao amigo.
Decidiram almoçar juntos nesse dia. Miguel passou um pouco mais cedo do que combinado pela empresa de Ricardo. Enquanto esperava, espiou as actividades de uma das funcionárias. Ora se debruçava para arranjar as meias, o que fazia rejubilar Miguel, ora levava as mãos aos fartos cabelos negros para os pentear, duma forma que ele considerou muito sexy.
— Deixa a Margarida em paz. Ela não é o para o teu bico.
— Ah, nem te vi. Como que não é para o meu bico?
— Nem para o meu. Já tentei. Vamos embora.
— O que te fez.
— Deu-me com os pés.
— Vamos passar por ela, por favor,.
— Está bem.
Ao passarem pela mulher de fartos cabelos negros e de longas pernas sexys, Ricardo cumprimentou-a. A rapariga sorriu.
— Olá Ricardo.
— Vou almoçar. Xau.
— Xau, até logo. Bom almoço.
— Obrigado, — responderam os dois homens em coro.
Mal se voltaram, deram de caras com Anita e uma amiga desta, que se encontravam à espera do elevador. Ricardo corou. Miguel abriu a boca e nada disse. Foi a rapariga morena que acompanhava Anita que falou:
— Vão para baixo?
— Com certeza! — respondeu prontamente Miguel.
Ricardo observou como Anita nem sequer os olhou. A rapariga parecia ignorá-los. Manteve uma atitude distante e altiva durante o percurso de elevador. Emanava uma fragrância suave. Ricardo sentiu-se nervoso. Ela e amiga saíram sem dizer nada, em passo rápido. Ricardo seguiu-as com o olhar. Ele e Miguel estavam dois passos atrás. Anita estacou à saída do edifício, procurando alguma coisa na carteira, enquanto a amiga abriu a porta. Passados alguns instantes, tirou o telemóvel da carteira. Nesse mesmo momento, Ricardo chegou à porta, Anita com a mão direita não permitiu que a porta se fechasse. Ricardo encontrou os olhos verdes de Anita. Suavemente ela sorriu-lhe. Ele agradeceu-lhe o gesto.
Durante algum tempo Ricardo, inconscientemente, observou-a, enquanto ela se distanciava na calçada da rua, até que a sua silhueta se dissolveu na malha de figuras anónimas.
— É pena, muita pena. Que tragédia singular.
— Ah?
Miguel pôs a mão no ombro do amigo e abanou a cabeça.
— Que mulheres! Que desperdício — e suspirou fundo.
— Desperdício?
— As duas, nós os dois, que raio de mundo. Vamos lá comer, Ricardo, isto já me deu a volta ao estômago e depois tenho que voltar para o jornal.


* * *

A festa de aniversário começou às sete da tarde. Na minúscula sala de estar de Ricardo, os seus pais e o amigo, Miguel começaram por incentivá-lo a colocar um estúpido barrete do “rato Mickey” e a bufar num apito com toda a força. O aniversariante acedeu a ambos os pedidos, todavia com manifesta hesitação.
Logo após, os pais passaram-lhe para as mãos, com muito cuidado um saquinho transparente, no qual se encontravam dois peixinhos dourados virados ao contrário. Ricardo notou, fazendo deslizar os dedos por uma das extremidades do pequeno saco, como o mesmo estava furado. Fitou os pais por uns segundos na ânsia de obter mais informações sobre a proveniência dos peixinhos, mas percebendo que nada iriam dizer, prontamente agradeceu-lhes a oferta.
Os pais ainda tinham uma outra prenda, um livro intitulado: “Como ser feliz em trinta etapas”. A obra era abundantemente ilustrada, o que segundo o papá Horácio tornava as coisas muito mais fáceis para o seu filho.
Por seu turno, Miguel deu-lhe uma edição especial de um livro bestseller, o “Kamasutra ilustrado para iniciantes”. Miguel conseguiu arrancar, apenas do seu amigo, um ligeiro sorriso cínico e uma promessa de que as coisas não iam ficar por aí. No entanto, a mamã Elvira não enxergando bem o que aquela obra, também ela profusamente ilustrada, debatia, teve o seguinte o comentário para o seu marido:
— Era bom que o nosso menino se arrumasse com alguém, não era Horácio?
O homem, coitado, lá teve de assentar com a cabeça.
Por fim, Miguel apresentou-lhe a última das oferendas. Envolta numa caixa preta, com um laço vermelho por cima, encontrava-se a t-shirt com o mítico símbolo do Super X estampado.
Miguel segredou qualquer coisa ao amigo.
— Não estava à espera. Uma camisola do Super X. Original. Obrigado.
— Vá lá, não sejas tão modesto. Não querias vestir a pele de um garanhão — e riu-se selvaticamente.
Ricardo sorriu, desconfiado. Abriu a camisola e pô-la à sua frente. O estampado era perfeito e de certeza que a camisola lhe assentaria bem.
Ricardo sorriu e cumprimentaram-se.
— Quem sabe se não a levo amanhã para o trabalho.
— Ah, isso é que é falar.
— Estou a mangar, pá.
— E qual era o problema de a levares?
— Bem, preciso de arranjar umas meias com ursinhos e veados a condizer.
— Oh, não sejas infantil.

* * *
O jantar decorreu tranquilamente, somente a monotonia era interrompida pelo sorver da comida da mãezinha e a renite do papá, o que bem vistas as coisas, até não era dizer pouco.
Quase duas horas depois, chegara a hora de cantar os parabéns e soprar as velas. Desta vez, o protagonismo foi entregue, na íntegra, a Miguel. O pobre rapaz depois de ter bebido quase uma garrafa e meio de vinho e uma garrafa inteira de champanhe, não conseguia estar de pé, muito menos cantarolar a música ou mesmo decifrar quem era o aniversariante. Por duas vezes tentou beijar o velho Horácio, à terceira foi impedido resolutamente pelo amigo, que envergonhado, o forçou a manter a compostura.
Antes de apagar as velas, Ricardo observou detalhadamente cada um dos presentes, enquanto cada um dos convivas o puxava para soprar com força.
— Pede um desejo, meu filho.
— Sim, pá. Força!
— Ainda não casaste, oxalá casasses, não é Horácio?
— Sim, sim mulher, pois... — ronronou o pai.
— Isso, casa nova — vociferou de rompante o amigo.
Ricardo olhou apavorado para os parentes e para o seu querido amigo, que já trocava os olhos, os olhos lacrimejantes da mãe, a renite alérgica do pai, os olhos tortos do amigo, as choro da mãezinha, os ranhos do papá, o olhar vidrado e desfocado de Miguel, o pranto da mamã Elvira, os moncos do papá Horácio e todos em coro...
— Sopra, sopra, sopra...
Os olhos trocados do amigo, os ranhos da mãe, o choro do pai... O que Ricardo poderia desejar?
— Sopra, sopra, sopra...
Ricardo olhou para os peixinhos dourados mortos, os dois livros ilustrados e finalmente para a t-shirt com o mítico X. A camisola que o seu herói de juventude vestia, o mesmo herói galã, que tudo resolvia sem esforço e era irresistível para as mulheres.
— Vá, sopra, meu!
— Pede um desejo filho, — gritava a mãe.
— Vamos lá campeão, — bafejava o papá.
— Anda lá caramba. Com toda a pujança.
Mais uma vez Miguel estragava a solenidade do momento. Ricardo fitou-o. Voltou a cara para ver cada um dos presentes e depois os olhos disfuncionais do amigo, que agora soprava no apito, como se não houvesse amanhã, os moncos da mãe e do pai. Como que envolvido por uma estranha força fechou os olhos, dois pensamentos vieram-lhe a ideia, num instante sentiu-se como preso no centro de um imenso vórtice, de onde lhe era permitido contemplar um grande X vermelho e os olhos brilhantes de Anita. Imediatamente, como que saído de um embate violento, soprou com toda força as velas, as trinta e cinco velas num desvelo de super herói.
Bateram as palmas e entoaram novamente os parabéns a você.

*

POESIA: ALÉM DAS PALAVRAS DO MUNDO

Poesia I

ODE SINUSOIDAL


Latente contracção de esponjas amarelecidas

Pelo vento, pelo tempo, pelo sustento

Que me lambe as feridas das mãos

Que eu fiz ao saltar os muros com arame farpado

Do sonho de ser mais alto.

Mórbidas insolações de Inverno em dias de chuva

Arrastam carrascas lembranças do futuro

Que nunca tive nem nunca hei-de saber.

Inútil! És um inútil, sonho!

Serves só para não servir para nada!

Banhas com banhas de cobra as cobras que não se banham!

E não passas de um inútil…

Deita-te ao ar de almofadas em punho

A ver se alguma dispara na direcção errada

De voltar para trás indo seja lá para onde for

Sim, seja lá para onde for,

Que ir para qualquer lado

É sempre ir na direcção errada.

Bandeiras olfactivas de peixe podre

E odorizantes matinais perenes

É disso que se queixa a multidão amordaçada?

Soubesse a multidão que é multidão sequer!

E já não se queixavam de mais nada…

Vai-te embora daqui para fora

Ou fica lá longe do outro lado de ti…

Cortei-me outra vez pela primeira vez

Isto está sempre a acontecer

E já nem sei que bolso hei-de usar para pôr lá dentro

Os dentes partidos que me vão cair

Quando me esmurrarem amanhã de manhã

Ou de madrugada

Ou de noite

Ou de comboio

Ou de bicicleta

Desde que não seja com borboletas da Antártida.

É sempre assim que o mundo se diverte

Atira caixas contra a parede do riso

E espera que os vampiros da saudade

Se vão refastelar a seguir

Completamente imundos e a pingar sangue pelas narinas.

Já percebi…

Estou doido…

Não faz mal, assim também não tenho

De estar sempre à espera que me deixem atravessar

A estrada

Fecho os olhos e a estrada já não existe

Assim, já não tenho de a atravessar.

De resto, podia ser pior…

Se ao menos o sonho não fosse um inútil…

Eu não teria de estar preso nas suas malhas!



João Tavares

Poesia II

O LIVRO SEGUNDO DE JUDITE


Se a palavra mata, Judite,

Eu aqui não exorto a tua imagem

Encontrei há tempos uma mensagem

Que me enrubesceu e deixou triste


É que juro, não sou quem disse

As desolações da minha pobre carta

Antes morto, antes visse

Mefistófeles e o raio que o parta


Nem os versos rimam

Nem o coração se alegra

Diante da frouxa feição que de mim tracei

Não sou a rota e ébria criatura que esbocei

Ante o ciúme louco e a paixão cega


Poeta já fui, passado, antiquário

De promessas vãs e falsos perdões

Pudera um pobre escriturário

Apresentar as suas razões


Já acendi velinhas à Senhora

Mas não sei se a prece adita

Que entre rogos e comparações

Lhe disse que eras a mais bonita


E nos serões de Inverno, só,

Lembro sempre minha fraqueza

Escrevo cartas que não envio

E, num relance, parto a braguesa


Mas eis que bebo do cálice

Dois golos de Porto branco

E logo se me ergue num ápice

A graça de ser franco


Judite, meretrizes já muitas o diabo viu

Mas nenhuma como tu e a puta que te pariu


Leonel Ferreira

Poesia III

SENHORA DA MEMÓRIA


Ajaezada e vencida

Depõe a alma pendões ao vento

Naquele alto morro toma acento

A rústica, alva e pobre ermida

Poisa a mão em ajuste divino

O remorso de antanho, doutro vento.

Ruge o mar seu lamento,

Na penha morre um trágico hino.

A última hora na munda serrania,

Lacera o espaço como o fogo aquece

O puro amor que sempre entontece,

Ante longes d’alma e fins d’agonia.

E os passos brandos d’ Agostinho da Cruz

Ecoam salmos de queixume e lembrança

Desse ermo bravio que exulta e amansa

O pungente martírio de Cristo Jesus.


Leonel Ferreira

Poesia IV

CONFISSÃO

Ontem debrucei-me
sobre o manto das árvores
para escutar as passadas incertas das folhas

e por entre a ramagem do fim do dia
em silêncio
meu coração murmurava palavras desconexas

num impulso começou a contar os instantes do mundo
como um louco vagabundo
dormitando na ausência da razão

rasgava o ar com ponta dos dedos
dizia voar no crepúsculo das nuvens
— rumo ao infinito

E de repente

tombou imóvel
Sob os contornos invisíveis daquele demónio
Que apenas posso soletrar
A—M—O—R.


Reis Neutel

Reflexões

“A esperança é um afecto que vive suspirando sempre por ver, vive de não ver e morre com a vida.”

(Padre António Vieira)

segunda-feira, maio 07, 2007

NÚMERO SETE



Madredeus - Maio, Maduro Maio

Editorial

Maio Milagre

«Maio maduro Maio quem te pintou?» Assim cantava Zeca Afonso, desconhecendo ainda que Maio viria depois do mês dito da Revolução. E se algo pode ter que ver com algo, algo pode deixar de ter que ver com algo pela simples sugestão ou evocativa analogia – os intentos segundos e terceiros sempre inquinam os seus desígnios. É complexo porque é complicado e o complicado nunca suplicou o complexo; não é rogo de indigente.
Assim, Maio surge porque não tinha que surgir. Assoma, como se uma Aparição refundisse a vida de todos nós. E isto não depende de créditos alheios nem de conformidades materiais e materialistas. É-o porque não sabemos. Desponta; é o Milagre.
E que somos nós em meio de Maio? Talvez Peregrinos caminhando sob o sussurro zombeteiro. Mas tudo isto não é de zombar; quando muito, lastima-se o que se não contempla em beleza.
Maio é mês de mentiras. Não o Abril primeiro mas o Maio último. E Maio não é diverso, pois a mês nenhum se concedeu a graça da pureza e a expurgação dos pecados. Maio é mentira como a vida. E mentirosos somos todos; e eu sou tão mentiroso quanto quem não ousa proclamar esta verdade. Neste sentido, a vida ensina a arte e o seu ensinamento passa inobservado. Não é inobservável porque se consente o fingimento que se aporta a algum lado. No meio disto tudo haverá espaço para a verdade? A resposta é lacónica: há tantas verdades quantos átomos. Há toda a verdade e verdade nenhuma. Por isso proferimos verdades sem nos benzermos, pois se acaso possuísse o Homem a fórmula redentora da humanidade, creio que não proferiria uma única frase da sua doutrina sem lavar o corpo e sem pedir absoluto silêncio e deferência. Mas não se dá o caso, porquanto as vozes da Salvação sempre se ouvem entre o estertor da admiração e/ou o fragor da indignação, e o doutrinário é escravo do amor e do ódio.
Tempo houve em que, um pouco por todo o país, se colocavam as «maias» defronte das casas, nos estábulos, nos carros de lavoura e nos animais, pois, de contrário, a crença popular asseverava que o mês de Maio revolvia em maré de azar. No Minho, em Esposende, as «as maias» eram feitas com giestas, malmequeres e rosas para que o Diabo não entrasse nas casas e para espantar os maus-olhados; em Santa Marta de Portuzelo, a reputação de Maio era a de um tolo, por trazer muito Sol e chuvas abundantes; em Ponte da Barca e Arcos de Valdevez as «maias» afastavam a fome, e em Barcelos afugentavam as bruxas. Maio é, por conseguinte, mês de doença e de males, personificação do demónio – Maio «carrapato», Maio «burro».
Mas Maio não mete mais dó do que Abril. Em Maio se desbravam as giestas, em Maio se acena à Senhora de Fátima com lenços brancos – última recordação das despedidas idas das outras idas caravelas. Maio é mentira como a vida e a vida é mentirosa como a arte e a arte empenha-se a mentir mais do que a vida; trabalho hercúleo e não ao dispor de qualquer trapaceiro. Maio é dos músicos, e à música volve toda a farsa e toda a lenda mais real do que o Real mentiroso menos mentiroso do que a música. E em meio disto tudo, que é tão pouco, ofende o entendimento que o primeiro de Abril seja o dia das mentiras, e o primeiro de Maio o do trabalhador.

Editor maio: Leonel Ferreira

Poesia

meiopoema


o que minto é o que sinto
e o que tento e o sustento
de quem mente é o que atenta
ao assentar.

um poema devagar
que mova o morder do prensar
e o pensar em dispersar
o pensar e arredores
do que tem e não lugar

o meu intento é esperar.


Ruy




heterógrafo

vê só onde o amor nos deixou; é Natal e estamos nisto:
não tenho sido eu própria

] - isto de não ter memória foi
onde a memória nos deixou - [

estamos à porta um do outro, encerramos as despedidas
e as portas que executámos só se acertam de manhã

] – errar, o cálculo, e o separar,
quando onde erramos cem olhar – [

havemos as cartas marcadas, os parceiros enganados
essas moradas por achar, e [escuta],
todos acreditamos nisso, e cem acreditar.


Ruy




cadáver é esquisito
que nos amemos
e nem nos vemos
pelo menos, nem o cremos
nem a mais pelo caminhar
cuja marcha se entontece
e no bolso, acontece, o coração

e ia jurar que te ouvi
hoje
- que respiravas devagar-
neste vago espaço
que alguém pôs no teu lugar

e, depois, talvez não hoje
amanhã me decido a ponderar
nessa morte se suspeitava
que ao lado bocejava
como um gato a uma perna
o enrolar da eternidade

e é sempre esquisito
não deixa sempre de o ser
que hoje o sol o vi nascer
e que o cria eu ainda
já que fosse coisa finda

- lavo os cestos, erro pelas contas
vindimo a solidão -
e desconto ingratos no que conto
os algarismos gastos da pulsação.

Ruy

Poesia

Anexos

Acorda!
Dormir é morrer mas devagar
E eu tenho pressas que se não adiam

Já escolhi o fato
Já comprei a campa
Falta-me viver e abreviar a respiração
Ir em meio de compasso

Mas até lá… gestos…
Factos
Causas e acenos
Oh canseira!
E eu que seguramente não fui o Lidador…

É para aprender que a vida pena
Leonel Ferreira

Prosa

Como um tapete explica a contingência

Andamos pela vida, muitos de nós, distraídos de tudo quanto nos leva ao momento e ao lugar onde estamos. A percepção ininterrupta da causa de todos os nossos efeitos é tão impossível quanto seria, a dar-se o caso, insuportável. No entanto, lá muito de vez em quando, convém meditar sobre o passado; ou melhor, convém contemplar o advir vagaroso que nos sustenta o respirar, admirar o transcorrido de nós para nos espantarmos com o que somos presentemente.
É maravilha incomparável supor o que seríamos não fora aquele golpe que, de sorte, nos desviou da contingência e nos arrastou para a necessidade. Estou a conceder que o presente é necessidade quando ajuizado pelo passado mas absolutamente contingente quando convocado pelo porvir. A admitir a contingência, parece-me inevitável convir um hiato entre o Homem e a Realidade. Chegado a este ponto, afigura-se-me, de igual modo, que o holismo não pode ter lugar. Esta questão não é, evidentemente, nova, nem é intento meu procurar originalidade de pensamento quando o que está em causa é o tédio relativo à necessidade e à contingência. Se todos os nossos actos estão impregnados de necessidade, parece-me necessário consentir que o Homem não escapa à ordem cósmica – nada nele existe que esteja fora do alcance do cosmos e dos planos do demiurgo.
Apelo então à capacidade imaginativa do leitor, pedindo-lhe que visualize um tapete. O seu relevo está ligeiramente inclinado para um lado, de modo que, quando passamos a mão no sentido inverso, sentimos o arrepio da fricção do tecido na pele. Imagine o leitor que está a passar a mão no tapete no sentido da inclinação do seu relevo. Não sentirá, certamente, o referido atrito. Mas se eu lhe pedir que proceda inversamente, tal e qual o seu movimento estivesse registado num vídeo, seremos forçados a conceder que tal é impossível, pois o vídeo regista não apenas o nosso movimento como a alteração que o mesmo provocou no real. Assim, se não houvesse separabilidade entre o ente e o real, seria possível inverter o movimento de tal forma que não sentíssemos a fricção da pele com o tecido, pois, tal como no vídeo, as protuberâncias do tapete precederiam o movimento da mão tal e qual anteriormente efectivado. Há pois, neste sentido, uma separabilidade total entre o ente e o real; separabilidade esta que só pode ser anulada por recurso à gravação de imagem. A revolução das câmaras de filmar e das máquinas fotográficas tem implicações no modo como olhamos a realidade, não apenas na rememoração dos acontecimentos mas ainda nas variações que os entes produzem no real e nas impossibilidades físicas que nos apartam, de modo categórico, da materialidade e do exterior.
Pretendo que todo este lance traduza um algo reabilitador do mistério humano, de uma fracção da existência que permaneça encoberta diante dos olhos de Deus, do Cosmos, do Demiurgo, da Natureza, da Física, do Universo, do Tempo, em suma, da Necessidade. Este algo não é um enigma mas um segredo cósmico. Idealmente, o Homem seria, em parte, o véu que assombra o olhar divino; seria o inconsciente de Deus. Este fraccionamento radical entre o Homem e a Matéria indicia essa incompletude da Razão humana reprimida pelos fados e pelas razões do Tempo como a manifestação mais terrena da Existência, apontando, irremediavelmente, uma outra faceta do Ser apartada de tudo e inscrita no Nada. Este panorama refunde os pressupostos argumentativos e a realidade tal e qual a Razão apreende, isto é, um equilíbrio entre a necessidade e a contingência. Intuitivamente não imagino como pode a necessidade ter lugar, seja no futuro ou no passado, pois não há previdência no mundo que sustente a impossibilidade; não estamos plena e inteiramente preparados para o que quer que seja.
O que o tapete indicia é que o Real, agindo sobre o Homem e exprimindo-se por movimentos que são, aparentemente e a posteriori, necessários, possui igualmente um reverso, isto é, revela uma acção humana que nunca se consegue sistematizar e efectivar de modo absoluto sobre esse mesmo real.
Pode parecer mera banalidade aferir a separabilidade entre os entes e a exterioridade, mas não podemos permitir que a nossa atenção se disperse na aceitação imediata dos dados da experiência. Se o fogo queima e deixa de queimar é porque não estou integralmente unido ao real. Mas se é possível que o fogo queime e deixe de queimar, essa possibilidade pode ser resultado de um encadeamento de movimentos, isto é, de uma união material que se efectiva pela relação de causa e efeito. Se a minha conduta e os meus movimentos mais pueris do quotidiano podem influir na vida de um ente que está do outro lado do mundo ou até nos satélites vagueando pelo espaço, encontramos aí os indícios de um elo não apenas material mas metafísico. Cada acto e cada movimento do Universo se perpetuarão pelo infinito, alimentando-se do Real e perdendo-se numa hierarquia de corpos que se aniquila indefinidamente, a qual nos confunde acerca da importância real dos nossos actos. Esta espécie de holismo não só aniquila a separabilidade como permite que as grandes Revoluções da Humanidade tenham origem em actos aparentemente triviais.
Nada escapa à Ordem; eis a sentença mais imediata que podemos idear. Se criarmos cópias fiéis de um determinado cérebro e as espalharmos por lugares distintos do planeta, esses cérebros expandir-se-ão em personalidades verdadeiramente diversas, isto é, adequadas à circunstância espaço-tempo. E no entanto é-nos impossível repetir uma inversão de movimentos registada num vídeo.
O que a necessidade e o holismo impossibilitam é o Nada. E o facto de impossibilitarem é, por si só, suficiente para se duvidar da sua possibilidade. O Nada solicita a fractura, o hiato e a interrupção espaço-temporal. Se houver um Universo de elos infinitos, onde tudo sucede necessariamente e no qual tudo procede uma causa, o Nada estará votado à impotência. E este Nada impotente não pode caber num mundo de necessidades e sem interstícios onde caibam as sombras do Homem e das suas criações. A contingência consome-se no Nada e o Homem é impelido a ser devorado pelo Nada. É esta inclinação humana pela Angústia que está em causa na impossibilidade registada numa sucessão de imagens inscritas no tempo, isto é, no Passado. O Homem invoca o Nada não apenas através da História e das suas manifestações e lugares onde retumbam as impossibilidades, mas sobretudo no inconsciente, na fractura, no temor, na angústia. Impossibilidade, Nada e Angústia possibilitam, outrossim, a Liberdade e a evasão da Necessidade e do «Olhar de Deus». E este Nada que nos consola é o Inconsciente de Deus, sempre atormentando os sonhos cósmicos, sempre refluindo pelo Universo inteiro.
Seremos então o rebanho tresmalhado de Deus? E se o somos, como poderá um homem sabê-lo? Sabê-lo-á fingindo que o sabe e não o sabendo categoricamente. A Razão é pois Irracional e o Irracional é o retiro do Homem, perdido em meio de Nada, por ele descoberto e incógnito senão no Mistério. E se um tapete o comprovar, o que haverá a lamentar em tudo isto? É ilógico, é imundo, é inconsciente e é o Mistério que finjo nem Deus conceber.
Leonel Ferreira

Prosa


Trágico é o seu devir. Trágico…
O devir de não ser o que se quer, de ser a ininterrupta condição sem solo. Sem!...Solo!... Sem raiz.
Sem chão.
Sem um chão! que lhe parta a sua incondicionada condição. O devir que a percorre é uma tragédia, nada a faz crer que sim, que sim verdade essa feia e triste!, nem que não por simplesmente isso não ver, nada a faz crer no que quer que seja que diante dos seus olhos não esteja. Olhos… Mas olhos que os mesmos sejam no contacto e na finalidade da visão não são olhos, são ver sem perspectiva, sem planos ou perfis, nem pálpebras sempre obstrutivas. São olhos e ouvidos, e toques sem sentidos porque todos os sentidos neles existem, nessas coisas que aqui chamei de olhos. Querer ver deste canto espreitando e não poder, ou pior, não poder nunca querer tal coisa por nada lhe ser permitido desejar é trágico… Ela não acha, nem conseguiria porque simplesmente de si não brotam volições, mas isto é trágico.
Sim, tudo isto é aflitivamente trágico!...
Não ter pontas, esquinas, limites. Não ter nada disso e ser em acto o devir, o eterno retorno a tudo aquilo que se foi, sem se ter sido nada de distinto do que se é ou vai ser. Vir a ser tudo o que foi ou nunca ser no futuro o que no passado não foi. Passado? Futuro? Conjugar tal verbo em tão dilacerante contexto é devaneio.
Não há pontas, esquinas, limites…
Não há qualquer ponto diferenciável dos outros. Se esses não existem não há aqui, ali, agora, antes ou depois, não há tempo, há devir sem tempo. Um devir, por natureza, sem tempo. Isto, raios o partam, é trágico.
Sim, tudo isto é aflitivamente trágico!...
Viver - sem existir - num perpétuo compasso marcado ao ritmo do não-tempo, do eterno, não um eterno positivo, mas um eterno carregado de perpetuidade ainda que não factual. Ser por condição incondicionada um passo em frente e em concomitância um passo atrás.
Ser todas as direcções sem se dirigir para sítio algum!,
Caminhar em todos os sentidos sem sair do sítio!,
Estar sempre no mesmo ponto sem imobilizar!,
Sem alguma vez parar, sem… avançar.

Que trágica ideia és tu!
André Faia

Prosa

Anita

(dedico este excerto a todas as "namoradas" que - inexplicavelmente - desapareceram da minha vida )

Episódio 1º - A Fixação Extra-Forte

Anita, Anita, Oh… Anita! Serena como a primavera, linda como uma delicada flor perdida no manto da natureza. Meu coração palpita por ela, sonho com ela, penso nela a todo momento. Anita a correr pelos os montes, a nadar numa límpida cachoeira, Anita ensaiando a dança do ventre, Anita ensinando-me a surfar num mar gelado, cheio de tubarões. Enfim, sempre graciosa e prestável. Nunca me cansarei dela. Já cheguei a vestir-me como ela em frente ao espelho, o que só me deu mais vontade de ama-la. Ai, Anita… Bem, mas quem é Anita? Será que estou a exagerar na descrição que dela faço? Se perguntarmos a todos os seus colegas da empresa Silva e Carvalho Contabilidade, Gestão e Auditoria S. A., as respostas vão, indubitavelmente, ao encontro do que eu digo sobre ela.
— Ela é tão boa, resmunga o Patrício entre dentes. E finda a frase com uma ruidosa gargalhada, seguida de um inusitado ronco. Mas nem isso o embaraça.
— É muito feminina e queriducha, afirma o Alvarinho da secção três de auditoria.
O Gomes da recepção confessa-me ao ouvido:
— Catano, é boa como as perdizes...
Felizmente, nem todos têm uma visão tão prosaica. O Carneiro elege-a como a mulher mais bela dos escritórios e quem sabe da cidade.
— Tem aquele ar inocente e pueril, mas não é como todas as outras. Não senhor, é tão boa que nem parece de carne e osso, — segundo o Mário Gonçalves das sandes.
Ok, admito, é um interessante comentário.
Mas a Anita é muito mais que uma donzela de olhar frágil e doce, de lábios sensuais, de quadris arqueados e bem definidos, de cortar o fôlego a qualquer um ou mesmo a qualquer uma. Não acreditam? Então notem o que as colegas de Anita dizem dela.
— Ah, a Anita é muito bonita e elegante. Sei lá? É muito sexy, como dizem hoje. Já me chegava metade da sua sensualidade e da sua inteligência.
Espera lá, mas quem é que disse tal barbaridade? Ah, claro a Guilhermina da Contabilidade, a solteirona do piso dois. Por favor, senhora, modere a sua estupidez. Atenção agora, vejam o que a Dra. Margarida diz.
— Ah, ela é um vulcão em actividade.
Lindo, não acham?
Mas afinal de contas, quem é para ti a Anita?

* * *

— Ufa. Que chatice nunca mais são horas de sair e não mais pára de chover, — pensava Ricardo.
— Dr. Martins tem uma chamada.
Ricardo virou a cabeça e acenou com a cabeça. Quem seria?
Ricardo Martins, era o adjunto do director comercial da Silva e Carvalho Contabilidade, Gestão e Auditoria S. A.. O trabalhador modelo, o filho que todas as mães gostariam de ter tido. Todavia, frustrado e solteiro era como ele preferia auto-apelidar-se.
— Só espero que não seja a chata da minha mãe. Filho não te esqueças disto, filho já fizeste aquilo, que seca. Filho agasalha-te, és o filho da...
Enquanto Ricardo se dirige para o telefone atravessando um comprido corredor, vai fazendo caretas e falando alto para com os seus botões. Porém, não desconfia que está a ser observado por vários colegas, que o olham com estupefacção e gozo. Finalmente, pega no telefone. Do outro lado, uma voz em êxtase guincha desenfreadamente:
— Ricardo?! Ricardo, és tu? Até que enfim, pá. Estou a ver que a Feijoada à Brasileira ainda está a resultar.
— Cala-te! Poupa-me, Miguel. Quantas vezes já te disse para não me telefonares para a empresa? Vá diz-me lá o que foi agora?
— Hmm, estamos mal humorados hoje...
— Sim, — respondeu secamente.
— Vá, deixa-te disso, amigo. Olha só uma coisa...
— Sim estou a olhar, cretino, e não vejo muita coisa, — a sua voz denotava agitação e perturbação, — O que foi desta vez? Espera estragaste-me o fato, não foi? — Falava agora muito alto. — Admite palerma... não palerma sou eu por to ter emprestado, que grande burro que eu sou. — Nesse mesmo instante leva a mão esquerda com força à testa, esfregando-a com violência até ficar vermelha. — Razão tinha a Fátima e o Jaime. Mas não... ainda tenho bom coração e vou ouvindo o que tu... — Repentinamente, a sua expressão muda. Desesperado coça a cabeça, repetidamente.
— Tu o quê?
— Vamos eu, tu e as gémeas, aquelas morenas altas e... Calma amigo, eu desconto-te os elogios pelo empréstimo do fato. Não... não te exaltes, espera. Desligou. Mas o que é que eu disse de mal?
Após ter desligado o telefone, Ricardo observou como alguns colegas o fitavam. Envergonhado, mordeu os lábios e disse em alta voz, dirigindo-se para os colegas:
— Queriam impingir-me um ... uma viagem às Bahamas. Estes gajos dos inquéritos. Que chatos.
E voltou para o trabalho.

* * *

Passados dois dias Ricardo é surpreendido no seu gabinete pela visita do amigo de infância, o Miguel.
— Ei, posso entrar?
— Sim, podes. Entra, — respondeu secamente o outro, enquanto organizava uma pilha de documentos.
— Já não estás chateado comigo, certo?
— Não, já passou. Mas o que queres? — respondeu-lhe sem sequer olhar para ele.
— Venho propor-te um almoço, que dizes?
— Um almoço! Ganhaste a lotaria? Espera, não me digas... estragaste-me o fato. Confessa.
— Não, era como moeda de troca. E já decidiste sobre a tal saída com as gémeas? Estás carente, meu. Eu consigo topar isso. Vá lá, vai ser curtido.
— Ok, escolhe lá a data. É-me indiferente. Só te peço que escolhas bem o sítio. Nada de bares gays desta vez, está bem?
— Tudo bem. Mas até que um bar daqueles seria o local perfeito para expor as gémeas, não concordas, pá?
Ricardo observa-o com estupefacção e responde friamente com um rotundo não.
— Vá mas pega nas tuas coisas, está na tua hora de fazeres stop.
— Sim, tens razão, — responde olhando para o relógio.
Ricardo arrumou uma vez mais o montão de papéis da sua secretária. De seguida, pegou na sua gabardina e no guarda-chuva, com prontidão e dirigiu-se com o amigo para a saída do piso, Miguel deu uma olhadela à sua volta e deu de caras com uma rapariga de longos cabelos loiros e olhos verdes. É encantadora, pensou Miguel. Tenho que saber quem é? Fazendo-se de surpreendido, perguntou ao amigo:
— Uau quem é a boazona?
— Ah?
— Quem é ela?
Ricardo vira-se para ver de quem se trata.
— Sê mais discreto. Lembra-te que eu trabalho aqui. Não te molestes em ir atrás dela, ok? Ok?
— Porquê? Ela não é diferente das outras. Tem tudo que as outras têm, ou não? Por acaso olhando com mais atenção até tem muito mais. Ena pá. Apresenta-ma, vá lá. Sou eu o Miguel, o teu amigo de infância. Vá lá.
— Nem, penses. Ela é diferente das outras.
— Força, meu. Sou eu que to peço.
— Claro. Vais usar o teu charme de macho latino. Ela não passa cartão a ninguém. Anda embora.
— Please, please.
— Não, esquece. Ela é mesmo diferente.
— Pois é, por isso mesmo. Ouve para a semana é o teu aniversário. Podíamos sei lá...
— Sei lá? Esquece, meu. Ela é especial, compreendes?
Fixando o olhar hipnótico do amigo, percebeu que ele de facto não percebia o que lhe tentava dizer, qualquer esforço era vão e como quem conforta um menino que acabou de deixar cair ao mar um chupa-chupa ou o brinquedo favorito disse-lhe:
— Ela é... ela é, — sussurrando aos ouvidos do outro — bem dizem que é bi.
— Bi! Bissexual! — ripostou o outro muito alto, o que fez com que todas as pessoas que por ali passavam os observassem com espanto. Mas pior do que a vergonha, era admirar o olhar alucinado com que Miguel tinha ficado, pensara Ricardo. Nesse momento arrependeu-se do que tinha dito, pois teve o efeito contrário ao esperado. Miguel agarrou violentamente os seus braços, como se fosse um louco que tinha medo de ser internado num manicómio. Então, gritando bem alto, disse:
— O que... ela é?... Não acredito. Como se chama? O que faz? Diz-me qualquer coisa, pá. O nome, já, — agarrando-o ainda com mais força, — despacha-te. O nome, eu quero o nooooooooooooome.
Ups, só havia uma maneira de sair dessa encrenca. E Ricardo conhecia-a bem. Devolver o chupa-chupa ao menino. Respirando fundo, disse timidamente:
— Chama-se Anita. É a secretária do Dr. Vilar. E é só um boato, rapaz. Talvez não seja bi. Tem calma.
— Caraças olha-me bem para ela.
Suspiram os dois encantados com a imagem da rapariga.
Ricardo, com alívio tinha recuperado os braços.
— Oh, ela é perfeita.
— Se é, Miguel. Que anjo na terra.
— Como?
— Esquece, vamos lá comer. Conseguiste envergonhar-me. Bem vamos lá almoçar? Chama o elevador, tenho que ir à casa de banho.
— A que horas sai?
— Saio às 18 horas.
— Tu não, palhaço. Ela, a ... como é que se chama?
— Anita. Não sei. Vamos lá, palerma, — observando o relógio — se não te despachas já não tenho tempo para almoçar. Vou rapidamente à casa de banho.
Dois minutos depois, Ricardo retorna e observa como o seu colega se aproxima da sensual secretária do Dr Vilar. Também ela à espera do elevador.
— Oh, por favor. Era só o que me faltava, — pensou.
— Então trabalha aqui? — perguntou Miguel à rapariga, colocando um tom mais viril à sua voz.
A rapariga sorriu embaraçada.
— Sim, — foi a resposta breve que obteve.
— Chamo-me Miguel, muito prazer, — estendeu-lhe a mão.
Ela hesitou um pouco. Felizmente, para ela é salva pela chegada do elevador.
— Vamos lá, — sorri nervosamente à secretária.
Entram os três. A rapariga não tira os olhos da porta do elevador. Ricardo alterna o olhar entre o relógio e o guarda-chuva. Miguel, por seu lado, coloca-se ao lado da rapariga e respira fundo tentando aspirar o perfume da rapariga.
— Chanel Nº 5, — pensa, — foge, é perfeita. Que corpo. Vou convidá-la para sair, para beber um copo. Esta não me pode escapar. E ainda por cima é bi. Uau, — mede-lhe durante largos segundos as medidas. A rapariga começa a ficar nervosa e farta de levar com a respiração do outro.
— Então logo vamos ao teatro com as gémeas, certo? — perguntou Ricardo?
Miguel cora.
— Que gémeas? Estás sempre no gozo comigo, não é? Bem sabes que eu sou descomprometido, pá. Nem sei de que gémeas estás a falar.
Ricardo observa-o estupefacto. O outro pisca-lhe o olho e manda-o calar. Ricardo notou como a voz do amigo já não era tão máscula.
Finalmente, o elevador pára. Saem os três. Miguel continua a olhar para Anita. Ambos desejam-lhe boa tarde, ela agradece e retribui a boa tarde. Fitaram-na por mais alguns segundos.
— Serena luz que nos enfeitiça, amigo. Mas ela não é para o teu bico.
— Cala-te! Estragaste tudo. Grande amigo me saíste. Amigo da onça. Só a queres para ti, não é? Raios para as gémeas.
— Ah, claro! Olha bem para mim. Achas mesmo que tenho alguma chance com ela. Estás caidinho. Eu não. Estavas em cima dela a fungar. Deves ter tido oportunidade de reparar que tipo de laca ela usa, tarado.
— Extra-forte, não natural.
— Desculpa?
— Ela usa laca de fixação extra-forte.

*

Prosa

Restless Seeker

(I address you, my loyal friend, lend me your senses and judge for yourself)


Could the sky go darker and empty our souls, my dear dreamer? Did you see the madmen turning wise? Did you see how the seers became blind? Did you hear the children shouting under the bomb’s glow? Did you hear how their parents were slayed?
Why do They paint the sky with the blood of the innocent?
You must keep vigilant. Don’t let Them catch you. Don’t let Them know what you know. Don’t answer them back. Keep blind, watch just with the eyes of the shadow; keep deaf, hear only when the wind pulls down its trigger; keep dumb until the sun rises on the horizon and your mouth becomes unveiled.


When is the comet coming back?
Spelling the breathing written in
Dreams of hope:
A trail to the stars.

My roots your senses, my branches and trunk your life, my sap your vision
And when my seed become yours, you’ll get the strenght to reveal yourself.
But until then,
The dreamer gives up his vision.

To you I sign this letter,

Reis Neutel

Prosa

¼ de Peru

Ah, que belo dia para se ir fazer umas comprinhas para o lar, doce lar. É sábado de manhã, o céu está azul pintalgado de uma ou outra primaveril e discreta nuvem passageira, o sol brilha com uma intensidade alegremente anti--depressiva, uma levíssima brisa ondula os cabelos de quem os tem, os passarinhos fazem descontraidamente as suas necessidades em cima das estátuas das figuras maiores do burgo e as lojas de comércio tradicional na baixa do município estão abertas e povoadas por gente de gestos e palavras familiares e acolhedores, muitas vezes tratando a freguesia pelo nome e perguntando se há novidades daquele familiar que tão desgraçadamente cumpre pena por se ter deixado apanhar a desviar uns fundozitos aos quais até tinha direito e que não iam fazer falta nenhuma ao IRS. E foi assim, neste ambiente de bucólica felicidade da média-baixa Burguesia citadina que a Dona Gertrudes foi fazer umas comprinhas para o seu tão bem arranjadinho domicílio. Um dos primeiros destinos da sua romaria foi o talho do senhor Nicolau, um senhor de meia-idade muito simpático e prestativo.
“Bom dia, Dona Gertrudes.”
“Bom dia, senhor Nicolau. Que lindo dia está hoje, não lhe parece?”
“Realmente... mas diga-me lá, o que a traz aqui pelo meu modesto estabelecimento?”
“Olhe, eu hoje estava à procura de alguma coisa especial para o almoço. Sabe, é que os meus rapazes foram à pesca e só voltam lá para o fim da tarde. E como só ficamos eu e o meu homem...”
“Sim, sim, estou a ver. E o que é que tem em mente?”
“Eu estava a pensar assim numa carninha tenrinha que se desfiasse bem, mas que também não fosse de se desfazer logo ao chegar ao forno. Está a ver?”
“Ora bem, não sei se isto lhe interessa... veja aqui, chegou ontem um carregamento de vitela bem fresquinho...”
“Hum... não, acho que não me apetece muito vitela. Além disso, é capaz de não me ficar muito em conta.”
“Bom, se lhe interessa uma coisa que fique mais em conta, talvez eu tenha aqui o que lhe interessa.”
“Ah sim? E de que se trata?”
“É uma promoção que começámos a fazer ontem e que tem tido muita saída.”
“Sim...?”
“Por metade do preço pode levar ¼ de Peru inteirinho!”
“¼ de Peru? Por metade do preço?”
“Sim, sim, e olhe que ainda pode escolher a parte do Peru que quiser.”
“Ah, mas isso é mesmo muito bom! Mas olhe que eu não tenho assim muito jeito para escolher Peru... será que me podia ajudar a escolher uma parte assim mais jeitosinha, ó senhor Nicolau?”
“Com certeza, Dona, com certeza. Olhe, aqui para cima tem o ¼ tropical, que apanha as fronteiras com o Equador e com a Colômbia, zona riquíssima em minério e onde o Amazonas nasce; mais para este lado tem a zona Sudeste, na qual os Andes ocupam extensa área, incluindo o tesouro de Macchu Picchu.”
“É só isso?”
“Não, não! Pode ainda escolher a zona Oeste, na qual se encontra a capital, Lima, riquíssima em legado histórico e arquitectónico colonial, bem como praias lindíssimas.”
“Pronto, olhe, acho que levo ¼ de Norte do Peru. Sempre podem fazer jeito uns quantos jazigos de minério, não é verdade? Vá-se lá saber o que é o dia de amanhã...”
“Pois sim senhora, muito bem, aqui está ¼ de Peru da região Norte. Quer que embrulhe, ou vai assim no saquinho?”
“Faça o favor de embrulhar, senão ainda me seca o Amazonas com este solzinho que faz...”
“Pronto, então aqui tem. Muito bom dia e obrigado.”
“Bom dia.”


João Tavares

Prosa

A doença psiquiátrica

Fugiu. Depois de anos e anos injustamente encarcerada num lugar onde não pertencia, aproveitou um momento de menor atenção dos guardas e saltou os muros, rumo à liberdade. Uma vez do lado de fora daquela autêntica prisão, correu a toda a velocidade, sem saber muito bem para onde, apenas sabendo que era para longe, para bem longe, para muito, muito longe daquele lugar horrível onde passara tanto e tanto tempo. Percorreu centenas de quilómetros, sempre em busca de um refúgio, de um santuário, de um esconderijo onde nunca mais a encontrassem. Mas sabia muito bem que isso seria muito difícil. Mais tarde ou mais cedo alguém acabava por reconhecê-la e lá tinha ela de se fazer novamente ao caminho, sempre perseguida, sempre acossada, sempre caçada, como se de uma besta selvagem e brutal se tratasse. Os seus dias eram uma constante partida de gato e de rato com os seus algozes, mas também ela tinha de sobreviver, pelo que também ela caçava. E ela caçava muito bem. Tinha excelentes qualidades que lhe permitiam caçar de emboscada, passando totalmente despercebida diante da sua presa até já ser demasiado tarde. E mesmo assim, na maior parte das vezes a vítima jamais se apercebia de que havia sido apanhada, tal era a intensidade furtiva do ataque. Ah, mas a sua necessidade de caçar era imensa, não se podia contentar apenas com uma presa de vez em quando, tinha de apanhar muito mais do que isso; e foi em face dessa necessidade que ela acabou por desenvolver uma estratégia de caça eficaz: começou a identificar as suas presas e a perseguir elementos que a elas estivessem ligados por laços de sangue. Não haja qualquer dúvida que, desta forma, o seu índice de sucesso na caça subiu enormemente. Mas – ah, pois, tinha de haver um “mas”! – ao optar por dizimar famílias inteiras, em vez de atacar vítimas isoladas, acabou por chamar a atenção dos seus perseguidores, pelo que eles hoje estão muito, mas muito perto de lhe pôr de novo as mãos em cima e de a internar de novo no Hospital para Doenças do Foro Psiquiátrico. Pois é, Esquizofrenia, não tarda estás de novo entre paredes almofadadas e em camisa de forças...

João Tavares

Pensamento do Mês

“O pessimista queixa-se do vento, o optimista espera que ele mude e o realista ajusta as velas.”

William George Ward

sexta-feira, abril 13, 2007

Número Seis

Editorial

Ecos de natureza(s)
Quando eu era pequenino, já no século passado, uma vez contaram-me a história do escorpião e da rã. Nessa história, o escorpião pede boleia à rã para atravessar o rio sem se afogar. A rã confronta-o com o facto de saber que ele a pode picar a meio da travessia, condenando-a à morte, ao que o escorpião contrapõe que isso seria um perfeito absurdo, uma vez que estaria a condenar-se a si próprio. Mediante esta explicação, a rã deu-se por satisfeita e ofereceu-se para transportar o escorpião. Quando estavam a meio da travessia, a rã sentiu uma dolorosa picada e apercebeu-se que o escorpião lhe havia desferido um golpe mortal com o ferrão. “Idiota, que fizeste tu? Não vez que assim acabaste de nos matar aos dois? Porque o fizeste?” – disse a rã em nítido desespero, ao que o escorpião respondeu: “Não sei porque o fiz, simplesmente tinha de o fazer. Está na minha natureza, não o pude evitar.”

Muita gente pensa que pode furtar-se a ser quem é, ou mesmo o que é. Muitas pessoas pensam que basta convencer-se a si mesmas de que são o que pretendem ser para que o sejam de verdade; pensam que basta usar argumentos mais ou menos lógicos para que as outras pessoas as vejam numa natureza que não é a sua. Mas mais tarde ou mais cedo, invariavelmente, toda a gente encontra a sua verdadeira natureza. É impossível escapar-lhe, é impossível uma pessoa suprimir totalmente quem ela realmente é; é impossível fazer uma operação plástica ao cerne da pessoalidade individual.

Sim, é verdade que, segundo estas palavras, até parece que eu estou a afirmar que a mudança é impossível, que o destino é uma fatalidade inalterável, que a personalidade é total e hermeticamente fechada e impossível de mudar... oh, quantos de vós, potenciais leitores, já não havereis testemunhado em terceira, segunda ou mesmo primeira mão histórias de verdadeiras metamorfoses kafkianas pelas quais passaram os espíritos, as disposições, as vontades ou as vivências de dezenas, centenas e até milhares de seres humanos... quantos de vós não estareis já a condenar em auto-de-fé flamejante estas minhas palavras de aparente absoluta descrença no género humano e ulterior misantropia da espécie... ah, meus caros, mas é aqui que vos devo fazer notar o seguinte: eu estou a falar de natureza, não de evolução! É óbvio até à tontura que a evolução permite alterar tudo e mais alguma coisa! À luz da evolução praticamente – e em potência – rigorosamente nada fica como era no princípio (amén). Eu aceito a mudança através da evolução; eu acredito da mudança através da evolução. Acredito, por exemplo, que o escorpião pudesse ter atravessado o rio às cavalitas da rã sem a ter picado, se eventualmente esperasse meia dúzia de milhões de anos que lhe proporcionassem uma mudança (evolução) nesse sentido. Já a sua natureza, essa, estaria sempre refém daquilo que a evolução lhe permitisse. O mesmo se passa com a espécie humana: a evolução trouxe-nos até este ponto, o da monarquia absoluta sobre a convicção de que somos Senhores da Criação. O que a evolução ainda não nos permitiu fazer foi mudar a natureza de cada um ou uma de nós, de modo a sermos o que nunca fomos nem nunca seremos. Ninguém, rigorosamente ninguém me consegue convencer que é possível mudar a natureza das pessoas.

Desta forma, os textos que aqui aparecem são o produto imediato da natureza de cada um dos seus autores. Não esperem ver aqui publicado o que nenhum dos autores em sua natureza alguma vez criaria. A evolução de estilos e de tons faz-se dentro da natureza individual de cada criador – esperar outrossim é absurdo.

Dito isto, concordem se quiserem, discordem por favor, façam o que acharem melhor, ou nem por isso. Afinal de contas, o que importa é que nada disto importa verdadeiramente – a menos que o jantar esteja delicioso.

Já agora, não se esqueçam de fechar bem as persianas.
João Tavares - Editor Outra Vez

Conto

A noite é boa conselheira
O Imperador estava cansado, dir-se-ia até que estava quase exausto, mas não dava quaisquer mostras de querer dormir. No entanto, ele sabia que era muito importante descansar convenientemente esta noite, de modo a estar perfeitamente fresco e na posse de todas as suas capacidades para a hercúlea tarefa que se impunha levar a bom termo na manhã seguinte. Sim, teria de levar a muito bom termo aquilo a que se propunha, pois dela dependia muita coisa – e nada, mas mesmo nada, deveria perturbar o seu bom discernimento, nem mesmo um permanente sentimento de tensão e angústia expectante que lhe roubava toda e qualquer réstea do tão abençoado sono reparador. Voltas e mais voltas deu o Imperador no seu amplo e imponente leito de lençóis de seda a almofadas de penas de faisão; voltas e mais voltas deu ao redor do seu imponente quarto em cujas paredes as suas próprias armas o perscrutavam impiedosamente aguardando o desenlace da questão; vezes sem conta se dirigiu o poderoso soberano à janela a fim de pedir à Lua ou às estrelas que se compadecessem dele e que lhe enviassem um arauto de Morfeu, ajudando-o assim a adiar por mais umas horas o confronto decisivo que teria lugar logo na manhã seguinte. Por fim, cansado de esperar e quase a desesperar, optou por decidir fazer uma coisa que, de certeza absoluta, iria ajudá-lo a adormecer como um bebé: assim, ordenou que trouxessem à sua presença a primeira mulher que encontrassem. Dito e feito, apenas um breve momento volvido desde a sua ordem e já o chefe da guarda pessoal lhe anunciava a chegada aos seus aposentos de uma jovem mulher. Esta bateu levemente à porta e, perante a imperial autorização, entrou.

Uma vez dentro do quarto, a jovem ficou de pé a dois ou três passos da porta, não avançando mais e nem ousando olhar o Imperador nos olhos. Este, que estava sentado num largo divã, dirigiu as boas-noites à sua visitante. Esta respondeu com uma vénia e um “boa noite, Vossa Imperial Majestade” proferido em voz muito baixinha e denotando óbvio constrangimento.

“Como te chamas?”, indagou o monarca.

“Alina, Vossa Majestade...”

“Bom, Alina, muito prazer em conhecer-te. Por favor, olha para mim. Vá, não tenhas medo...”

Quando ela levantou os olhos, o Imperador pôde constatar que se tratava, de facto, de uma jovem. Perguntou-lhe de imediato a idade, ao que ela prontamente respondeu, não sem algumas tremuras na voz:

“Dezassete anos, Majestade...”

“Dezassete?! Bom, não admira nada que estejas tão nervosa.”

“Perdoai, Majestade, se vos incomoda a minha disposição reticente...”

“Enfim, deixa lá, não faz mal. Quer dizer, quando eu pedi que me enviassem uma mulher, estava à espera que me enviassem alguém mais madura, mais conhecedora, com mais experiência de vida...”

“Quereis então que me retire e peça outra companhia para Vossa Imperial Majestade?” – respondeu a jovem com alguma expectativa incontida.
“Hm... não, não, deixa estar. Não é preciso. Já que estás aqui, podes ficar. Não te importas, pois não?”

Esta era uma daquelas perguntas que Alina achava serem tão retoricamente estúpidas como cruelmente desnecessárias – ousaria ela contradizer o Imperador e arriscar ficar sem a cabeça? Antes ficar sem outra coisa qualquer...

“Não, Majestade, é claro que não! Terei o maior gosto em... fazer companhia a... a Vossa Majestade esta noite...” – titubeou a jovem.

“Diz-me Alina, que fazes tu aqui no castelo do Duque? És casada? Comprometida?”

Maldição! – pensou Alina – se ao menos já fosse casada, talvez lhe doesse menos fazer companhia ao Imperador! Assim...

“Não, Vossa Majestade... – hesitou a jovem – não sou casada nem tampouco comprometida. Contudo... – disse ela, depois do que hesitou e ficou em silêncio, quase arrependida de o ter dito.”

“Contudo...?”

“Contudo... meu coração bate por alguém!” – disse ela, ainda algo a medo.

“Ah, sim? E por quem, pode saber-se?”

“Ahm... duvido que Vossa Majestade conheça... bom, quer dizer, trata-se de um simples... bem, simples mas valente... hã... é um escudeiro do Duque...”

“Sim, tens razão não devo conhecer.”

Uuf! – pensou a jovem.

O Imperador, vendo que Alina ainda estava de pé junto à porta, pediu-lhe para ela se aproximar e se sentar junto a ele, no divã. Com passinhos pequeninos e bem medidos, ela foi até junto do monarca e sentou-se.

“És muito formosa! Tenho a certeza que o teu simples mas valente escudeiro te deve ter também em muito alta estima.”

“Se Vossa Majestade o diz...” – disse, corando.

E assim continuaram numa conversa de perfeita xaxa, que não atava nem desatava para lado nenhum, até que o Imperador, que para grande surpresa e alívio de Alina não lhe tocara nem uma única vez, acabou por adormecer ao cabo de uma meia hora, ali mesmo no divã. Muito lentamente, e com reverente respeito à mistura – mais por temor a quebrar o feitiço do sono do que por carinho ou afecto – ela levantou-se e cobriu o Imperador com uma manta. Dirigiu-se então à porta e disse, muito baixinho:

“Boas noites, Vossa Majestade. Se não levantais objecção, dirigir-me-ei agora aos meus aposentos ...” – ao dizer isto susteve a respiração durante três ou quatro segundos, que lhe pareceram uma eternidade. Ao cabo desse tempo, como o Imperador lhe não respondesse, isto é, como não objectasse a que ela se retirasse, ela fez uma profunda vénia e muito lentamente saiu do quarto, deixando o monarca a ressonar levemente.

No dia seguinte, bem cedo pela manhã, o Imperador levantou-se e preparou-se para a difícil tarefa de negociar a paz com o Duque rebelde em cujo castelo a sua imperial comitiva pernoitou. Dirigiu-se à sala de conferências e ouviu as trombetas anunciar a chegada da embaixada do Duque, que viera do seu esconderijo nas montanhas até ao seu próprio castelo, perdido durante a guerra, tentar um acordo para pôr fim às hostilidades que se arrastavam havia já vários anos. Para grande surpresa do monarca, a embaixada era liderada pelo próprio Duque rebelde. Este, uma vez frente a frente com o Imperador, disse:

“Majestade, pela forma como respeitastes a honra e a integridade da minha filha, estou disposto a acreditar na vossa promessa de perdão e de reconciliação. Como pai, agradeço-vos do fundo do coração a preservação de Alina. Como líder do exército rebelde, estou disposto a depor imediatamente as armas e a negociar os termos da paz.”

Respeitar a honra e a integridade da filha do Duque? – pensou o Imperador – Mas se ele nem sequer sabia que a Alina era a filha do Duque que ficara para trás quando o pai fugira para as montanhas... além disso, de que forma poderia a jovem ter perdido a preservação? Pois se ele já desde pequenino que recorrera à avó, depois à mãe, às irmãs, às primas e até mesmo às criadas para lhe falarem de coisas banais e triviais sem interesse nenhum, de modo a aborrecê-lo tremendamente e a fazê-lo cair de sono...
João Tavares