sexta-feira, abril 13, 2007

Editorial

Ecos de natureza(s)
Quando eu era pequenino, já no século passado, uma vez contaram-me a história do escorpião e da rã. Nessa história, o escorpião pede boleia à rã para atravessar o rio sem se afogar. A rã confronta-o com o facto de saber que ele a pode picar a meio da travessia, condenando-a à morte, ao que o escorpião contrapõe que isso seria um perfeito absurdo, uma vez que estaria a condenar-se a si próprio. Mediante esta explicação, a rã deu-se por satisfeita e ofereceu-se para transportar o escorpião. Quando estavam a meio da travessia, a rã sentiu uma dolorosa picada e apercebeu-se que o escorpião lhe havia desferido um golpe mortal com o ferrão. “Idiota, que fizeste tu? Não vez que assim acabaste de nos matar aos dois? Porque o fizeste?” – disse a rã em nítido desespero, ao que o escorpião respondeu: “Não sei porque o fiz, simplesmente tinha de o fazer. Está na minha natureza, não o pude evitar.”

Muita gente pensa que pode furtar-se a ser quem é, ou mesmo o que é. Muitas pessoas pensam que basta convencer-se a si mesmas de que são o que pretendem ser para que o sejam de verdade; pensam que basta usar argumentos mais ou menos lógicos para que as outras pessoas as vejam numa natureza que não é a sua. Mas mais tarde ou mais cedo, invariavelmente, toda a gente encontra a sua verdadeira natureza. É impossível escapar-lhe, é impossível uma pessoa suprimir totalmente quem ela realmente é; é impossível fazer uma operação plástica ao cerne da pessoalidade individual.

Sim, é verdade que, segundo estas palavras, até parece que eu estou a afirmar que a mudança é impossível, que o destino é uma fatalidade inalterável, que a personalidade é total e hermeticamente fechada e impossível de mudar... oh, quantos de vós, potenciais leitores, já não havereis testemunhado em terceira, segunda ou mesmo primeira mão histórias de verdadeiras metamorfoses kafkianas pelas quais passaram os espíritos, as disposições, as vontades ou as vivências de dezenas, centenas e até milhares de seres humanos... quantos de vós não estareis já a condenar em auto-de-fé flamejante estas minhas palavras de aparente absoluta descrença no género humano e ulterior misantropia da espécie... ah, meus caros, mas é aqui que vos devo fazer notar o seguinte: eu estou a falar de natureza, não de evolução! É óbvio até à tontura que a evolução permite alterar tudo e mais alguma coisa! À luz da evolução praticamente – e em potência – rigorosamente nada fica como era no princípio (amén). Eu aceito a mudança através da evolução; eu acredito da mudança através da evolução. Acredito, por exemplo, que o escorpião pudesse ter atravessado o rio às cavalitas da rã sem a ter picado, se eventualmente esperasse meia dúzia de milhões de anos que lhe proporcionassem uma mudança (evolução) nesse sentido. Já a sua natureza, essa, estaria sempre refém daquilo que a evolução lhe permitisse. O mesmo se passa com a espécie humana: a evolução trouxe-nos até este ponto, o da monarquia absoluta sobre a convicção de que somos Senhores da Criação. O que a evolução ainda não nos permitiu fazer foi mudar a natureza de cada um ou uma de nós, de modo a sermos o que nunca fomos nem nunca seremos. Ninguém, rigorosamente ninguém me consegue convencer que é possível mudar a natureza das pessoas.

Desta forma, os textos que aqui aparecem são o produto imediato da natureza de cada um dos seus autores. Não esperem ver aqui publicado o que nenhum dos autores em sua natureza alguma vez criaria. A evolução de estilos e de tons faz-se dentro da natureza individual de cada criador – esperar outrossim é absurdo.

Dito isto, concordem se quiserem, discordem por favor, façam o que acharem melhor, ou nem por isso. Afinal de contas, o que importa é que nada disto importa verdadeiramente – a menos que o jantar esteja delicioso.

Já agora, não se esqueçam de fechar bem as persianas.
João Tavares - Editor Outra Vez