sexta-feira, abril 13, 2007

Conto

A noite é boa conselheira
O Imperador estava cansado, dir-se-ia até que estava quase exausto, mas não dava quaisquer mostras de querer dormir. No entanto, ele sabia que era muito importante descansar convenientemente esta noite, de modo a estar perfeitamente fresco e na posse de todas as suas capacidades para a hercúlea tarefa que se impunha levar a bom termo na manhã seguinte. Sim, teria de levar a muito bom termo aquilo a que se propunha, pois dela dependia muita coisa – e nada, mas mesmo nada, deveria perturbar o seu bom discernimento, nem mesmo um permanente sentimento de tensão e angústia expectante que lhe roubava toda e qualquer réstea do tão abençoado sono reparador. Voltas e mais voltas deu o Imperador no seu amplo e imponente leito de lençóis de seda a almofadas de penas de faisão; voltas e mais voltas deu ao redor do seu imponente quarto em cujas paredes as suas próprias armas o perscrutavam impiedosamente aguardando o desenlace da questão; vezes sem conta se dirigiu o poderoso soberano à janela a fim de pedir à Lua ou às estrelas que se compadecessem dele e que lhe enviassem um arauto de Morfeu, ajudando-o assim a adiar por mais umas horas o confronto decisivo que teria lugar logo na manhã seguinte. Por fim, cansado de esperar e quase a desesperar, optou por decidir fazer uma coisa que, de certeza absoluta, iria ajudá-lo a adormecer como um bebé: assim, ordenou que trouxessem à sua presença a primeira mulher que encontrassem. Dito e feito, apenas um breve momento volvido desde a sua ordem e já o chefe da guarda pessoal lhe anunciava a chegada aos seus aposentos de uma jovem mulher. Esta bateu levemente à porta e, perante a imperial autorização, entrou.

Uma vez dentro do quarto, a jovem ficou de pé a dois ou três passos da porta, não avançando mais e nem ousando olhar o Imperador nos olhos. Este, que estava sentado num largo divã, dirigiu as boas-noites à sua visitante. Esta respondeu com uma vénia e um “boa noite, Vossa Imperial Majestade” proferido em voz muito baixinha e denotando óbvio constrangimento.

“Como te chamas?”, indagou o monarca.

“Alina, Vossa Majestade...”

“Bom, Alina, muito prazer em conhecer-te. Por favor, olha para mim. Vá, não tenhas medo...”

Quando ela levantou os olhos, o Imperador pôde constatar que se tratava, de facto, de uma jovem. Perguntou-lhe de imediato a idade, ao que ela prontamente respondeu, não sem algumas tremuras na voz:

“Dezassete anos, Majestade...”

“Dezassete?! Bom, não admira nada que estejas tão nervosa.”

“Perdoai, Majestade, se vos incomoda a minha disposição reticente...”

“Enfim, deixa lá, não faz mal. Quer dizer, quando eu pedi que me enviassem uma mulher, estava à espera que me enviassem alguém mais madura, mais conhecedora, com mais experiência de vida...”

“Quereis então que me retire e peça outra companhia para Vossa Imperial Majestade?” – respondeu a jovem com alguma expectativa incontida.
“Hm... não, não, deixa estar. Não é preciso. Já que estás aqui, podes ficar. Não te importas, pois não?”

Esta era uma daquelas perguntas que Alina achava serem tão retoricamente estúpidas como cruelmente desnecessárias – ousaria ela contradizer o Imperador e arriscar ficar sem a cabeça? Antes ficar sem outra coisa qualquer...

“Não, Majestade, é claro que não! Terei o maior gosto em... fazer companhia a... a Vossa Majestade esta noite...” – titubeou a jovem.

“Diz-me Alina, que fazes tu aqui no castelo do Duque? És casada? Comprometida?”

Maldição! – pensou Alina – se ao menos já fosse casada, talvez lhe doesse menos fazer companhia ao Imperador! Assim...

“Não, Vossa Majestade... – hesitou a jovem – não sou casada nem tampouco comprometida. Contudo... – disse ela, depois do que hesitou e ficou em silêncio, quase arrependida de o ter dito.”

“Contudo...?”

“Contudo... meu coração bate por alguém!” – disse ela, ainda algo a medo.

“Ah, sim? E por quem, pode saber-se?”

“Ahm... duvido que Vossa Majestade conheça... bom, quer dizer, trata-se de um simples... bem, simples mas valente... hã... é um escudeiro do Duque...”

“Sim, tens razão não devo conhecer.”

Uuf! – pensou a jovem.

O Imperador, vendo que Alina ainda estava de pé junto à porta, pediu-lhe para ela se aproximar e se sentar junto a ele, no divã. Com passinhos pequeninos e bem medidos, ela foi até junto do monarca e sentou-se.

“És muito formosa! Tenho a certeza que o teu simples mas valente escudeiro te deve ter também em muito alta estima.”

“Se Vossa Majestade o diz...” – disse, corando.

E assim continuaram numa conversa de perfeita xaxa, que não atava nem desatava para lado nenhum, até que o Imperador, que para grande surpresa e alívio de Alina não lhe tocara nem uma única vez, acabou por adormecer ao cabo de uma meia hora, ali mesmo no divã. Muito lentamente, e com reverente respeito à mistura – mais por temor a quebrar o feitiço do sono do que por carinho ou afecto – ela levantou-se e cobriu o Imperador com uma manta. Dirigiu-se então à porta e disse, muito baixinho:

“Boas noites, Vossa Majestade. Se não levantais objecção, dirigir-me-ei agora aos meus aposentos ...” – ao dizer isto susteve a respiração durante três ou quatro segundos, que lhe pareceram uma eternidade. Ao cabo desse tempo, como o Imperador lhe não respondesse, isto é, como não objectasse a que ela se retirasse, ela fez uma profunda vénia e muito lentamente saiu do quarto, deixando o monarca a ressonar levemente.

No dia seguinte, bem cedo pela manhã, o Imperador levantou-se e preparou-se para a difícil tarefa de negociar a paz com o Duque rebelde em cujo castelo a sua imperial comitiva pernoitou. Dirigiu-se à sala de conferências e ouviu as trombetas anunciar a chegada da embaixada do Duque, que viera do seu esconderijo nas montanhas até ao seu próprio castelo, perdido durante a guerra, tentar um acordo para pôr fim às hostilidades que se arrastavam havia já vários anos. Para grande surpresa do monarca, a embaixada era liderada pelo próprio Duque rebelde. Este, uma vez frente a frente com o Imperador, disse:

“Majestade, pela forma como respeitastes a honra e a integridade da minha filha, estou disposto a acreditar na vossa promessa de perdão e de reconciliação. Como pai, agradeço-vos do fundo do coração a preservação de Alina. Como líder do exército rebelde, estou disposto a depor imediatamente as armas e a negociar os termos da paz.”

Respeitar a honra e a integridade da filha do Duque? – pensou o Imperador – Mas se ele nem sequer sabia que a Alina era a filha do Duque que ficara para trás quando o pai fugira para as montanhas... além disso, de que forma poderia a jovem ter perdido a preservação? Pois se ele já desde pequenino que recorrera à avó, depois à mãe, às irmãs, às primas e até mesmo às criadas para lhe falarem de coisas banais e triviais sem interesse nenhum, de modo a aborrecê-lo tremendamente e a fazê-lo cair de sono...
João Tavares