sexta-feira, abril 13, 2007

Prosa

Portugal e Existência
Já o sabia Kierkegaard, «sistema e fechado são idênticas coisas tão afastadas quanto possível da existência e da vida»[1]. Quanto a mim, os meus afectos não mais concedem senão a edificação da possibilidade. Ainda a repetição é o recolhimento do em aberto, ainda o mundo hasteia sofregamente o futuro. O movimento está ancorado no passado – está ancorado. E se o mundo é possibilidade, o mundo é paradoxo. Ainda bem que assim o é, pois, pelo meu lado, e ainda que o não tenha experimentado, não me contentaria desconhecer o nada. A vida é nada ou a vida participa do nada por esta mesma possibilidade. Possível e não necessário. Quero, entanto, que me concedam que não morrerei, como quero que me concedam que não serei coisa alguma senão todo o possível.
Hoje a ordem mudou. Acordamos noutro lugar. Não nesta ordem mas numa outra que não sabemos. E a ordem mudou de tal modo que não sabemos nada ainda que cumpramos todas as possibilidades. Seremos espanto amanhã para além do espanto que somos hoje. Esta é a consolação. Consolai-vos com a possibilidade de um mundo em que tudo é absoluto desentendimento. Estamos, aparentemente, perdidos no meio de nada – essa é a nossa consolação. Os nossos medos, as nossas angústias, os nossos paradoxos, tudo isto é consolação e, portanto, tudo isto deixa de ser medo e angústia. Só o paradoxo resiste. Desabrigamo-nos da existência, peregrinamos pelo incerto, mas o paradoxo não está suspenso, pois tal como a serpente, não há nele parcialidade ou linearidade. Há caminho do meio, da direita e da esquerda. Serpenteando a realidade, sempre entre tudo e nada, sem anjos, sem mediadores. Sós, largados no espaço e no tempo. Sós.
Quero a angústia. Posso querer a angústia? Posso ter medo da felicidade e das eudemonologias? Posso negar-me a rir e a sorrir? Não sei. «Nem sequer sei que não sei nada; conjecturo, porém, que nem eu nem os outros.»[2], mas não posso resistir ao dinamismo do paradoxo, não posso negá-lo, pela mesma possibilidade de o não poder afirmar. Aquilo que supostamente destruiria o paradoxo logo o restaura com novas energias. Não há restrição a analogias ou a alegorias; o paradoxo é, sobretudo, aplicabilidade. É-o porém de forma inclusiva, porque tudo sorve e ressuma sobre si próprio. Posso, por isso, negar-me a qualquer coisa mas não posso nunca repelir o paradoxo. Todo o sistema, toda a rotura, todo o círculo e toda a espiral aflui ao paradoxo.
A existência é – não estou seguro que o seja – decisão. E porque talvez seja decisão, será participação do nada mas também de contradição. Existir pressuporá a escolha, o exercício – livre ou não – da opção e da preferência. Existir é, mais do que pensar, escolher. Quando decido já pensei (?), mas quando penso já existi. Este atraso do pensamento em relação à existência é contradição decisiva que nos deixa num impasse relativamente à temporalidade da escolha e do pensar. Pouco sabemos do pensar e ainda menos sabemos da escolha; pelo menos eu ainda não sei se escolho porque penso ou se penso porque escolho. Não sei sequer se a escolha escapou alguma vez ao tempo e à inteligência; parece-me, entretanto, que há uma anterioridade qualquer – que não sei qual – que excede o próprio pensamento. Sei que me dirijo a alguém que está habituado a pensar apenas com o pensamento. Contudo, o estabelecimento da possibilidade da ordem ser uma ordem outra não foi inocente. Antecipemo-nos, ainda que o não possamos, ao pensamento. Tenhamos a coragem da negação e o espírito bélico; a vida pede que combatamos. Não nos bastarão os moinhos de vento como não nos bastarão as ideias efémeras. Nada nos bastará. E ainda que um dia nos sintamos saciados, havemos de negá-lo obstinadamente, porque as forças contra as quais lutamos são as do impenetrável círculo das certezas.
Esta introdução é tão absurdamente grotesca quanto os propósitos nadificadores nos toldam a discursividade. Fizemo-nos assim; a nós e ao mundo.

Os impérios construíram-se, até aos nossos dias, sob o conhecimento. Construamos o Império da Paixão - o Quinto. O ensinamento luso não tem que ver com máquinas. O que Portugal tem para oferecer ao mundo é a Existência, e esta fatalidade explica, em parte, a nossa incompetência para a Economia e Ciência, apesar dos Descobrimentos, que encontraram as suas fundações, contudo, no Divino Espírito Santo. Diante da cultura portuguesa, Heidegger é tardio – edificante mas tardio. A nossa dimensão oriental, a ocidental praia lusitana, nada poderá desejar que possua o rastro das engenharias.

Ouvimos os motores, mas por sobre os autómatos cantamos melodias de antigamente.

As trombetas anunciam o ressurgimento da Atlântida. O Quinto Império, mais do que um Império da Cultura, será o Império da Existência, firmada esta ideia no absurdo de o Existir preceder o Pensamento, visto ser esta a salvação do paradoxo e visto ser este a salvação da Existência. Não há pois mediação possível, ao modo hegeliano, entre o Existir e a Realidade. Não há cultura, não há saber, não há conhecimento. Há Amor, há Paixão. E havendo Amor e Paixão não pode haver unidade nem universalidade no sentido estrito e rigoroso dos sistemas que libertam erigindo barreiras.
Não implica tudo isto que a Razão seja abandonada. Se o nosso pensamento for holístico, então estaremos condenados aos círculos e admito que a exegese possa ser conduzida pelos caprichos do desonesto. Não me elevo às sentenças, mas o que verbalizo não põe de parte a hipótese da contradição com aquele espaço concedido ao leitor para que crie. Nada é definitivo.
Nem sequer complexo, nem sequer erudição do real. Não pode o Português ater-se ao Estruturalismo porque o português sabe que as suas estruturas se não lêem, e o mesmo é dizer que o paradoxo se não sistematiza. O que sobeja então ao espírito despojado do racionalismo iluminista? Sobeja-lhe a Razão e este esforço absurdo em racionalizar o vórtice da existência. Este é, talvez, o vestígio primeiro e último da nossa comunhão com o Paradoxo - tentar explicar que se não explica o inexplicável.

[1] Kierkegaard, Temor e Tremor
[2] Francisco Sanches, Que Nada se Sabe
Leonel Ferreira