sábado, outubro 07, 2006

ensaios

A Ermida da Memória

O que aqui vedes é um sinal pétreo do que Deus quer. Sigamo-lo no vagar daquele que anseia sem desesperar, daquele que deseja sem se comover. Ouçamo-lo por breves momentos e veremos o Tempo dissipar-se, como se houvesse um enlace derradeiro entre nós e…
… e é como se da Natureza tivesse germinado aquele promontório que nos impelia a respiração por sobre a orbe de todas as coisas. Depois foi a mão humana que, guiada não se sabe por que deíficos mistérios, erigiu a Ermida a que se conveio chamar a da Memória. De ordinário a alma popular reconhece os lugares sacros, cingindo a seu peito o coração sagrado outrora inatingível. Unida a Ermida terrestre à Ermida celeste, eis o Homem adejando entre si e o seu próprio Além, pomo amadurecido duma Trindade ignota. Rememoraram-se as três Idades Divinas e assumiu-se a figuração concreta das entidades espectrais. Assim principia o mundo oculto. Ainda que o nascimento e a morte sejam o Mistério maior, a sustentação vital das coisas é, ainda e inexoravelmente, o reduto onde se refugia a esperança.
Junto à ermida, e mesmo por detrás de quem se volteia para o mar, quis Deus o detalhe frívolo dum pequeno parque de automóveis onde, por momentos, nos é dada a oportunidade de ouvir o ressoar de motores. Já não recordo se desde o interior da ermida conseguimos ouvir o estrépito do impulsor mecânico. A oração a Deus é una, não fragmenta a percepção da realidade e é, por isso, uma absorção da pluralidade do Ser numa unidade impossivelmente inteligível. O que está dentro da ermida é o meu corpo e talvez algum rastro sideral a que não sei atribuir nome, espécie de elo sacro corporalizado mas de forma acromática. Isto pressupõe substancialmente um emissor mas não necessariamente um receptor. Partamos do princípio de que a realidade do mundo é múltipla e não será grande o esforço dispendido para imaginar um mundo eterno mas com um princípio. Resumindo-me, Deus é uno, e o peregrino, parte corpórea, matéria potencialmente espiritualizada, é uma fracção de proporções ainda desconhecidas. Admitindo a unidade de Deus e a pluralidade do Mundo perceptível, a questão que se coloca é a de saber se o peregrino, tomando parte de algo, é fragmento de Deus ou do Mundo e qual a possibilidade temporal que lhe é particular.
A Ermida da Memória tem uma pequena fresta quadrangular que aponta para o Oceano, de modo que o corpo do visitante ficará detido entre um segmento atlante e a presença mentalmente remota de um pequeno parque de automóveis. O que se perde na paisagem? O que se ganha? O que se transforma? Modernamente, poderia estar em causa o conceito de relação ou até de linearidade, mas a desagregação da realidade é precedida de um movimento negativo, isto é, de uma superação do intelecto, uma ausência de manifestação positiva. Admitimos que esta realidade será sempre e fatalmente a realidade da aspiração, mas tal como na demanda agostiniana de Deus também o peregrino da Ermida contempla perpetuamente, encontrando sempre um elo que o une a um outro elo de uma extensão nunca vista. O mar é o ininteligível, o parque de automóveis é a matéria incorporando a Realidade, o Peregrino é a potência divisível, a Oração é a Unidade figurativa e Deus a Unidade Suprema. Deus foge da Unidade porque é fatal sina do Universo o Ser desagregar-se de si próprio, aspirar ao outro, ainda que seja um outro irrealizável porque coeterno. O Homem busca inexoravelmente a unidade mas por súmula de espirais ou, de outro modo, serpenteando a Realidade, sempre em direcção ao ainda-não. O ainda-não é tudo sendo nada.

Eis o Universo edificado pela Ciência. Apresento-vo-lo. Universo que se expande, Universo que se alastra para além de si próprio. E, paradoxalmente, a Ciência fechou horizontes. Criou novas perspectivas obstruindo-lhes ângulos. Apresentou o caos como luz, o cosmos como escuridão. No início era a luz, eram as partículas elementares. O sábio não se contentou com o Enigma que as paredes da sua torre encerravam. Saiu pela cidade, pelo país – foi descobrir o mundo. A Modernidade subjugou o Homem ao “Mistério” do mundo em evolução. Na presença do Mito a Ciência arremete com os seus anticorpos – a protociência. Edificou-se o Universo que aparentemente se sobrepôs ao «Universo sem História». E com isto finda no paradoxo da Criação. Tudo o que existe está espelhado no mundo das realizações. Porém, a aspiração não envolve consciência. Que Lucrécio tenha visto a evolução dos veleiros no porto de Roma é um facto que se efectua num espaço-tempo mínimo. Os Descobrimentos portugueses efectuaram-se dum «espaço-mínimo» para um outro «espaço-mínimo», porque alargaram perspectivas sem desobstruir a raia do Mistério, a fronteira ténue entre o Conhecimento e a Esfinge. O Universo obscuro continuou presente. Houve uma luz que irradiou em nós, mas não houve ofuscação dos limites. A Modernidade é o discípulo querendo a «morte» de seu Mestre, e os Descobrimentos viram a posteridade usurpar o seu legado, o de um «espaço-mínimo» reverenciado, como uma oração que se perpetuou de dentro para fora. Não há quem nos diga onde finda a oração. A Ciência progrediu a expensas duma desobstrução múltipla. Edificação a custo de destruição. Luz que ofuscou o Homem, porque expôs o Universo «tal como ele é». Infinito mas sem novidade. Mundo em Evolução mas sem Além. O Homem, que sonhara um Mundo Eterno criado, que sonhara a realização humana inacabada, a aspiração ao «ainda não» sem pretender encontrar o cabo do Universo, viu espelhado o horror da realidade desentulhada.
O Peregrino é, acima de tudo, o complexo. Não a complexidade da máquina e dos sistemas mas a complexidade do Infinito, a negação categórica dos «ismos» e de todo o género de soluções e conclusões inquisitórias. Nem unidade nem multiplicidade. O Peregrino é a complexidade da possibilidade de nem sequer ser complexo. Ser simultaneamente efémero e eterno, pilar frágil que sustenta a ponte entre o mundo e o i-mundo. Ser miserável e bem-aventurado, terreno e contemplativo, indefinível e concreto. O Peregrino abjurou a potência do Uno, orou prostrado diante de si próprio, imagem afunilando no promontório atlante.
A Temporalidade do ainda-não é a do «espaço-mínimo» da memória impulsionando o actual ao assombramento do futuro. O movimento do Passado é Eterno por princípio pois não esgota a possibilidade do porvir. A luz que o Passado estende na linha temporal é a Saudade porquanto inconsciência dum estado outro, dum estado divinatório que espirala a Realidade e, como tal, não se esgota na decifração humana. Ainda que possamos admitir a luz ou aquele mesmo Sol albergando o corpo de um Prisciliano, a atitude perante as chamas e os clarões derradeiros só pode ser a de uma firme incredulidade. O Peregrino olha-se e suspeita das suas próprias categorias, daquilo que lhe outorga uma existência particular. Nem método nem refúgio na pura abstracção. Apenas confluência de sombras e luzes.
Assoma a Orgânica do «espaço-mínimo», facho que não rompe todas as sombras. O Mundo carece de sombras, de agnosia, porque a Vontade precisa de espaços exíguos e sombrios. O Poeta lega as trevas. O Filósofo já não é o sacerdote da Luz mas o escravo Esteta que desce às catacumbas, às criptas da Verdade e narra as maravilhas que imaginou, o Milagre que ele próprio concebeu entre sangue e morte, das trevas fazendo luz. Ascetismo etereamente ascendente, materialmente descendente. Platão sabia-o já, não há evocação das Ideias sem a presença das sombras. A Paris do Peregrino não é a que ele sente no ferro da Torre Eiffel. É antes a que ele inveja não ter percorrido no vagar dos aristocratas. É antes a que ele sente, orgulhosamente, não dever visitar. O Peregrino lamenta a sua presença na Ermida. Há-de partir para não mais voltar, para esquecer o polvilho estalando entre a pedra fria da Ermida e os seus sapatos.
A Orgânica é sempre a de um «espaço-mínimo». Orgânica da Ermida da Memória, onde um peregrino não alcança os limites do Mar. Orgânica dum quarto iluminado numa mansão escura. Duma mansão iluminada numa cidade escura. Duma cidade iluminada numa Nação escura. Duma Nação iluminada num Mundo escuro. Dum Mundo Iluminado num Deus que aspira ao que não é, que é o nada que é tudo. Serpente da Realidade, Orgânica dum Universo cheio de nadas.
Leonel Ferreira