sábado, outubro 07, 2006

ensaios

Entrelinhas do Mundo

É lamentável não poder deixar de lamentar que pensasse poder chegar a um estado que não este, a consciência do total absurdo que sou, do riso que solto e do choro que não contenho por não saber do que rio. Eu sei porque não sei, sei-o bem, apenas não digo a ninguém, nem a mim.
Tudo mexe, tudo corre, tudo ri porque pensa que pensa, tudo mexe, tudo corre, tudo, tudo… Menos eu, claro, num eu que muda dependendo de quem o diz. É curioso como me faço esquecer disso, amarrando-me ao eu que sou, mesmo quando o humano, e o demasiado dele me fazem rejeitá-lo. Escrevo-o aqui, sinto-o, mas a rejeição não é plena. Há algo notável no humano, algo que o lança para fora de si, que o faz querer não ser o que é. Uma assumpção em forma de anti-si que não me deixa tornar partidário de um completo anti-humanismo. Gosto do humano, mas daquele que não o quer ser, daquele que se envergonha por tanto se agarrar a ele próprio. Essa actividade constante de auto-negação é louvável. Admirável. O estar entre coisas e não gostar da coisa que se é. Mas não será assim com coisas outras também? Pessoa terá razão quando afirma que o fundamento da vida é a inconsciência. Provavelmente. Adiante.
Tenho, obviamente, noção do circunstancialismo de mim, da irrelevância de nós, todos teremos. Coisas tão grandes que nos fazem pequenos, que nem olham para nós como eu não olho para uma minúscula pedra que calquei e nem reparei. Coisas tão grandes e afinal tão pequenas por comparação com coisas maiores afinal tão pequenas, e assim por diante nesta lógica que é simples por lidar com coisas complexas. Pensar coisas que estejam imunes a tal lógica, parece, deveras, trabalho impossível. Com certeza é,– basicamente seria a resposta a uma coisa de tal forma assombrosa e inominável que nem me presto a tentar sujá-la com uma qualquer palavra, sempre redutora - mas a sensatez que outra idade me daria não a tenho. Para tudo ser como é, algo nas entrelinhas das coisas deve desafiar essa a-lógica, tem de desafiar. Porque sim. Algo que na sua diferença as torne irmãs, que as suspenda, que as vivifique, que as dignifique. Ser mais que o raio de um ditatorial destino de mudança, em que sou obrigado a saber que vou ser tu e que tu vais ser eu, em que depois não o saberemos nem nos perguntarão se nos lembramos.
Preciso do berço das coisas, aquilo que faz o homem olhar-se com desdém e elevar-se ao que não é. O grego chamava-lhe Ideias, plenas na virtude da imaterialidade. Maus exemplos, relativos, mutáveis no tempo, exageradamente humanos. Não é isso, tem que ser mais bonito, mais simples, como o significado da palavra… bonito. Quero o pré-humano. Aliás, o pré-mundo, o que transforme o mundo e o para além dele numa coisa que tanto é como podia não ser. Que algures estivesse, fosse o mundo assim ou de outra qualquer forma. Que subsistisse, existindo animais, terra, mar, ou não existindo nada disso. Existindo estes mundos ou absolutamente mundo nenhum. Creio que há pelo menos uma coisa assim.
O idílico efeito que provoca desvia a atenção. É natural, a alienação é completamente involuntária e não há espaço para atenções, apenas para fruições, alegres, aterrorizantes, deprimentes ou simplesmente belas. Pega-nos pela mão, e leva-nos. Não há nada a fazer, o estar na vida o impõe. É uma imposição estranha, em que nós próprios exigimos a aceitação dela. Damo-nos, sem o dizermos, sem obrigações apesar de obrigados.
É assim a Música. Força incomensurável. Visceral. Vital. Beleza desnuda.
As notas musicais são tudo o que desejava o grego: tão velhas quanto o tempo, absolutamente incorruptíveis, imateriais apesar de, de certa forma, materializáveis. Invisíveis, mas inegavelmente reais. Imutáveis. Completamente imutáveis! Um Fá mantém a mesma substância Hoje, Ontem ou Amanhã, aqui ou em qualquer lugar do universo, pela minha voz, pelo rugir de um leão, pelos cascos de um cavalo ou pelo movimento de um cometa. Não é possível a mudança porque há intocabilidade em grau máximo. Isto é, para mim, fascinante. A chata lógica referida há pouco parece que tem adversários. Ainda bem.
Já vi gostos de uma ponta à outra da vida, a coisas tão belas se torcer o nariz. Nunca tive o desgosto de conhecer alguém que não gostasse de música, de música em geral, de um tipo de música, de uma música em particular pelo menos. Colocando a hipótese de essa pessoa existir, certamente não deixará de lhe agradar a fala de alguém, a gargalhada de uma pessoa querida, o ladrar de um cão, o som do desfolhar de uma página, entre outras pequenas situações que por insondáveis razões podem agradar ao ouvido. A música está em tudo, entranhada e inseparavelmente, no confortável, mas também no oposto. Não deixará, portanto, de estar no grito de desespero, de dor, no ruído, no sussurro de um moribundo e mesmo na latência das coisas que aparentam não fazer barulho. Tudo faz barulho, inevitavelmente. Tudo canta à sua maneira. O sangue deste corpo parado espalha música enquanto corre. Este é o sentido lato da música, dos sons, não apenas da melodia que nos deslumbra enquanto desenha surpresas na imaginação. Mesmo no sentido tradicional a sua presença é indispensável, na festa e no lamento, no casamento e no funeral. É uma arte de carácter especial?
Não acho que possa ser definida como uma arte. Está muito para além disso, ainda que também o seja. É uma arte, mas praticamente faz com que as outras artes dependam dela. Um bom poema necessita que as palavras joguem melodicamente entre si, no fundo, que musiquem. A Dança não vive sem a música, tal como o Cinema ficaria grandemente ferido sem a força da música no momento chave de determinada cena, sem a força de um grito de medo quando o objectivo é impressionar o espectador. Até a pintura, - que é a meu ver menor, porque estática, e dependente do tratamento da imaginação humana, - não atinge objectivos se o observador não aplica ao que vê sons e melodias imaginárias. Esta afinidade entre sons e imagens é outra curiosa questão que pode não deixar as notas musicais sozinhas neste debate de atribuição de intemporalidade. Até que ponto as principais cores não ostentam o estatuto da música é uma possibilidade pertinente, mas não para agora. A música aqui merece estatuto de exclusividade e, mesmo que não merecesse, não lhe importava nada, o mundo continuaria numa imparável e gigantesca ressonância… à sua custa.


André Faia