sábado, outubro 07, 2006

em prosando

O foguete

Quando o comboio chegar, antes do padre inclusivamente sair, já Joaquim de Almeida saiu da estação, afrontado. Chupando o cigarro como uma promessa, uma névoa de fúria perpassa-lhe a fronte à medida que entra na farmácia, a estrada atravessada, a porta trémula ainda vibra agora que ele acaba por se rir, seco. Ai o filho da puta.
Na gaveta nunca faltou um maço, e Joaquim, antes de esperar o amigo, agora à porta da farmácia, espera, pelo vidro, que o baloiçar gordo e pesado do padre se afaste triunfante das imediações. Amarrota o invólucro usado e esquece-o no chão, ao passo que tenta ignorar o que o padre lhe diz e faz, e com o fumo engole outro Ai o filho da puta. E o velho Esteves das andanças de Coimbra sai para a praça a sorrir. Também nada tinha mudado fora dessa estação.

O padre Hermínio, conhecido por ser um bom homem, nunca teve quem o considerasse, sob qualquer perspectiva ou ponto de vista, uma pessoa flexível. E, à medida que os anos lhe carregavam os ossos e os pulmões, a própria paciência secara como um cacho de uvas. Ainda assim, sempre respondeu à vida com um sorriso, o que notoriamente, e em alturas mais atribuladas, lhe arranjou número igual de amigos e inimigos. Mas tempos idos, idos vão.
Já o cão, com aquele tão seu rabo oscilante, pondera apenas com as patas a calçada fresca do Outono e, cauteloso, coloca-se sempre à direita do dono desde que viu um carro pela primeira vez. Quando o sol brilha assim, e no granito cintila a espessura acetinada e nevrálgica de chuva que caiu, o Criador torna-se necessária e logicamente lógico e necessário. Começaram ainda agora a cair as primeiras folhas e há um silêncio inesperado, mas feliz.
Isto de ser feio terá o seu encanto, até porque a beleza não se escusa a ser bastante heterodoxa, mas tempos estes de heterodoxos nada têm, e está a vida pela hora da morte, certo e sabido. Claro que o bicho não tem culpa, nem de tanto se apercebará, mas aquele focinho em posição de encaixe, os olhos de insecto doentes e lacriminosos, tudo servido num embrulho de pêlo de rato não dificultam a tarefa de que o óbvio se confronte com o desagradável. Obeso, um pipo com pernas de mosquito, o seu feitio apenas compatível era com o do dono. No demais, dente neles. E quando o padre morre, não se imagina que este bicho, desprovido de tudo menos de gratidão, montará guarda até morrer também sobre o jazigo cinzento, que hoje não existe já. Tudo em vão. O bicho não mais saiu do cemitério a não ser para enterrar.
Mas muito antes disso, e não há que esperar quase nada, acumuladas que estão as tensões após o episódio do cão, o padre ainda espetará uma fascista trombada com o guarda-chuva na progressista (e progressiva) careca do Almeida. Ou melhor, ou o pedreiro-livre do Almeida vai aprender a primeira consequência dessa lição que ele prega à bordoada, sorvida que foi de bigodes inquietos e lascivos, entre dois copos de vinho e as colaboradoras da Casa do Touro, que ele julga que se chama liberdade. É tudo uma questão de escolher o narrador.
Acção-reacção, assentirá logicamente o cérebro do farmacêutico à medida que o padre pensa na divina providência de hoje, que nem ameaça chover, se ter lembrado de sair para a rua de guarda-chuva. E na rua do Souto, em Braga, entre a Sé e o Paço, Joaquim de Almeida lançou-se sobre o padre com uma agilidade que os seus maduros anos não permitiam já. E quando o padre tombar como uma caneca na mesa, pensará ainda o Almeida acção-reacção, e o padre na providência de tal lição de humildade.
E o professor Machado, que vinha com o Padre de mostrar a Sé a um primo do Brasil, colossalmente se encarregou dos litigantes como quem trata de dois moços, e só não levaram umas palmadas porque a régua ficou na sala-de-aula, que chatice, e como já nenhum deles tem pais para lhes acertar o respectivo passo, o professor concluiu tristemente que a situação só podia piorar.
Vá-se lá foder, homem, disse Joaquim, ao que Hermínio respondeu, Vá chamar enxota-diabos ao caralho. Você julga que eu não tenho aqui amigos? Só ajudo quem precisa, sua cavalgadura. E o professor sorriu dos figurões. Enxota-diabos, do que esta gente se lembra.

Sorri o Esteves e, sem indícios de malícia, observa a província. Dez anos. Dez anos e o Joaquim da botica nem embranqueceu o bigode (com o chapéu posto, o Esteves não lhe descobre a careca), rijo como os penedos, ao passo que ele, sabe Deus, cada dia mais se parece com o avô que, aos setenta anos, trajado de gala, se pendurou do sino da Igreja. E o marulhar inconcluso da pequena multidão no dia seguinte, vergada ao peso impraticável da vida, foi algo de que nunca se conseguiu esquecer, assim como não se esqueceria nunca, se bem que do lado oposto dessa armadilha que é a memória, da primeira vez que o viu, ao cavalo que agora revê- talvez não seja o mesmo mas é igual- a sorver, ao lado do companheiro de cavalgada que é o Capitão Serra, um litro de vinho ao balcão da tasca do Azevedo. Nada muda neste mundo, pensou estereotipadamente então, e o rabo do cavalo, enxotando as moscas como um transitório símbolo da imutabilidade das coisas, desfraldava-se para fora da porta do tasco como uma bandeira.
O Joaquim da botica ainda tem o abraço largo dos amigos que têm saudades, mas hoje parece inquieto, e o seu riso nervoso torce-lhe o bigode como uma má recordação. É só depois de duas postas de bacalhau frito e de uma caneca de vinho que acalma (Francisco Esteves é abstémio fora do Porto, depois dum incidente raro com um oficial de Cavalaria em Bragança, dizem as más-línguas, que não as há boas), e decide, friamente, que amanhã irá a Braga a averiguar da posição deste em relação às práticas de exorcismo. E a lembrança do balouçar pesado da batina do padre pela estrada fora mais o mafarrico era uma luva de gelo no seu coração.
Quando o velho Capitão finalmente larga o Jaime do Azevedo e se dispõe a sair do tasco, puxa as calças para cima, depois de cuspir para o chão, e resmunga Ninguém merece isto, que se vão foder todos amais a grande puta que os pariu, e, ao subir para o cavalo, vê-se pela primeira vez, nota-se o que todos sabiam. Que é velho, e que quem muito fode, acaba fodido. A quem se referia quando dizia todos, ninguém o sabia, mas o cavalo largou num ímpeto de certeza, como se um foguete. Como os homens se matam por essa vida fora, sorriu o Esteves tristemente, quando dois dias depois, antes de regressar ao Porto e se despedir da careca pisada do Joaquim por outros dez anos, soube do ocorrido.


Agora, antes do comboio parar, tem que ser agora, e é mesmo agora, o Padre baixa-se e o corpo do Foguete aparece à janela, com aquele focinho mal cozido. Quando Joaquim repara no insólito, e concentra o olhar no bizarro, eis senão quando a pata direita deste se levanta e parece acenar, como quem diz, Podes chamar outra vez o canil, mas eu estou aqui, e o padre levanta-se e ri. O raça do home é que é tolo, exclama o aguadeiro, mas logo emenda, Não há dúvida que tem a sua piada, não acha, patrão? É isso que eu queria dizer. E de pensar que lhe levaram o bicho. Eu não é só por dizer, mas se não fosse por mim topá-lo, patrão, quando o levaram, lá tinha ido o Foguete para o Diabo. E o patrão, que não é o patrão, mas o Almeida, responde O pároco é único, este é único, não haja dúvida. E o único, se não percebesse tanto de espíritos e fantasmas, apostaria, como todos, que o Quim da botica, é o Esteves que também o pensa, está possuído e leva fogo no cu, ninguém o pára daquela estação para fora.
Mau vício, ainda o há-de matar, grita-lhe o padre ao sair da estação, quando o Almeida sai da farmácia, e finge, fumando, a grande custo, não ouvir. Quem está mais perto da morte até é ele, mas só Deus sabe, e Deus sabe de todos, e nem um ano mais terá, mas Deus cala-se. E o padre pega no cão e acena, uma última vez, segurando a pata lânguida do quadrúpede. Mas quem nada sabe é o Esteves, e do caricato se ri. Não se lembra de ver um cão tão feio. A província nunca muda nem mudará.
Rui Gonçalves Miranda