sábado, outubro 07, 2006

ensaios

“O Mundo é absurdo”
Schopenhauer

“A loucura é rara nos indivíduos;
Contudo, em grupos, partidos, povos e eras, é a regra”
Nietzsche

“Quando estamos felizes somos sempre bons;
Mas quando somos bons nem sempre estamos felizes”
Oscar Wilde

“Vive como gostarias de ter vivido quando morreres”
Gellert

"Atraem-nos mais as canções que não escutamos”
Keats

“É desumano abençoar quando se é amaldiçoado”
Nietzsche

“Eu nasci viva;
Não é isso castigo suficiente?"
Mary Hendricksen, no seu julgamento por parricídio

“Pai, porque Me Abandonaste?”
Jesus Cristo, na Cruz

“Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?”
Alberto Caeiro

“Não quero saber. Não quero mesmo saber”
John Tardy


Ocasos do acaso

Às vezes estamos em casa, no aconchego do lar, no seio da família, e pensamos. E achamos que bem poderíamos estar a fazer algo bem mais produtivo que pensar. Poderíamos, por exemplo, abrir uma janela e olhar lá para fora, para a chuva que cai, solene e solitária na noite escura e fria. Poderíamos abrir um livro e passar os olhos pelas folhas brancas ou amarelas, folheando descuidadamente o que já alguém folheou avidamente, ou sempre ficou na estante a apanhar o pó nosso de cada dia, porque este, tal como a morte e os impostos, tarda mas não falha. Nunca. Poderia, mas não o faz. Poderia, tal como nós poderíamos, por exemplo, ligar a telefonia e ouvir as doces melodias que nos chegam através das ondas de rádio emitidas desde um qualquer lugarejo perdido numa qualquer selva urbana, onde goteja industrialmente há anos, tanto da chuva pesada e sufocante como da canalização decrépita e enferrujada do compartimento de evacuação de detritos masculinos do andar de cima. Sim, poderíamos fazer isto. Ou até mesmo fechar os olhos, apagar a luz, guardar silêncio e esperar que todo o ensurdecedor ruído do mundo exterior se calasse por um segundo que fosse, por um ínfimo e misericordioso segundo que fosse. Poderíamos fazer isso. Mas não fazemos. Não vale a pena...

Nada do que qualquer um de nós faz ou diz deixa marcas para sempre. Por muito que se contribua para a História e os seus Anais, há-de chegar o dia – ou a noite – em que o pano cairá para toda a memória da espécie humana. E daqueles que não têm a fortuna de gravar os seus nomes ou os seus feitos nos cânones da glória da Humanidade, não reza mais que o sussurro de vozes que se apagam como uma vela ao vento de Outubro. Quem vai saber o que qualquer um de nós fez hoje daqui a duzentas revoluções de transladação sideral? Quem vai querer saber o que qualquer um de nós fez hoje daqui a duzentos anos? Talvez um qualquer muito interessado estudioso de história se interesse por aqueles que levaram avante grandes feitos, grandes obras, grandes conquistas, grandes descobertas, grandes mortandades, grandes empresas. Mas nada saberá daqueles muitos que fazem do viver hoje a maior de todas as conquistas, a mais gloriosa de todas as empresas. Molière disse que “preferia viver dois dias na Terra que mil anos na História” mas esqueceu-se de perguntar se a História queria fazê-lo viver mil anos nela. Também não acredito que a Terra lhe tenha prestado muita atenção. De qualquer das formas, o pobre francês nem se deve ter apercebido que não há mais História que a Terra. Essa é a verdadeira História, a que está verdadeiramente plena de grandes batalhas, grandes conflitos, grandes traições, grandes loucuras, grandes desastres, grandes acontecimentos que marcam bem marcado o trajecto de quem nela está. A História, a outra, essa não é mais que uma muito boa desculpa para dar emprego a mais alguns licenciados em ensino, para ocupar as mentes duns quantos pobres coitados que não têm coragem para aceitar o seu tempo como sendo o seu tempo, para distrair todos aqueles que acham que faz algum sentido tentar fazer com que faça sentido ordenar como que por magia uma série de factos que não passam de passado. E o passado não existe. Já foi. Nada pode ser mais absurdo que tentar perpetuar o que já o não é. Nada é mais absurdo que presumir haver mais história que a deste mesmo dia no qual estamos e para além do qual nada mais há senão História. Que importa descobrir o caminho aeronáutico para a Belize Superior? Daqui a seis mil anos já não haverá Belize. Daqui a sessenta mil anos já não haverá caminhos. Daqui a seiscentos mil anos já não haverá aeronáutica. Daqui a seis milhões de anos já não haverá seres humanos. Daqui a seis biliões de anos já não haverá sequer Planeta Terra. Não haverá senão História. E ninguém para o saber. Tão certo como a morte e os impostos. Ou mais ainda...

“Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida...”
Fernando Pessoa

Quantas e quantas vezes os ditames da experiência nos não toldam os humores de feição e nos remetem para lugares de melancólico recolhimento no mais profundo abismo do nosso ser, no regaço da avó que nos embalava ainda bebés, no pôr-do-sol alaranjado em fins de verão enquanto segurávamos a bicicleta novinha em folha, nos olhos raiados de emoção no primeiro dia de escola, o primeiro dia do resto das nossas vidas, aquele em que mil e um sonhos nos desfilam diante da mente, qual Sherazade menina encantada na inocência de quem ainda sabe sonhar. Quantas vezes olhamos para trás e vemos que não vemos o que víamos quando lá trás olhávamos para o então futuro. Quantas vezes pensamos que deixámos o dom de sonhar em cima da mesa-de-cabeceira e que sabemos que está lá e que basta ir lá buscá-lo quando precisarmos dele outra vez. Mas tal como num sonho em que o prado vai ficando cada vez mais inclinado e a luz do sol cada vez mais negra, tal como a relva e os lírios se transformam lentamente em ervas, urtigas e urzes de espinhos, tal como as macieiras e as pereiras se transformam em carvalhos e cedros pesados e nus, tal como o chão firme e quente se transforma mais e mais numa ravina íngreme, fria, negra, funda, pela qual caímos e caímos sem saber para onde nem para quê, também assim o nosso dom de sonhar se transforma lentamente num amontoado de pregos e parafusos enferrujados, retorcidos e carcomidos pelo tempo em cima da mesa-de-cabeceira, até que um dia nos lembramos que o deixámos lá e vamos procurá-lo, apenas para não distinguir a madeira de contraplacado do metal opaco da mesinha, e então olhamos para trás e vemos que continuamos a cair na ravina, e continuamos sem saber para quê nem para onde...

“A beleza não é mais que a Verdade sob o seu aspecto mais risonho”
Platão

Platão dizia que se devia educar através do exemplo. Dizia que na educação não deveria haver qualquer lugar para a emoção, fosse ela qual fosse, por veicular alterações ao espírito que poderiam perturbar a ordem na e da Cidade; que se deveria ensinar unicamente as histórias dos deuses e dos heróis moralmente rectos, valorosos e superiores; que se deveria ensinar exclusivamente o caminho da austeridade e do rigor. Hoje em dia também se educa através do exemplo, se bem que a disciplina e o rigor nos soam nos ouvidos como resquícios de traumas ditatoriais passados. Hoje em dia não queremos acordar o monstro que ficou a dormir lá trás, nos cobertores nauseantes da História que é nossa. Hoje rejeitamos os ditames Platónicos como totalmente desajustados. Justiça se nos faça, uma sociedade sem emoção não é uma sociedade, quando muito é uma linha de montagem duma fábrica de peças para máquinas humanas. Mas o trauma... o trauma... sim, o trauma ainda nos arde na nuca e faz-nos não querer voltar a fazer o que não se pode voltar a fazer. Rigor? Disciplina? Nem pensar, são palavrões, são bocados de lixo mal triturado pela máquina terra planadora da liberdade, são caroços de pêssego que ficaram debaixo duma roda do camião de trinta e seis toneladas da liberdade, são os espinhos cravados na mão do punho fechado da liberdade, são o bocado de nervura presa que não sai da faca de dois gumes da liberdade...
Até que ponto é que os novos tempos derrubaram a velha Esparta e trouxeram a gloriosa Atenas? Até que ponto se não cai no erro de confundir liberdade com permissividade? Até que ponto não se confunde o fim do excessivo rigor disciplinar com indisciplina crónica, o fim da austeridade com falta de respeito, o fim da ditadura com o advento da Lei Natural? Até que ponto discordar de Platão tem de ser sinónimo de concordar com Giddens? Até que ponto derrotar Esparta tem de ser sinónimo de pavimentar a ouro o surgimento em glória da Babilónia Escarlate?
Hoje em dia estamos a educar para a construção de uma sociedade de indivíduos materialistas, lascivos, egoístas, sem respeito por si nem por outrem, sem valores para além da auto-promoção lúdica e pré-fabricada, sem perspectivas para lá do carregar num botão para que tudo apareça feito, sem saber verdadeiramente ser nem estar. Hoje em dia, tal como advogado por Platão, ensinamos através do exemplo: não poderemos exigir rigor nem disciplina àqueles a quem não ensinamos rigor nem disciplina. Os rugidos do passado impedem-nos de ouvir para lá das odiosas palavras de Vasco Gonçalves: “Ou se está com a Revolução, ou com a Reacção, não há meio-termo”. Se assim é de facto, não haverá diferença alguma entre a sociedade da ditadura de Platão e a ditadura da sociedade dos nossos dias.
João Tavares